Postado em
A finitude na perspectiva do idoso do gênero masculino
SANDRA CAROLINA FARIAS DE OLIVEIRA
Introdução
Esta pesquisa visou investigar qual é a representação construída socialmente por idosos a respeito da morte. O tema morte, assim como a faixa etária a ser pesquisada, a velhice, são considerados interditos em nossa sociedade. Diante deles, muitos silenciam. Na busca bibliográfica há uma lacuna nos estudos realizados no campo da gerontologia que envolvam aspectos sociopsicológicos da morte. Velhice e morte são aspectos intrinsecamente relacionados e que, nos dias de hoje, estão sendo esquecidos, ou melhor, escondidos da nossa realidade. A morte para os que ultrapassam os 60 anos, os chamados velhos, ganha um significado de destaque, pois ela está marcada no corpo, no rosto, nas limitações físicas mais evidentes, nas idas frequentes aos médicos, na aposentadoria, etc.
Dentro da área da Psicologia e do Desenvolvimento Humano são feitas muitas pesquisas com adolescentes e crianças, mas ainda pouco se fala dos idosos que a cada ano têm aumentado sua expectativa de vida, exigindo assim melhores condições e uma maior assistência. Uma dificuldade encontrada logo de início diz respeito à conceituação do que é “ser velho” ou idoso. Não existe um consenso entre os teóricos da área. Como diz Santos, trazendo a representação
que os próprios velhos têm da velhice (MOREIRA e OLIVEIRA, 2000, p. 158):
O verdadeiro velho é o outro – neste sentido, os sujeitos enfatizam o estágio final da velhice como fase de dependência total. Assim, há sempre um “outro” mais velho que ele. Parece importante salientar, que ao destacar aspectos negativos da velhice, que de certo modo ameaçam a identidade do sujeito, alguns mecanismos de defesa são acionados. Assim, há sempre um outro mais velho que concretizaria as características negativas da velhice. Para fim de legislação, é legitimado o idoso a partir de 60 anos em países desenvolvidos e de 65 anos em países em desenvolvimento de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS).
No Estatuto do Idoso brasileiro (2003), ser idoso é ter 60 anos ou mais. Outra temática que precisa ser conceituada, assim como a velhice, é a morte, que se apresenta na grande maioria das vezes carregada de sentidos negativos. Então, pode-se dizer que ela se mostra com diversos significados, despertando sentimentos variados, desde os mais depreciativos,
como desintegração e sofrimento, até um fascínio e a ideia de descanso (KOVÁCS, 1992).
De acordo com Bueno (1980), a morte conceitua-se como: “S.f. Ato de morrer; fim da vida; destruição; entidade imaginária que a crendice popular supõe ceifeira das vidas; cessação completa e definitiva das atividades características das matérias vivas; – civil: perda de todos os direitos e regalias sociais; – moral: perda de todos os sentimentos de honra; desaprovação moral; (...)”.
O humano é o único ser que tem consciência da própria morte, sendo esta a causa de muita aflição para os indivíduos. Pensa-se em afastá-la da vida cotidiana, até porque a imagem que geralmente é passada pela mídia é de uma morte violenta, sofrida, da qual se tem ojeriza. É comum que não se pense sempre na morte até porque se precisa viver e para distanciá-la faz-se uso de diversos mecanismos psicológicos, entre eles: negação, intelectualização, deslocamento. Mas o medo da morte persiste na maioria das pessoas (KOVÁCS, 1992).
De acordo com Kastenbaum (1983, apud KOVÁCS, 1992), existem dois medos: medo da própria morte (deparar com a finitude) e da morte do outro (abandono). Quando se fala na nossa morte podemos relacionar este medo dentro de três aspectos:
• Medo do sofrimento e da impotência que a morte suscita;
• Medo do que pode vir depois da morte, do desconhecido;
• Medo do não-ser, da extinção.
É curioso pensar que, sendo a morte a única certeza na vida de todos, tenha-se tanto medo de enfrentá-la ou de simplesmente pensar nela. Neste aspecto é que Kovács (1992) traz a questão da morte como sendo construída socialmente e submissa a variáveis como a religiosidade. Um estudo feito por Morin, que Kovács (1992) cita, refere-se aos diversos ritos que são realizados com o morto. O medo dos mortos muitas vezes pode ser até maior do que o medo da própria morte, por isso em muitas sociedades são realizadas missas, os corpos são cremados, ou embalsamados, trazendo assim a ideia de que esse morto não vai voltar para importunar as pessoas que ficaram.
Um estudo realizado por um historiador francês durante 15 anos de pesquisa, Philippe Ariès (2003), mostra que a morte já passou por diversas fases, de acordo com o pensamento vigente nos períodos estudados. Ele nomeia esses períodos referidos como:
• “Morte domada”, aconteceu na época medieval. A morte era em casa, os moribundos compartilhavam de sua morte com todos.
• “Morte de si mesmo” – Idade Média – o temor de morrer passou a ser exacerbado, principalmente por causa de julgamentos que poderiam ocorrer depois da morte. O corpo do morto passa a ser escondido, é nessa época que os caixões são criados e diversas outras tradições como: usar determinada cor para representar o luto, as missas de corpo presente, os embalsamamentos (forma de negar a morte).
• “Vida no cadáver, vida na morte” – séc. XVII e XVIII – nesse período se acreditava que os corpos dos mortos poderiam ser utilizados como remédio para os que continuavam em vida. Muitas pessoas acreditavam que as secreções dos mortos, como o suor, poderiam servir como remédio para tumores ou hemorroidas, entre outros exemplos.
• “A morte do outro” – séc. XIX – a morte é vista de forma romântica, como a possibilidade de reencontro com os que já foram. Nasce aí também o espiritismo trazendo a idéia de vida após morte.
• “A morte invertida” – séc. XX – a morte é tida como algo que se precisa esconder: ao contrário da morte da época medieval, os mortos são retirados de casa e levados para os hospitais, onde na hora em que se morre são colocados biombos. A morte é tida como uma vergonha, como fracasso, como impotência, o que para a nossa sociedade capitalista representa algo repugnante.
A medicina de hoje tem diversas formas de evitar essa morte e prolongar uma vida muitas vezes, senão em sua maioria, quantitativamente. A questão da vontade dos indivíduos que estão acometidos de qualquer que seja a enfermidade é deixada de lado e o que interessa é fazer com que essa pessoa tenha alguns dias de vida, mesmo que ela esteja ligada a tubos, como sondas e tantos outros processos invasivos e dolorosos. Para a equipe médica a questão da morte fica muito encoberta, em suas faculdades só foram ensinados a cuidar da vida; quando os pacientes já não têm possibilidades de cura, são colocados de lado, pois eles são a comprovação da “impotência” dessa equipe. Eles sentem-se como se tivessem falhado em sua profissão e cada vez que eles olham para um paciente é reafirmado o seu erro.
Segundo alguns autores, a noção de morte pode ser caracterizada por fases da vida. Na infância, a morte é vista como reversível e a cultura apresentada hoje traz também a ideia de que esconder da criança é a melhor opção (TORRES, 1979, apud KOVÁCS, 1992, p. 52 e 53).
Nos adolescentes a morte é entendida como sendo uma grande contradição, pois, ao mesmo tempo em que o jovem está voltado para sua aquisição de identidade e sente-se por muitas vezes como um grande herói inabalável, tornando a morte muito distante, ela está sempre presente em suas atitudes de alto risco e inconsequentes.
No adulto a morte passa a dividir espaço com seus compromissos e responsabilidades para com seu lado profissional e afetivo. É nessa fase que surge a morte como possibilidade. Na vida adulta abandona-se a ideia de herói invencível e abraça-se a causa de que a morte sempre vence. Na velhice, que é nosso foco primordial, além da morte do corpo que está sendo comentada, o idoso tem de lidar com sua morte profissional, com a morte de suas funções corporais e intelectuais, entre outras. Nos dias de hoje, com a produtividade sendo o pilar de nossa sociedade, um idoso que não trabalha perde o valor, recobre-se de estigmas de deterioração e é colocado à margem da sociedade. Idoso é sinônimo de morte, apesar de todo o investimento em se prolongar a vida; a concepção de velhice ainda está muito ultrapassada em questão de valores.
Como forma de fundamentar e estruturar a pesquisa realizada, optou-se por um olhar realizado por meio da Psicologia Social. Mais especificamente pela Representação Social, teoria esta que teve seu berço, pode-se dizer, em 1898, com Émile Durkheim, em seu livro: Représentations individuelles et representations collectives, que trouxe reflexões sobre as Representações Coletivas, que foram conceituadas como: “(..) producciones mentales colectivas que transcienden a los individuos particulares y que forman parte del bagaje cultural de uma sociedad3” (IBAÑEZ4, apud GRAEFF, 2002). Essas representações tinham a característica de ser estáticas e eram transmitidas de geração em geração sem modificações, além de apresentarem a distinção entre indivíduo e sociedade. Mais tarde, Serge Moscovici (1961) introduz no meio acadêmico: La Psychanalyse: son image et son public, já com a ideia de Representações Sociais, não mais coletivas. De acordo com Moscovici (1978), Representação Social (RS) é:
(...) ‘uma preparação para a ação’, ela não o é somente na medida em que guia o comportamento, mas sobretudo na medida em que remodela e reconstitui os elementos do meio ambiente em que o comportamento deve ter lugar. Ela consegue incutir um sentido ao comportamento, integrá-lo numa rede de relações em que está vinculado ao seu objeto, fornecendo ao mesmo tempo as noções, as teorias e os fundos de observação que tornam essas relações estáveis e eficazes (MOSCOVICI,
1978, p. 49).
Ressalta-se que a Teoria das Representações Sociais não faz o estudo de qualquer conhecimento do “senso comum”. Apenas o saber compartilhado que se organiza em “teorias do senso comum” é considerado como representações. Essas teorias, apesar de serem “leigas”, sem um reconhecimento científico, arranjam-se e fazem sentido para um grupo determinado, orientando assim suas práticas. É importante dizer que essas representações variam de acordo com o contexto sócio-histórico-cultural do grupo estudado (SANTOS, 2005).
Entre as funções atribuídas à Teoria das Representações Sociais pode-se citar:
• Função de Saber: compreensão, explicação e sentido à realidade;
• Função Identitária: permite a identificação dos grupos sociais e a proteção de suas especificidades;
• Função de Orientação: direciona as práticas e os comportamentos;
• Função Justificadora: permite a justificativa, a posteriori, das práticas e dos comportamentos (MOREIRA e OLIVEIRA, 2000).
É importante salientar que, dentro da Teoria das Representações Sociais, existem dois conceitos que são essenciais para o entendimento e a estruturação da RS: o de objetivação e o de ancoragem. De acordo com Moscovici:
Ancoragem – esse é um processo que transforma algo estranho e perturbador, que nos intriga, em nosso sistema particular de categorias, e o compara com um paradigma de uma categoria que nós pensamos ser apropriada. (...) Ancorar é, pois, classificar e dar nome a alguma coisa (MOSCOVICI, 2003, p. 61).
Ao passo que a objetivação “(...) faz com que se torne real um esquema conceptual (...) Objetivar é reabsorver um excesso de significações materializando-as” (MOSCOVICI, 1978, p. 112 e 113).
Para se estudar fenômenos tão complexos, como a velhice e a morte com idosos, sendo estes conceitos envolvidos por representações construídas ao longo do tempo e permeados pela subjetividade, nada melhor que optar por uma teoria que leve em consideração estes aspectos: social e individual, cognitivo e afetivo.
Metodologia
Participantes
Foram selecionados 21 indivíduos com idade igual ou superior aos 60 anos, cadastrados nas unidades de Postos de Saúde da Família (PSF) da cidade de Carnaíba, com idades que variaram entre 61 e 90 anos. É importante salientar que todos os indivíduos tinham discernimento para escolher se desejavam ou não participar da pesquisa, considerando os aspectos mostrados a eles no “Termo de consentimento livre e esclarecido”, apresentavam suas funções cognitivas conservadas (não demonstravam possuir nenhum quadro demencial, ou patologia que comprometesse sua lucidez) e tinham suas habilidades físicas preservadas, ou seja, não apresentavam nenhuma enfermidade que atrapalhasse seu desempenho na realização das atividades que estavam sendo propostas (surdez, afasias ou ausência de linguagem oral). A coleta foi realizada no domicílio dos participantes.
Material
Para a coleta dos dados foi utilizado um roteiro de entrevista semiestruturado. Utilizou-se ainda um mp3 player para registrar a entrevista, assim como lápis e papel para alguma anotação relevante. O roteiro de entrevista tinha questões sobre a caracterização do contexto de vida com perguntas direcionadas a como essas pessoas estão vivendo e questões direcionadas à temática da morte, entre as quais se perguntava o que era morte, como se sentiam diante dela, entre outras. Com isso foi possível analisar como esses idosos do gênero masculino pensavam a morte e quais sentimentos relacionados a esta eram vivenciados.
Procedimento
Em primeiro lugar é importante salientar que este projeto de pesquisa seguiu as normas estabelecidas pela Comissão Nacional de Saúde na Resolução de nº 196, de 10 de outubro de 1996, com registro de número 077/07, sendo liberado para a coleta no dia 26 de junho de 2007. Após a liberação para a coleta, iniciou-se um contato com a Prefeitura da cidade, com o intuito de avaliar qual seria a melhor forma de encontrar esses participantes. A solução encontrada era realizar a pesquisa junto com as equipes de PSFs.
A grande vantagem de se realizar a pesquisa junto com os PSFs foi a utilização da listagem de sujeitos idosos, acelerando a localização dos participantes.
Depois da coleta, as entrevistas eram transcritas e foram analisadas com o ALCESTE (Analyse Lexicale par Contexte d’um Ensemble de Segments de Texte), software de análise textual. Para a análise no ALCESTE, em primeiro lugar faz-se a configuração nas transcrições (fonte Courier New; tamanho 10; com espaço simples; não pode haver palavras com todas as letras maiúsculas; não se pode ter: aspas, hífen, asterisco, porcentagem, cifrão; entre outros aspectos) para que elas fiquem compatíveis com o programa. As entrevistas precisam ser digitadas em um único arquivo do Word for Windows 2000 e salvo em texto-tx; isso é chamado de UCI (Unidade de Contexto Inicial). No início da entrevista de cada sujeito é colocada uma linha de identificação que comporta as variáveis que serão analisadas: sujeito, idade, nível socioeconômico, local onde foi feita a entrevista, entre outras (ARAÚJO, 2005; COSTA, 2001).
Após esta preparação, rodam-se os dados que separam a UCI em UCEs (Unidades de Contexto Elementar), que são pequenos segmentos do discurso do sujeito que serão agrupados e é calculada a sua frequência, fornecendo assim uma análise hierárquica e descendente das classes léxicosemânticas.
Com isso, temos assim uma análise quantitativa desse corpus com as frequências das palavras calculadas e verificada a significância das frequências por meio do teste Qui–quadrado. Para isso o software gera dois relatórios: um resumido e um completo, contendo todas as informações necessárias para a análise. Tem-se também a possibilidade de realizar uma análise qualitativa, uma vez que é feita a codificação das entrevistas e é apresentado o contexto em que as palavras mais frequentes aparecem. Além disso, nos resultados gerados pelo programa ainda tem-se a possibilidade de saber os sujeitos que fizeram menção a determinada palavra.
Resultados e Discussão
É importante salientar alguns aspectos que caracterizaram a amostra antes de se começar a fazer uma explicitação dos dados e traçar um paralelo com a teoria. O primeiro deles é quanto ao número de homens participantes, que no início da pesquisa se tinha o objetivo de atingir: 50, porém não foi possível a viabilidade deste quantitativo em decorrência de uma série de questões, entre elas:
• um fato constatado por intermédio de inúmeras pesquisas, entre elas: Lima-Costa, Peixoto & Giatti (2004); Chor, Duchiade & Jourdan (1992); Ipea (1999), é de que os homens morrem mais cedo que as mulheres, reduzindo assim o número de idosos na região;
• o enterro de um senhor que mobilizou muitos dos idosos, fazendo com que só as mulheres permanecessem em casa, em um dos dias da coleta de dados;
• os homens, por não realizarem serviços domésticos (sendo esta tradição na cidade), não permanecem em suas residências durante longos períodos.
Em segundo lugar pode-se destacar que todos os indivíduos entrevistados são aposentados e isso faz com que muitos deles não permaneçam realizando atividades consideradas trabalho (roça). Esse é o trabalho predominante na região e é considerado muito desgastante pelos próprios idosos, que se queixam de não poder mais realizá-lo em razão dos problemas de saúde. Este fato transforma a realidade desses sujeitos, principalmente os homens, que se autoconceituam como “come-dorme”.
A religião que teve o maior número de adeptos foi a católica, com 16 idosos, ao passo que a religião evangélica teve 2 e houve 3 sem religião. Nenhum dos entrevistados mencionou afinidade com a religião espírita.
As consequências da crença desses indivíduos serão apresentadas em um dos itens da análise. Entre os idosos entrevistados 6 se disseram viúvos, 13 casados e 2 separados.
Na análise realizada com o software ALCESTE, houve vários aspectos que foram enquadrados nas cinco classes em que o discurso dos participantes pôde ser dividido. As classes foram: contexto de vida, atividades diárias, problemas de saúde/tratamento, morte (conceito) e morte (seus atributos/sentimentos). De todo o material que foi analisado e trabalhado, o que mais chama atenção é que a última classe, morte (seus atributos e sentimentos), foi a que teve mais representatividade. Isso pode ser exemplificado com as falas a seguir:
“Como diz a história... a gente sofre demais... a minha pressão até subiu, minha mulher era como se fosse uma mãe pra mim. A gente fica como se tivesse morrido também. Que Deus me perdoe, eu achava melhor eu ter ido e ela ter ficado. Por que quem morreu, desapareceu do mundo e quem fica vai sofrer. É um sofrimento grande viver 2 pessoas numa casa, como viveu aqui, e a pessoa sair como ela saiu, é muito triste” (82 anos, viúvo, evangélico)
“... sinto uma falta muito grande, uma saudade grande...” (83 anos, divorciado, sem religião).
“... sinto muito, choro, tenho desgosto...” (77 anos, casado, católico).
O que se pode traçar como Representação Social (RS) da morte com idosos do gênero masculino da cidade escolhida é que a morte é traiçoeira, pois vem sem avisar e não escolhe a quem, além do que ela acarreta muito sofrimento emocional. Outra ideia que pareceu forte nos presentes dados é a de que a morte é objetivada na figura do idoso e do doente, sendo que quem fica mais doente é o próprio idoso:
“... a morte é uma coisa traiçoeira, por que o cabra nem espera e vai embora...” (77 anos, casado, católico).
A RS da morte traz a ideia do medo do desconhecido, que justifica o fato de os idosos a caracterizarem como traiçoeira e ruim. Ancora-se numa ideia religiosa trazida desde a Idade Média, onde nasceram os conceitos de céu, inferno e julgamento trazido pela Igreja Cristã. É aí que se percebe no discurso dos sujeitos como eles se apoiam em Deus para explicar e se confortar diante de um episódio tão abstrato e inexplicável. Vale salientar que a grande maioria dos entrevistados faz parte da religião católica, que tem suas raízes na Igreja Cristã da Idade Média (ARIÈS, 2003):
“... a morte, morreu, desapareceu desse mundo, aí só Deus é quem sabe julgar e dizer quem é que paga...” (68 anos, casado, católico).
As Representações Sociais que os idosos têm sobre a morte repercutem na forma com que eles lidam com esse fenômeno em seu dia a dia. Elas orientam sua conduta e organizam suas práticas sociais, pautando-as em valores e crenças coletivas com as quais compartilham, que por sua vez foram construídas em suas histórias de vida com experiências e informações significativas para eles (SANTOS, 2005). A esse respeito as autoras mencionam quatro funções da RS que podem ser identificadas no presente trabalho:
• função de saber – a Representação Social que os idosos têm sobre a morte parece servir como explicação, ou pelo menos uma justificativa para se explicar o fenômeno da morte. Se a morte é algo traiçoeiro e abstrato, ela é entregue nas mãos de Deus (religião) como forma de conformar algo tão avassalador, mesmo sabendo que por ser idoso ela está muito próxima; • Função de orientação – a incerteza ocasionada pelo desconhecido acarreta uma orientação na conduta desses indivíduos. A religião católica, com frequência, sugere que o que se fizer na Terra se relaciona com o que acontecerá depois da morte. Então, se muitos dos sujeitos relatam que rezam muito, vão à igreja, assistem à missa e choram a morte mesmo daqueles com quem não têm aproximação, podem se sentir correspondendo àquilo que é ensinado ou sugerido por sua religião;
• Função identitária – a RS permite que os sujeitos criem a identidade do grupo e se reconheçam como pertencentes a ele. Os idosos, em sua grande maioria, associaram a morte à sua própria faixa etária e reconheceram, portanto, que a morte se encontra mais próxima deles. Essa é uma ideia compartilhada fazendo com que este grupo possa se comunicar entre si e conduzir suas atitudes de forma que sejam satisfatórias para o grupo;
• Função justificadora – diante do que foi apresentado, a RS também serve como justificadora do comportamento, já que orienta sua conduta. Pode-se levantar a hipótese de que o velho reza muito ou assiste à missa como uma forma de se resguardar de um julgamento a posteriori, onde ele poderia ir para o inferno.
É interessante comparar que em pesquisa referida anteriormente, de Pinazo & Bueno (2004), os idosos apresentam uma visão mais naturalizada da morte, contrapondo-se aos resultados da presente pesquisa. O que se pode apontar como diferencial para estes resultados é a questão dos contextos socioculturais. A pesquisa de Pinazo & Bueno aconteceu na Espanha, ao passo que esta tem seu lócus numa cidade do interior do Estado de Pernambuco.
Algumas considerações
A presente pesquisa teve como objetivo principal investigar quais os significados atribuídos à morte pelos idosos do gênero masculino de um município do sertão pernambucano. Além disso, pretendeu-se realizar comparações a fim de verificar se variáveis como atividades desenvolvidas, religião, entre outras características da amostra, influenciavam na forma com a qual os idosos representavam a morte e se essa representação repercutia nas práticas sociais em lidar com o fenômeno morte.
Depois de analisadas com o software ALCESTE as 21 entrevistas realizadas com idosos do município, os resultados obtidos apontaram para significados atribuídos à morte com um certo tom pejorativo e carregados de sentimentos. Ao contrário do que se pensava, a morte numa cidade do interior do estado, por seus rituais, não se aproxima da “morte domada” que Ariès menciona em seu trabalho (2003), e, sim, da “morte invertida” que é encontrada em grandes centros urbanos. Palavras como traiçoeira, saudade, dor, tristeza, ruim foram mencionadas como características da morte. Isso se torna surpreendente por serem ditas por homens, que de acordo com a cultura local não expressam suas emoções em decorrência do machismo imperante nessa região.
Verificou-se que a religião, tanto católica quanto evangélica, opções dos idosos investigados, exercem influência na concepção que eles têm da morte, principalmente pelo medo do desconhecido que vem depois do morrer.
As ideias de julgamento de céu e inferno orientam e justificam as práticas dos idosos que rezam, vão à missa e tentam fazer o bem ao próximo muitas vezes por medo desse julgamento. E tudo é entregue nas mãos de Deus. A morte é um acontecimento que coloca esses idosos em contato com sentimentos muito dolorosos: saudade, dor, emoção, desgosto, falta, ruim, tristeza. Por essa explosão de sentimentos, a morte não é esperada por esses idosos de forma confortável e natural. Todos relatam que sabem que vão morrer, mas que preferem não pensar no assunto, porque senão ela chega mais cedo. Mais uma vez a incerteza da hora e de como a morte vai chegar é um motivo que gera angústia e um desconforto. A primeira resposta ao se perguntar o que é a morte para os entrevistados era: “não sei responder”. Aos poucos eles iam elaborando uma resposta que vinha carregada de emoção expressa por meio de suas falas, rostos e gestos.
A experiência de se fazer uma investigação relacionando dois temas que são considerados interditos em nossa sociedade, velhice e morte, abriu espaço para discuti-los no âmbito acadêmico. Houve muita dificuldade em encontrar itens bibliográficos que falassem sobre a morte e, principalmente, estudos que dissessem respeito a aspectos psicológicos do envelhecimento. Isso foi uma das motivações que levaram à realização da investigação com este teor.
Esta pesquisa pode nos abrir um leque de opções de outras investigações que levem em consideração o idoso do gênero masculino que muitas vezes é invisível aos olhos dos pesquisadores, principalmente na área da Psicologia.
Referências Bibliográficas
ARAÚJO, Ludgleyson Fernandes de. Representações sociais da velhice: um estudo comparativo entre idosos de instituições de longa permanência e de grupos de convivência. 2005. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) – Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa (não publicada).
ÁRIES, Philippe. História da morte no Ocidente. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
BRASIL. Ministério da Saúde. Estatuto do Idoso. 1. ed., 2. reimpressão. Brasília: Ministério da Saúde, 2003. 70p.
BUENO, Francisco da Silveira. Dicionário Escolar da Língua Portuguesa. 11. ed. Rio de Janeiro: FENAME, 1980.
CHOR, Dóra; DUCHIADE, Milena Piraccini; JOURDAN, Angela Maria Fernandes. Diferencial de mortalidade em homens e mulheres em localidade da Região Sudeste, Brasil: 1960, 1970 e 1980. Rev. Saúde Pública, v. 26, n. 4, p. 246-255, ago. 1992.
COSTA, Filomena Guterres. Representação social da velhice em idosos participantes de instituições para a terceira idade. 2001. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Universidade Católica de Goiás, Goiânia (não publicada).
GRAEFF, Lucas. Representações sociais da aposentadoria. Textos sobre Envelhecimento, Rio de Janeiro, v. 4, n. 7, abril 2002. Disponível em: <http://www.unati.uerj.br/tse/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-59282002000100003&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 21 jul. 2006.
INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA – IPEA. Como vai o idoso brasileiro?. Rio de Janeiro: Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, 1999. p. 63.
KOVÁCS, Maria Júlia. Morte e desenvolvimento humano. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1992.
LIMA-COSTA, Maria Fernanda; PEIXOTO, Sérgio Viana; GIATTI, Luana. Tendências da mortalidade entre idosos brasileiros (1980-2000). Epidemiol. Serv. Saúde, v. 13, n. 4, p. 217-228, dez. 2004.
MOREIRA, Antonia S. P.; OLIVEIRA, Cristina de. Estudos interdisciplinares de representação social. 2. ed. Goiânia: AB, 2000. p. 151-159.
MOSCOVICI, Serge. A representação social da Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.
________________. Representações sociais: investigação em psicologia social. 4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003.
PINAZO, Sacramento; BUENO, José R. Reflexiones acerca del final de la vida: um estúdio sobre las representaciones sociales de la muerte en mayores de 65 anõs. Valência, 2004. Disponível em: <http://www.nexusediciones.com/pdf/gero2004_1/g-14-1-004.pdf>. Acesso em: 2 fev. 2007.
SANTOS, Maria de Fátima Souza. A Teoria das Representações Sociais. In: SANTOS, Maria de Fátima Souza; ALMEIDA, Leda Maria (Orgs.). Diálogos com a Teoria das Representações Sociais. Recife: Ed. Universitária da UFPE/UFAL, 2005. p. 15-38