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Corpo e sexualidade nas experiências de envelhecimento de homens gays em São Paulo
JÚLIO ASSIS SIMÕES
Introdução
Na expansão e diversificação dos espaços de sociabilidade e trocas eróticas homossexuais masculinas nas grandes cidades brasileiras, homens mais velhos se fazem também mais visíveis e presentes. Na cidade de São Paulo, um ponto especial de concentração de homens mais velhos está no Centro, na avenida Vieira de Carvalho, no quarteirão entre a Praça da República e a Rua Aurora, especialmente na calçada do lado esquerdo de quem segue na direção ao Largo do Arouche. Os mais velhos também estão em algumas boates da região, notadamente “ABC Bailão”, que já teve os antigos apelidos de “desmanche”, “festa baile” e “INPS”.
A presença de homens mais velhos nesses lugares de sociabilidade homossexual no centro de São Paulo, chamados de “coroas”, já era notada desde meados dos anos 1980, mas ela se tornou mais visível nos anos recentes. “Coroa”, “tiozão”, “tiozinho” e categorias assemelhadas variantes parecem designar o homem maduro de apresentação mais discreta e viril, que tem saúde, disposição física, apresentação pessoal e dinheiro suficiente para frequentar espaços de sociabilidade homossexual, encontrar amigos, beber, se divertir e também tentar a sorte no mercado da paquera.
Embora mais “visível”, no sentido de não se restringir ao espaço dos bares à meia-luz , o “coroa” parece corporificar um tipo de personagem público que remete aos “entendidos” dos anos 1970: homens que valorizavam a aparência masculina e procuravam desvincular suas vivências de homossexualidade das convenções de afetação, afeminação e papel exclusivamente “passivo” no ato sexual (Guimarães, 2004; Fry, 1982).
Parece promissor pensar os atuais “coroas” como os “entendidos” que envelheceram. Além disso, podemos notar nesses “coroas” uma série de disposições associadas a representações modernas de envelhecimento ativo.
Tentando avaliar o modo como esses homens homossexuais mais velhos lidam com o envelhecimento, em diálogo com a produção de novas identidades ligadas à homossexualidade bem como com representações de envelhecimento bem-sucedido, apresento a seguir uma análise preliminar de seus pontos de vista sobre corpo, sexualidade e relacionamentos, a partir de uma tessitura de falas proferidas em entrevistas em profundidade, conduzidas com uma rede homens homossexuais de camadas médias em São Paulo, na maioria brancos, com idades variando entre 59 e 70 anos – o que se poderia chamar mais propriamente de “envelhescentes” e não tanto de idosos.3 O objetivo aqui não é mais do que realizar um contraponto etnográfico que ajude a sinalizar algumas linhas de interpretação ainda a ser aprofundadas.
Homossexualidade e envelhecimento ativo
A primeira impressão trazida pelos “coroas”, de uma velhice não-vitimizada, sexualizada, orgulhosa, com disposição para a vida pública noturna e, ainda por cima, associada à homossexualidade, chama a atenção por contrastar vivamente com a imagem mais usual do envelhecimento homossexual, a qual tendia a compor um quadro de solidão, isolamento, depressão e perturbações psicológicas crescentes, desde a meia-idade precoce até a velhice e seu amargo fim. Seu retrato sociológico foi feito por John Gagnon e William Simon, no célebre estudo sobre a conduta sexual, publicado na década de 1970 (Gagnon e Simon , 2005 [1973]).
Gagnon e Simon situavam o início dos sentimentos de envelhecimento, para os homens homossexuais, já na passagem dos trinta anos, ou, no mais tardar, aos quarenta, numa idade em que o declínio da atratividade sexual entraria em tensão crescente com o estilo de vida centrado na relevância da sexualidade. Um impacto especialmente negativo seria provocado pelas mudanças na aparência física: cabelos grisalhos e rugas podem compor um padrão estético atraente para os homens heterossexuais, indicadores de caráter e sucesso; mas, entre os homossexuais, seriam considerados repulsivos. Nesse período, de modo geral, a redução das oportunidades de vida desencadearia sentimentos pesados de depressão e solidão, que Simon e Gagnon consideraram ser semelhantes aos que presumivelmente afetariam as mulheres heterossexuais solteiras ou divorciadas. Uma transição bem sucedida por essa fase de crise dependeria fortemente da afeição e do apoio dos outros próximos, o que deixaria os homossexuais em séria desvantagem, porque não contariam com os vínculos familiares dos quais se poderia esperar apoio.
Em contraste com isso, os “coroas” parecem ter mais a ver com concepções e práticas relacionadas a um envelhecimento positivado, que procura enfatizar as vantagens e enriquecimentos que a maturidade traz, bem como as possibilidades de reinterpretar e reconstruir o corpo e o envelhecimento. Vários autores chamaram a atenção para o papel desempenhado pela gerontologia na desconstrução das concepções de periodização da vida baseadas no reconhecimento de etapas específicas de desenvolvimento, estabilidade e declínio, substituindo-as pela imagem da maturidade como um “platô indefinidamente extenso de consumo ativo e agradável” (Feath erston e, 1994)5. Nessa desconstrução, o que importa é a capacidade de conservar o controle
sobre movimentos e funções corporais, sobre as emoções e as faculdades cognitivas – atributos básicos que permitem que uma pessoa seja reconhecida, valorizada, levada em conta em qualquer relação social. A velhice torna-se, então, a falência desses controles e competências; e em contrapartida, os atributos que usualmente marcavam a juventude, como o esforço de exploração e a construção da identidade, são transpostos à vida adulta e à maturidade, vistas agora como abertas à variação e à reinvenção pessoal. Acrescente-se a isso o encontro da gerontologia com a sexologia, e a nova cruzada que ambas passam a promover contra “o mito da velhice assexuada”. Num padrão recorrente e reconhecido de operação desses saberes, que se apropriam seletivamente das problematizações e reflexões das ciências sociais, esse mito tende a ser concebido como uma “construção cultural”; no entanto, a intervenção destinada a combatê-lo se dá no nível do indivíduo e envolve a dimensão de seu corpo (Brigeiro, 2003).
Nota-se que o declínio da atividade sexual, relacionado à idade, tende a ser cada vez menos tolerado, sendo visto como uma alteração do bem-estar corporal passível de tratamento médico.
Boa parte das referências que inspiram o tratamento da sexualidade na gerontologia provém de desenvolvimentos da tradição empírica da sexologia que justapuseram, de forma tensa, a visão clínica ou “hidráulica” do comportamento sexual humano e a insistência na importância do conteúdo emocional e da comunicação nas relações sexuais humanas (Robinson, 1977)
Essa compreensão da sexualidade como uma técnica ao alcance de todos, a ser aprendida, renovada e preservada favoreceu as intervenções terapêuticas e dá ênfase crescente à dimensão mecânica da atividade sexual, centrada no organismo e desvinculada das parcerias, em termos de “disfunções do orgasmo”. Isso se expressa, entre outras coisas, na explicação puramente orgânica da impotência masculina, como “distúrbio da função erétil”, e na comercialização de medicamentos, como o Viagra, difundidos como o principal (senão único) tratamento disponível (Sohn, 2008).
Critérios importantes para avaliar o envelhecimento bem-sucedido são: o cuidado na prevenção de doenças; a manutenção de um elevado padrão de funcionamento cognitivo e físico; e o engajamento na vida. Nessa medida, são incentivadas atitudes que fomentem uma postura mais reflexiva e atenta ao próprio corpo e ao desenvolvimento de formas de “cuidado de si”, que levem o indivíduo operar judiciosamente em meio a alternativas de atividade e desengajamento; ou seja, tanto no sentido de rever valores e crenças sobre seu corpo, sua idade e sua sexualidade, quanto no sentido de se informar, aceitar e lidar positivamente com as mudanças trazidas pelo envelhecimento.
Tendo em mente este pano de fundo geral, passaremos agora à discussão das visões de envelhecimento homossexual com base no que pensam e dizem os próprios gays maduros.
Como veremos adiante, as narrativas indicam uma visão do envelhecimento como processo ambivalente, que envolve tanto perdas inevitáveis como novos campos de possibilidades.
Manejando o envelhecimento
Duas idéias ressaltam nas visões sobre envelhecimento expressas pelos entrevistados. Uma é que envelhecer é um processo inevitável, com decorrentes limitações físicas, algumas manejáveis, outras não. Como resumiu Duílio, 59 anos: Envelhecer é uma coisa louca. O seu corpo começa a despencar. Não tem como, né. Saber administrar isso é que é importante.
A outra idéia é que eles se sentem comparativamente mais jovens do que as pessoas que observam no cotidiano e que teriam a mesma idade. Uma das declarações mais eloquentes nesse sentido foi a de Abel6, 65 anos, e que é soropositivo há quase duas décadas:
Eu não sei o que é ter 65 anos... Quando vou ao banco e deparo com a fila dos idosos, eu não me vejo em nenhuma daquelas pessoas, no porte, no jeito. Eu me vejo diferente. Eu me sinto mais ativo, mais atirado, mais vivo. E as outras pessoas estão tão mais abatidas, tão caídas. Eu não vejo aquilo como futuro pra mim. Acho que esse modelo de velho para as pessoas que passaram pelo que eu já passei, ainda está para ser criado.
Abel tem uma trajetória que o aproxima, em parte, da figura de um baby-boomer brasileiro, a coorte geracional que, à semelhança dos seus congêneres nos países ocidentais do Norte, contribuiu decisivamente tanto para a produção das modernas “culturas gays” como de novos discursos e imagens mais “positivas” do envelhecimento. Abel nasceu em 1945, fez parte da primeira onda do movimento homossexual brasileiro, no final dos anos 1970, assim com foi dos primeiros a militar nas associações civis dedicadas ao combate à AIDS, em meados dos anos 1980. Assistiu ao “desbunde”, desfrutou da primeira eclosão do espetáculo de consumo gay e foi também atingido, um pouco mais tarde, já na virada dos anos 1990, pelo HIV. Sua trajetória política o singulariza em relação aos demais entrevistados desta rede, e não surpreende, portanto, que ele seja um dos principais porta-vozes do mote “eu não me sinto velho”. Mas é o mesmo Abel que também apresentou as visões mais sombrias quando refletia sobre as perspectivas do envelhecimento homossexual de forma mais geral, e articulava essa reflexão a uma interpretação da própria conduta que o levou a contrair o HIV.
As amizades entre os homossexuais são fortes, mas também são marcadas por certo humor meio maldoso, meio maldito. Acho que nós nos detestamos um pouco. À medida que a gente não aceita o que é, passa a odiar o outro também. Isso tem consequências muito grandes ao longo da vida da gente e obviamente na velhice.
Eu costumo dizer que o homossexual é a criatura do momento. Como ao homossexual não é dado uma outra perspectiva de vida como é dado aos outros segmentos da sociedade, ele pensa: vou aproveitar esse momento, porque depois não sei o que vem, não tem outra perspectiva mesmo, não vai casar, não vai ter filhos. O desejo está gritando na frente. Vai saber quando vai ter outra oportunidade. Você se joga, se joga mesmo.
São palavras que lembram, em parte, o diagnóstico sociológico de Gagnon e Simon, referido acima. Elas evocam também a visão um tanto neo-romântica que marcou boa parte da geração rebelde a que Abel pertence, na valorização da juventude e de suas possibilidades como os verdadeiros pontos altos da vida, em contraposição a uma espécie de preservação mesquinha e insossa rumo a uma velhice confortável (Feath erston e, 1994). Mas ela também traz uma visão recorrente nos entrevistados, a de realçarem a centralidade da sexualidade em suas vidas, e especialmente a força do desejo sexual que experimentaram. Sob essa perspectiva, a “maturidade”, um termo que eles referem também com frequência, é vista de forma positiva. Ela possibilita acalmar o desejo intenso e a atentar mais para o “cuidado de si”, inclusive no sentido de cultivar outras formas de prazer, sensuais ou não.
A sexualidade já foi uma parte maior da minha vida. Quando era mais jovem meu desejo será intenso, meu desejo de transar era mais intenso ainda. Atualmente eu sinto desejo, mas não é mais como era. Se eu ficar sem transar mais de uma semana, dez, quinze, vinte dias, um mês ou dois, isso não vai ser o fim do mundo, porque eu tenho outras coisas que ocupam meu tempo. Cuidar de alguém, sair de casa ou ficar quieto no quarto vendo um filme... São coisas que preenchem mais meu tempo agora como não preenchiam antes. (Abel)
A sexualidade hoje está morna. …Meus amigos estão igual também. Baixaram muito a bola. Maturidade trouxe tranquilidade. Inclusive no desejo sexual, que eu tinha, que era um fogo, uma coisa incontrolável... (Fausto)
Ainda nas visões atuais sobre a sexualidade, aparece a ideia de redução da quantidade em favor da qualidade:
Fiquei mais contido. Dei uma reduzida . Sexualmente eu fiquei mais transado. É uma coisa de você tomar as rédeas do seu prazer, é de sapiência, maturidade. Minha sexualidade era mais hormônio mesmo, mais tesão.
Era uma ejaculação precoce. Hoje você se controla. Você busca o prazer no outro. Você troca prazeres, carícias... Sente seu corpo e o corpo do outro mais presentes. (Duílio)
As referências ao corpo, e às mudanças do corpo, são muito marcantes nas entrevistas. Estamos diante de um conjunto de pessoas que demonstra um grande senso de observação do próprio corpo e do impacto que o corpo tem na sociabilidade e nos encontros sociais em diversos planos. Os sinais de envelhecimento corporal são meticulosamente investigados, reconhecidos e elaborados.
Todos se assumem como vaidosos, ainda que com modulações e matizes. Rugas, queda de cabelos, bolsas nos olhos, flacidez nos membros, gordura, barriga, nádegas murchas, dificuldades de manter ereção são todos motivos de lamento, preocupação, alguma depressão, mas não conformismo. A tendência é que busquem caminhos para reverter ou amenizar o que é visto como prejuízo estético decorrente do envelhecimento. Os entrevistados afirmam recorrer a tecnologias de manutenção corporal e a profissionais especializados sempre que possível. Embora expressem também limites nisso: cirurgias plásticas para eliminar bolsas de gordura nos olhos, por exemplo, são aceitas e recomendadas, mas há resistência a intervenções estéticas mais radicais, de “puxar tudo”.
Calvos lamentam a perda dos cabelos, implantes são tecnologias aceitáveis, mas tingir os cabelos ou usar peruca nem tanto. Sem desconsiderar o argumento que desqualifica essas alternativas por seus resultados estéticos inadequados, pode ser interessante especular também se esse tipo de atitude revela fronteiras de um tipo de apresentação e performance de masculinidade que os entrevistados não querem arriscar. Coerentemente com a sugestão de que se trata de entendidos que envelheceram, esses homens têm cuidado em conservar certas insígnias de masculinidade que também procuram nos próprios parceiros. Esses homens não são afetados, cultivam uma espécie de virilidade suave, preferem os discretos e não se interessam eroticamente pelos efeminados.
Como resumiu Fausto: Pode até ser um Brad Pitt, que, se for borboleta, perco todo o tesão.
O cuidado e a atenção com que vigiam e verificam seus corpos é, em parte, correlato ao recurso regular que fazem dos especialistas médicos. Consultam médicos regularmente e adotam, de modo geral, as prescrições destes com vistas a lidar com a saúde. Adoção de dietas, com diminuição ou eliminação do consumo de café, cigarro, álcool, refrigerantes, gorduras, carne vermelha foram frequentemente mencionadas nas entrevistas. Mas os entrevistados não revelam a mesma disposição para aderir à prática de atividades físicas.
Todos mencionam recomendações médicas nesse sentido, mas só aderem efetivamente à ginástica aqueles que foram completamente convencidos de que terão comprometimentos físicos sérios se não o fizerem. Todos dizem ter preguiça para ir à academia, ou mesmo para recorrer a aparelhos de ginástica de que podem eventualmentedispor em suas moradias ou condomínios.
O cuidado com o corpo se estende à preocupação com a apresentação corporal em geral, no que se refere à seleção e uso de roupas e acessórios, especialmente no lazer e na paquera. Com modulações, essa preocupação diz se guiar pelo esforço de encontrar um meio termo entre se mostrar “descontraído”, e ao mesmo tempo evitar usar indumentária que não mais consideram adequada à idade que têm. Como resume um entrevistado:
Hoje procuro uma roupa que não me deixe parecer um tiozinho careta, mas não posso me vestir como um garoto de 25 anos, a camisetinha justinha, a calça com a bunda aparecendo… (Cláudio)
Alguns entrevistados têm parcerias estáveis, e nesses casos elas são sempre com homens mais jovens do que eles. As diferenças de idade variam, de 10 anos a até mais de 30 anos. Os entrevistados são todos muito críticos dos jovens – sendo a crítica em geral referida em termos como “têm corpo bonitinho, mas não têm conversa”; ou “são afoitos, não sabem transar direito”. Mas, mesmo quando dizem preferir os maduros, acrescentam sempre: “mas não tão maduros quanto eu”.
As pesquisas feitas nas Paradas do Orgulho GLBT no Rio de Janeiro e em São Paulo, em 2004 e 2005, respectivamente, indicaram que a preferência por parceiros mais velhos, entre os homens homossexuais, é mais marcada nas faixas de idade mais jovens e vai diminuído progressivamente à medida que a idade sobe, atingindo seu menor índice na faixa dos 40 e mais. (Carrara e Ramos , 2005; Carrara, Ramos , Simões e Facchini, 2006).
O fato de que o “coroa” ou o “paizão” sejam personagens relativamente frequentes em contos pornográficos gays veiculados por revistas e outros meios especializados de difusão da dita “cultura gay”, ou, ainda em festas de clubes de orgia, são também outro indício de que os mais velhos constituem um foco de interesse erótico nesse universo, mesmo que seja no segmento das chamadas “estéticas alternativas”. Isso, em linhas gerais, sugere condições favoráveis à formação de parcerias intergeracionais, baseadas em mútua atração entre mais velhos e mais novos.
Essas relações podem se dar tanto à base de parcerias mais igualitárias quanto à base de relações mais assumidamente transacionais, em que o mais velho retribui os favores sexuais do mais jovem por meio de uma série diversa de contraprestações materiais e simbólicas - tais como levar a restaurantes, cinema, teatro, exposições e espetáculos em geral, oferecer pequenos presentes e até mesmo oferecer suporte a outras pessoas com quem o rapaz mantém relações de parentesco e convivência.
Levando tudo isso em conta, pode-se dizer que o problema para os mais velhos, no circuito de sociabilidade que estamos enfocando, não é tanto a falta de interesse dos mais jovens, mas a necessidade de administrar esse interesse. Ser masculino e discreto parece ser também uma maneira de se proteger desses riscos, ainda que essa forma de proteção implique seus próprios riscos. Por exemplo, faz parte desse código de masculinidade pagar as despesas, quando se está com um jovem acompanhante. Pagar a despesa parece ser uma forma de mostrar independência, de atrair o interesse do mais jovem e manter o controle da situação
Mas é também a atitude que deixa o mais velho sujeito a formas de exploração material. Das transações cotidianas eventualmente percebidas como “exploração”, provêm as suspeitas sobre as reais intenções do parceiro jovem, assim como as acusações dirigidas a este, de falta de reconhecimento, de insensibilidade ou de egoísmo. Sobre isso, um entrevistado observou:
Se eu fosse procurar alguém mais jovem, prefiro ir de jeans e camiseta para parecer mais igual. Se eu for muito arrumadinho, ele poderá ficar interessado no que eu pareço e no que eu tenho, não no que eu sou. Tenho um amigo, que quando conhece alguém, a primeira coisa que ele faz é mostrar o carro novo dele. Depois passa meses reclamando que o cara é interesseiro. E eu falo: você deu a oportunidade de ele ser.
Percebo que à medida que fui envelhecendo fiquei mais centrado nessas coisas. Porque eu tive muitas experiências com michês…
Tem michê de grana e tem aquele que sai contigo sem pedir grana, mas você é que sustenta. Os dois casos. Mas, pelo menos, no primeiro momento você consegue saber se a pessoa está interessada em você um pouco pelo menos e não só no que você tem. É claro que se você já chega com um puta carrão, o cara vai ficar apaixonado. Pelo carro. (Cláudio)
Se essas prescrições de prudência não são exclusivas das relações homoeróticas que envolvem os mais velhos, entre estes elas parecem incidir com mais força, tendo em vista os estereótipos negativos relacionados à própria velhice e potencializados pelo estigma da homossexualidade.
As “tias velhas” patéticas, afeminadas, desprovidas de atrativos e meio gagás; as “bichas amargas” solitárias, maledicentes e deprimidas; as “mariconas” desesperadas por companhia e capazes de atacar qualquer jovem incauto: todas essas imagens compõem um elenco de assombrações que parece pesar sobre os homens homossexuais mais velhos como “virtualidades disciplinadoras”. São categorias fantasmagóricas das quais se deseja fugir, já que a identificação com elas realça o ridículo e o ostracismo daquele que é incapaz de governar o próprio corpo e os próprios desejos – condição que obrigaria ao desengajamento e à renúncia final à sexualidade, o que nenhum dos entrevistados parece desejar.
Considerações finais
Estes comentários exploratórios sugerem algumas linhas de interpretação que devem ser mais exploradas. Vou mencionar sinteticamente duas delas, à guisa de conclusão.
Uma parece ser combinação singular de marcas de gênero, sexualidade e geração que esses entrevistados conformam, ao expressarem uma relação extremamente reflexiva com o próprio corpo e uma considerável preocupação com “cuidados de si”. Retomamos aqui a formulação sobre uma relação reflexiva com o corpo, proposta no trabalho já clássico de Boltanski (2004 [1977]), em termos do grau de interesse e atenção que se confere ao próprio corpo, sua aparência, suas sensações, do modo de falar sobre o corpo, de exibi-lo, de agenciá-lo; assim como em termos da demanda por regras, instruções e conselhos difundidos e comercializados por diferentes tipos de especialistas do corpo e da sexualidade. Boltanski sugeriu uma variação de gênero e classe na configuração de uma relação mais sensitiva com o corpo, ao ressaltar que as mulheres e os membros das classes altas escutariam seus corpos mais facilmente e seriam mais treinados na percepção e na expressão de suas sensações do que os homens e os membros das classes populares – visto que estes seriam socialmente mais suscetíveis à necessidade de agir fisicamente de forma mais intensa.
Diante da abrangência atual dos discursos e intervenções que valorizam de forma extrema a boa aparência e o bem-estar corporal, bem como superpõem visões hedonistas e sanitárias da sexualidade, somos autorizados a supor que aquelas correlações de classe e gênero sofreram deslocamentos significativos e devem se manifestar em combinações remodeladas.
Seria o caso de averiguar o quanto essas manifestações se distinguem das que podem ser vistas (ou não ser vistas) em homens nãogays na mesma faixa etária e na mesma situação de classe.
A questão a geração parece importante aqui, pois uma observação impressionista sugere que preocupações de caráter “metrossexuais” semelhantes às dos entrevistados podem ser mais facilmente encontradas entre homens hoje na casa dos 40 anos, na mesma situação de classe.
O que poderia sugerir um papel talvez relevante para essa coorte geracional no sentido de veicular imagens de masculinidade corporalmente reflexiva para um público masculino mais amplo, para além da homossexualidade.
A outra observação, que matiza sociológica e historicamente a anterior, sugere que os cuidados com o corpo e com a saúde (que parecem distinguir não só essa geração de homens gays mais velhos, mas também os mais jovens, de forma crescente), tenha a ver com a centralidade que a questão da saúde corporal alcançou não apenas por força de todo maquinário a serviço da valorização da beleza juvenil e das tecnologias de produção e manutenção corporal – que fizeram com que a beleza deixasse de ser um dom para se tornar uma meta alcançável por todos mediante disciplina e tecnologia adequadas (Malysse, 2002) - mas também por conta do impacto da pandemia do HIV-Aids. A AIDS reatualizou a associação entre homossexualidade e doença, bem como a articulação entre prevenção, vigilância sobre os possíveis agentes contaminadores e os cuidados com a saúde.
As sondagens epidemiológicas buscando mapear comportamentos de risco contribuíram para ressanitizar o discurso sobre a sexualidade e deslocaram a ênfase crescentemente hedonista que marcou a experiência da coorte geracional dos entrevistados. Parece interessante investigar até que ponto esses dois fenômenos – a emergência do HIVAids como perigo global e a reprivatização do cuidado com a saúde e com o corpo – influenciaram-se mutuamente na experiência destes homens.
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