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Luis Pérez-Oramas

O curador de arte latino-americana do Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), Luis Pérez-Oramas, assume a curadoria da 30ª Bienal de São Paulo, intitulada A Iminência das Poéticas, que ocorrerá entre 7 de setembro e 9 de dezembro.

De licença temporária da instituição americana, o venezuelano dá forma ao evento que busca instaurar-se como uma plataforma de encontro para a diversidade das poéticas artísticas. Oramas é escritor, poeta e historiador, além de ser PhD em História da Arte pela École des Hautes Études em Sciences Sociales, em Paris, e sempre manteve uma forte ligação com a arte brasileira.

Em entrevista à Revista E, ele expõe a relação atual entre os países latino-americanos, fala sobre o papel da modernidade na construção das cenas artísticas hoje, compara a produção brasileira com a dos países vizinhos e ainda explica a linha que segue na curadoria da Bienal.

“A modernidade trouxe para a nossa sociedade a possibilidade de constituir cenas artísticas consistentes, fundamentadas em uma história local e em um entendimento do lugar como nunca antes na história da América Latina”, diz. “Os grandes artistas são os que produzem grandes obras, ainda que elas não produzam fascinação.” A seguir, trechos.

Você acha que o Brasil se relaciona pouco com seus vizinhos latino-americanos?

Eu acho que nós, os latino-americanos, temos um relacionamento que passou sempre pela Europa. Nas aulas de história que tive na Venezuela, quando menino, falava-se do Simon Bolívar (1783-1830) [revolucionário sul-americano nascido na Venezuela e responsável pela independência da Venezuela, Colômbia, Peru e Equador] e da última batalha da independência latino-americana, que não tinha credibilidade em Caracas.

Chegavam soldados feridos e ninguém acreditava na vitória, até que um jornal espanhol noticiou o sucesso da batalha. É uma síndrome, é sempre assim. Nós não acreditamos na nossa grandeza até que ela seja legitimada na Europa e nos Estados Unidos. Durante muito tempo, os artistas latino-americanos se conheciam na França, em Roma, em Londres, em Nova York. Nossos países se relacionaram culturalmente fora da América, como se precisássemos da visão estrangeira – às vezes alienada e às vezes alienante – para nos reconhecer. Dito isso e reconhecido esse fato, eu acho que as últimas décadas do século 20 transformaram essa situação.

Você acredita que melhorou?

Melhorou por diversas razões, principalmente porque as diásporas latino-americanas para o exterior criaram um estado de consciência lá fora. Os grandes atores culturais da América Latina resolveram os obstáculos políticos dos anos 1960 e 1970 porque alguns dos conflitos mais graves que fraturaram a possibilidade de reconhecimento interno foram superados, com mais ou menos sucesso, na Colômbia, na América Central etc. e por ter finalmente algum sistema de intercâmbio contínuo pelo mercado e produções propriamente acadêmicas produzidas na América Latina.

Estamos hoje tendo uma situação inédita na história da cultura latino-americana na qual, por exemplo, São Paulo é uma referência para os artistas argentinos, colombianos, venezuelanos. A força do mercado de arte está aqui e algumas instituições cruciais de São Paulo alcançaram um grande nível, como a Pinacoteca [do Estado de São Paulo] e o Museu de Arte Moderna (MAM).

Os artistas latino-americanos vêm sistematicamente para o Brasil e, ao perceber isso, os artistas brasileiros também se interessam por outras cenas artísticas latino-americanas. Além disso, é ainda mais significativo o que está acontecendo ao mesmo tempo no México, na Venezuela, na Colômbia, na Argentina, no Chile, no Peru e no Uruguai. Os artistas desses lugares estão produzindo obras conscientes, da história recente, das tradições artísticas modernas e contemporâneas desses lugares.

Como você acredita que houve esse retorno do olhar para a América Latina? O final dos períodos de ditaduras acabou levando à necessidade de descobrir suas histórias?

Eu não atribuiria esse fato somente a uma razão político-econômica. Apesar de toda a crítica à modernidade que nós temos feito, como se o projeto moderno tivesse fracassado, ele também obteve sucesso, para não ser maniqueísta. Eu acho que a modernidade trouxe para a nossa sociedade a possibilidade de constituir cenas artísticas consistentes, fundamentadas em uma história local e em um entendimento do lugar como nunca antes na história da América Latina.

Apesar do desastre que é a Venezuela hoje, a geração de intelectuais e artistas modernos foi a base para que os artistas pudessem produzir uma obra simbólica pensando em sua inserção local. Se existe um caso único na América Latina, esse caso é o Brasil, que, a partir da Semana Moderna de 1922, produz consistentemente cinco gerações de artistas com uma força incrível, capaz de construir uma inflexão não só na cultura local, mas também na internacional. Isso você não acha em lugar nenhum.

Com relação à questão da arte urbana, na produção contemporânea venezuelana e até na peruana, o dado indígena é muito mais forte que no Brasil. Como você vê essas características de formação?

Temos países em que os eixos são México e Peru, passando pela América Central, Guatemala, curiosamente menos Costa Rica e Honduras, Colômbia, Equador, Bolívia, Peru e até Chile, onde o projeto moderno nacional passou pela invenção de uma narrativa de origem pré-hispânica, pré-colombiana.

O projeto moderno desses países passou por uma invenção de narrativa de origem antieuropeia e fundamentalmente pré-europeia. No projeto moderno de países como Venezuela, Brasil, Argentina, na ausência de grandes culturas pré-colombianas, esse eixo que também inclui Cuba e Porto Rico, Panamá, Costa Rica tinha que ser inventado e passou pela pulsão prospectiva de uma modernidade total. Essa modernidade não acontece através de uma narrativa pré-europeia. Aí você tem dois modelos totalmente diferentes.

Para mim é importante entender que o muralismo mexicano é tão moderno quanto os muros concretos de Brasília ou como a arte concreta paulistana. É diferente. Um passa pela ficção de origem da cultura pré-colombiana, e o outro passa pela pulsão futurista da modernidade que, muitas vezes, foi acompanhada do autoritarismo político. O que eu identifico como cultura urbana é a classe média que existe gloriosamente no Brasil, que vai da Tropicália à telenovela, que vai da poesia urbana ao grafite, à Bienal de São Paulo.

Isso também existe um pouco na Venezuela e na Argentina. É totalmente diferente a possibilidade de uma cultura urbana em países como o Peru ou como o México, onde a presença real e simbólica do indígena é um fato antropológico inegável. O grande capitalista desse problema, em termos de linguagem plástica, seria o Torres Garcia [artista uruguaio que vivenciou diferentes vertentes da arte construtiva do século 20], que no Uruguai, vindo da Europa (1934 e 1948), resolve uma equação entre a modernidade urbana e a ideia do construtivismo baseado nos registros construtivos das culturas pré-colombianas.

Inventar uma modernidade em termos de linguagem que seja universal, mas que tenha uma base na memória primária das culturas aborígenes, é uma tentação que todo latino-americano tem, seja ele do México, Peru ou Brasil. A cultura moderna urbana de classe média é um fato democrático que se deu primeiro no Brasil, a partir do movimento da Tropicália, se apropriando da ideia do canibalismo, que é fundadora do projeto moderno brasileiro. Esse fato tem a ver com a presença de uma cultura pré-europeia e se apropria de formas de cultura “originárias”.

O [Hélio] Oiticica, que ficava na favela fazendo parangolés, estava provavelmente no mesmo terreno simbólico que o Torres. Ele estava no mesmo plano simbólico equalizando as duas pulsões, a pulsão moderna e a pulsão originária, que estava encarnada no corpo popular.

Você vê algum paralelo entre essa modernidade do Oiticica e artistas neoconcretos, como Lygia Clark, com outros artistas latino-americanos? Existe algum diálogo?

Sim. Há toda uma geração de artistas mexicanos estudada em uma grande exposição organizada por Cuauhtémoc Medina, um curador mexicano. Esses artistas foram marcados pela tragédia de 1968 [forte repressão ao movimento estudantil dias antes da abertura das Olimpíadas no México], ponto de quebra da ficção do projeto moderno mexicano baseada na cultura pré-colombiana.

A partir desse momento, houve uma inflexão nos artistas mexicanos, que começaram a ver criticamente essa tradição originária e a cultura urbana. Acho que tem na Venezuela, um pouco mais tarde que no Brasil, a partir do começo dos anos de 1970, toda uma geração que desmonta as linguagens, através de uma conexão com o corpo social, como Eugenio Espinoza. São obras que dialogam com os artistas brasileiros e que até têm a obra brasileira como referência.

Que avanço você acha nessa produção, em relação a outros países?

Eles estavam eurocentricamente fascinados pela modernidade. Basta ler as cartas de Hélio [Oiticica] e de Lygia [Clark]. Lygia estava fascinada com a Europa. Vou falar uma coisa polêmica... Eu estava vendo a exposição de Lygia Clark – tenho um imenso respeito por ela – e me fiz uma pergunta: qual é a diferença entre o tratamento do corpo popular nas obras de Hélio e Lygia e o nas obras de [Jean-Baptiste] Debret [pintor francês do século 19 que retratou a sociedade brasileira]?

Não seria a mesma fascinação eurocêntrica pelo outro, pelo mestiço e diferente? Veja o grande panorama que fez Debret da corte do Rio de Janeiro, dos escravos, e depois veja como muitas obras de Hélio e de Lygia se legitimam politicamente pela presença de um corpo popular. Até onde há a distância crítica? Essa é a pretensão do corpo popular. Esses artistas que são gênios e que anteciparam uma questão que hoje parece central compartilhavam as mesmas contradições que nós hoje.

A ousadia do Hélio se explica pela consciência dele em criar uma coisa que iria fascinar o olhar europeu, mas a ousadia era falar da pureza como um mito. A ousadia era produzir estruturas incrivelmente brilhantes, em todos os moldes, a partir de uma textura local própria que fazia uma diferença fenomenológica fundamental.

Como você vê a arte contemporânea produzida hoje?

O que aconteceu é que as artes modernas convencionais transformaram a obra de arte em um objeto de intercâmbio, uma commodity. Os artistas contemporâneos, na intenção de desmontar esses mitos modernos, voltaram para uma estrutura mais performativa, mais social, mais relacional, que não é nova, que também tem grandes antecedentes na história.

O que é certo é que as obras de Tino Sehgal, por exemplo, que é um grande artista da performance, são difíceis de colecionar na sala de uma casa porque você não vai comprar um bailarino para ficar na sala da sua casa 24 horas por dia fazendo uma performance. É uma atenção contra a ideia da objetivação, da apropriação da obra de arte como atributo material de riqueza.

A que você credita esse olhar do mercado para a arte latino-americana, e agora, no caso, especialmente para a brasileira? O mercado olha para uma economia que está deslanchando ou simplesmente cansaram dos nomes de sempre?

Acho que as duas coisas são verdade. Todo mundo quer agora um Oiticica, uma Lygia Clark. Mas também é verdade que a força da economia brasileira está por trás desse mercado, que não existe sozinho. Se você vende e não tem quem compre, não tem mercado. Eu acho essa questão muito complicada para os artistas. O mercado é uma entidade estruturalmente estética que funciona por fascinação.

A fascinação não é eterna. Os grandes artistas são os que produzem grandes obras, ainda que elas não produzam fascinação. A história do Piet Mondrian [pintor holandês modernista] com a Maria Martins [considerada a primeira escultora surrealista da América Latina] é a melhor. Mondrian vivia em Nova York e ninguém comprava seus quadros nem se interessava por seu trabalho, todo mundo estava mais interessado pelo surrealismo.

Então, Maria Martins organizou uma exposição dela com o amigo, mas todos compraram as esculturas dela e ninguém levou um quadro dele. Foi aí que ela resolveu comprar a tela Broadway Boogie Woogie, do Mondrian, e a doou ao MoMA, que o rechaçou. Finalmente, o MoMA aceitou o quadro, atribuindo-o a um “doador anônimo”. O fato é que o Mondrian não produzia fascinação depois dos anos de 1930.
 
Qual é o tom da sua curadoria para essa Bienal?

Teremos artistas muito bem considerados pelo mercado, mas estou tentando olhar para um terreno para o qual o mercado não está necessariamente olhando, onde os museus ainda não estão olhando ou não olharam o suficiente. Acreditamos que as obras de arte têm relação com outras obras de arte. Cremos, também, que elas não pertencem ao mundo da verdade, que a lógica do verdadeiro e do falso não se aplica à arte. A arte pertence ao mundo da opinião estética.

É um produto simbólico que assimila, que condensa suas memórias e projeta suas possibilidades. Isso não faz parte nem da verdade científica, nem da verdade filosófica, nem da verdade política. É a opinião. Não queremos trazer artistas que estiveram presentes nas últimas bienais, para não repetir. Vamos tentar que grupos de artistas brasileiros sejam fundamentalmente os que estão expondo pela primeira vez na Bienal.


“Durante muito tempo, os artistas latino-americanos se conheciam na França, em Roma, em Londres, em Nova York. Nossos países se relacionaram culturalmente fora da América, como se precisássemos da visão estrangeira (...) para nos reconhecer”


“Para mim é importante entender que o muralismo mexicano é tão moderno quanto os muros concretos de Brasília ou como a arte concreta paulistana. É diferente. Um passa pela ficção de origem da cultura pré-colombiana, e o outro passa pela pulsão futurista da modernidade”


“Qual é a diferença entre o tratamento do corpo ?popular nas obras de Hélio Oiticica e Lygia Clark e o nas obras de Debret? Não seria a mesma fascinação eurocêntrica pelo outro, pelo mestiço e diferente?”


“Os artistas contemporâneos, na intenção de desmontar esses mitos modernos, voltaram para uma estrutura mais performativa, mais social, mais relacional que não é nova, que também tem grandes antecedentes na história”


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