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Presépio Vivo




Por Ivana Arruda Leite


PRESÉPIO VIVO
 

A cidade ficou em polvorosa quando padre Augusto anunciou que faria um presépio vivo na paróquia. Ele havia chegado há pouco de Roma e disse que por lá isso era comum. No Advento, período que antecede o Natal, em quase todas as igrejas há uma gruta em tamanho natural com gente de carne e osso fazendo o papel da sagrada família na cena que conhecemos tão bem.


Maria seria escolhida entre as meninas da cidade com mais de quatorze anos e José, entre os rapazes acima de dezesseis. Os pastores e reis magos seriam frequentadores ilustres da paróquia.


Padre Augusto faria duas apresentações, uma no sábado, outra no domingo, com duração de uma hora. No final, o elenco ganharia um sanduíche e um refrigerante.


A seleção dos candidatos, mais de cem inscritos, foi feita no salão paroquial mediante um corpo de jurados formado pelo médico da cidade, o advogado, dois professores do Ginásio Estadual, duas paroquianas e o padre. Tudo transmitido pela rádio local.
A beleza era um quesito importante, mas sozinha não valia muito. Os jovens, de ambos os sexos, precisavam transmitir pureza e santidade. As periguetes, por exemplo, por mais lindas que fossem, foram desclassificadas de cara por não se encaixarem no papel. Assim como as vamps que não tinham o ar de candura atribuído à mãe de Deus. No caso dos meninos, os cabeludos com cara de maconheiro também foram dispensados.


Depois de muita confabulação, finalmente veio o veredito. Sissi, uma linda jovem de quinze anos, loira de olhos meigos e azuis, foi escolhida para o papel da Virgem, e Cidinho, filho do doutor Alcides, um rapagão moreno de olhos verdes com todos os fios de cabelo no lugar, seria seu esposo, José. Os dois pareciam feitos para o papel.


Os três reis magos foram escolhidos entre os demais candidatos. Alceu seria Belquior, o rei que ofereceu ouro ao Salvador; Lucas seria Gaspar, que levou mirra, e Nelson, por ser negro, seria Baltazar, o rei que ofereceu incenso confirmando que o menino era Deus.


Uma semana antes da apresentação, os participantes fizeram a prova do figurino. Sissi parecia uma madona de Rafael sob o manto azul celeste que envolvia suas faces rosadas e cobria seu corpo em amplas dobras. Cidinho não ficou muito feliz com a calça preta de veludo no meio da canela e a camisa branca de mangas bufantes que mal abotoava. Como se não bastasse, por cima de tudo isso, uma capa de lã calorenta cheirando a mofo. “Rezem pra que eu não tenha uma crise de espirros. Tenho rinite alérgica. Esse cheiro pra mim é um veneno.”


Aos reis magos foi pedido que usassem calças e camisas em tons neutros que tivessem em casa. A paróquia se incumbiria dos mantos de feltro azul-marinho bordados com passamanarias douradas e da coroa de papel laminado.


O mesmo se deu com os pastores. As roupas seriam calças e camisas surradas de uso próprio e por cima uma pele de carneiro que o padre conseguiu no curtume da cidade. Todos reclamavam do calor.


O presépio foi montado no estacionamento ao lado da igreja. Quatro estacas de madeira seguravam a cobertura de palha. Papel cinza imitando pedra fazia as vezes das paredes da gruta. Uma serragem fina cobria o cimento do chão. No centro, a manjedoura de madeira com o Menino Jesus, o mesmo boneco de louça de bracinhos estendidos usado em outros anos.


Um pouco antes da apresentação, padre Augusto reuniu o elenco na sacristia e fez uma breve preleção sobre a importância da cerimônia, que se portassem à altura dos papéis que iriam representar, que se mantivessem concentrados, etc. etc. Em seguida mandou o sacristão tocar o sino chamando os fiéis e declarou o presépio aberto à visitação. 


À direita da manjedoura, José emocionado com o nascimento do filho, respirava com calma pra evitar a crise de espirros. À esquerda, de joelhos, a mãe recém-parida olhava enternecida para o menino que nasceu criado. Tão forte, sorridente, abençoando a todos.


Atrás de Cidinho, a fila dos reis magos. Alceu carregava uma almofada coberta com correntes imitando ouro. Atrás dele vinha Lucas carregando um ramo de planta como se fosse mirra, já que esta é impossível de se achar por essas bandas. Nelson, o rei negro, era o último da fila e carregava o turíbulo com o incenso fumegando. Além do cheiro de mofo, Cidinho ainda tinha que enfrentar a fumaça do incenso. Só um milagre o livraria de um desastre.


Na entrada da gruta, doutor Euzébio, pai de Sissi, e Maciel, escrivão de polícia, pastoreavam um burro e um bezerro amarrados a uma corda. Padre Augusto teve o cuidado de colocar água e capim pros animais aguentarem uma hora sem estragos de qualquer ordem.


As crianças que brincavam na praça foram as primeiras a chegar. Vieram em correria gritando feito um bando de periquitos. Quando chegaram perto, sem que ninguém pedisse, fecharam o bico e arregalaram os olhinhos estupefatos. Uma corda os impedia invadir o cenário.


Não demorou e o pátio estava coalhado de gente. Há muito não se via a igreja tão movimentada. Centenas de pessoas se espremendo pra ver Nossa Senhora e seu esposo amantíssimo de perto. A emoção era a mesma dos moradores de Belém de dois mil anos atrás que seguiram a luz da estrela e se depararam com o casal e a criança perdidos no meio do nada. 
José olhava a esposa e pensava: “Como é linda essa menina. Que olhos! Que boca! Será que ela tem namorado? Hoje mesmo vou convidá-la pra um cinema ou um sorvete na Bambina. Vai ser engraçado ver Maria e José andando por aí de mãos dadas. Tomara que ela tope”.


Sissi via que José não tirava os olhos dela, mas quem estava na sua mira era Baltazar, o rei que carregava o incenso. “Esse negão é muito gato. Tô de olho nele faz tempo. Ele luta capoeira e samba como ninguém. Saindo daqui vou perguntar pra onde ele vai e peço carona. Tomara que me leve pro pagode. De hoje não passa!”


Nelson não só percebia os olhares de Sissi como insinuava sorrisos e piscadelas em sua direção. “Essa Maria tá me dando mole. E olha que ela é uma gata de responsa. Vou convidá-la pra ir ao samba hoje à noite. Tomara que ela tope.”


Mais distante, mas não distraído, doutor Euzébio, pai da Virgem, tinha um olho no bezerro e outro na filha sem entender a direção de tantos olhares e sorrisos mal disfarçados.


Terminada a apresentação, Sissi entrou no fusca de Baltazar e foi embora feliz da vida. Cidinho foi lento no gatilho. Quando tomou coragem pra convidar a esposa pra passear, ela já estava longe.


No dia seguinte, último dia da apresentação, o público foi maior ainda. A notícia se espalhou e veio gente até das cidades vizinhas. Fora os que já tinham visto e queriam ver de novo. Pipoqueiro, carrinho de cachorro quente, homens vendendo balões, maçã do amor. Nem as quermesses faziam tanto sucesso.


Ajoelhada sobre o menino, Maria lançava olhares apaixonados para Baltazar, que pensava na morte da bezerra pra afastar a lembrança ainda quente dos beijos de Sissi, dos sussurros ao pé do ouvido, do seu corpo colado no dela, coração com coração, sambando a noite inteira. Ele tinha que se concentrar no papel. Pra piorar, o sogrão estava bem na sua frente. Um descuido e a casa caía.


José notava algo diferente na esposa mas não sabia o que era. “Hoje ela está ainda mais bonita. Quem sabe tope tomar um sorvete ou ir ao cinema comigo.”


Nem hoje nem nunca. Sissi e Nelson engataram um namoro que atravessou muitos carnavais. E nunca deixaram de visitar o presépio vivo, tradição que o padre Augusto mantém até hoje.


Jesus, o menino cor de chocolate, adora ouvir a história de como os pais se conheceram, do porquê do seu nome.

 

Ivana Arruda Leite é escritora. Autora de Alameda Santos – Romance (Iluminuras, 2010), Diomira, a Sherazade do Sertão, Coronel Carrerão e Lucinha (Brinque-Book, 2011), entre outros.