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Laymert Garcia dos Santos

Professor do Departamento de Sociologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Laymert Garcia dos Santos é especialista em Sociologia da Tecnologia.

É autor de Politizar as Novas Tecnologias – O Impacto Sócio-técnico da Informação Digital e Genética (Editora 34, 2003), Desregulagens – Educação, Planejamento e Tecnologia como Ferramenta Social (Brasiliense, 1981), entre outros.

Em entrevista à Revista E, ele fala sobre o efeito das revoluções tecnológicas na sociedade e na percepção do tempo. “Se você pegar a intensidade da aceleração tecnológica do ano 2000 como parâmetro e projetar para os 100 anos anteriores, os 100 anos anteriores viram 16”, afirma. “Considerando os próximos 20 anos, significa uma transformação tecnológica equivalente a 2.500 anos, que é o tempo da pré-história para cá.” A seguir, trechos. 

O que a designação sociologia da tecnologia compreende?

Você tinha várias especializações da sociologia, como sociologia do conhecimento, do trabalho, mas não se tinha uma sociologia da tecnologia. Aos poucos isso está ganhando certa centralidade. Como vivemos em uma sociedade de humanos e máquinas, as relações sociais hoje são entre humanos e humanos, humanos e máquinas e máquinas e humanos.

Uma sociologia da tecnologia é uma sociologia que considera essa perspectiva e vai estudar o que se passa em uma sociedade na qual se têm humanos e não humanos em uma interação inteligente. O começo dessa centralidade se dá depois da Segunda Guerra Mundial, primeiro em planos de laboratório e depois sendo disseminada na sociedade inteira. As tecnologias da informação passaram a ter um papel central na vida, no trabalho, na linguagem, na produção de conhecimento e em todos os campos da produção.

O momento da virada é a década de 1970, quando as tecnologias eletrônicas penetram em todos os setores da sociedade. A partir desse momento houve uma transformação em todos os campos, você tem então uma sociedade tecnologizada, em que a tecnologia não é mais só um instrumento para você fazer o que quer, mas tudo o que você vai fazer está intermediado por processos tecnológicos. 

A implementação veloz dessas novas tecnologias embute a ideia de facilitar o trabalho do homem, por outro lado o que se vê é a aceleração do tempo do homem, não há uma contradição nisso?

Tem um paradoxo. Em princípio, as tecnologias te liberam do trabalho, pois elas fazem o trabalho por você. Na primeira revolução tecnológica, das máquinas a vapor, elas substituíam a força física humana. Na segunda, da eletricidade e do automóvel, você ganha mais autonomia de movimento e uma comunicação mais rápida, a tecnologia já agencia outros tipos de atividades que ela pode fazer em seu lugar.

Na terceira, que é a virada cibernética, que são as tecnologias da informação, você tem máquinas substituindo humanos em tarefas repetitivas e mentais, que incluem inclusive trabalhos de percepção fina. Hoje se você quer produzir uma peça que exige altíssima precisão, o computador programa o design dessa peça, de uma maneira mais precisa do que a mão humana é capaz, e o computador também programa a produção dessa peça.

O que significa que o produto será feito sem a mão humana e sem o olho humano, o que tem implicações enormes. O paradoxo é que a tecnologia te libera para fazer outras coisas, mas vivemos em uma sociedade, embora em crise, mas uma sociedade de trabalho. Então, em vez de você folgar, você vai trabalhar muito mais, pois a tecnologia te propõe novos trabalhos, que eram inimagináveis antes. A tecnologia acelera o tempo, intensifica a experiência do tempo e contrai o tempo. É a aceleração da aceleração.

A tecnologia cria novos parâmetros para a natureza humana?

Modernamente, desde Charles Darwin, tínhamos como pressuposto certa noção de natureza humana, que é uma espécie biológica a partir de uma evolução conhecida e estabelecida como verdade. Nessa evolução biológica, ao mesmo tempo somos animais, pois viemos dos animais do ponto de vista da evolução biológica, e não animais, devido à separação entre a natureza e a cultura; o humano tem uma natureza humana que é moldada e modificada pela cultura.

Com a virada cibernética, essa relação entre natureza e cultura começou a se modificar, pois houve um salto da biologia para a biologia molecular. Descobriu-se que o agenciamento do humano molecular é de informação, assim como o dos animais e das plantas. Ou seja, você começa a descobrir não só um fundo comum entre humanos e animais, mas a possibilidade de modificar esse fundo comum.

Isso pode ser feito naturalmente, para guardar as categorias, ou artificialmente através de uma reengenharia dessas informações, que é o que a biotecnologia faz. Quando se descobriu que havia uma linguagem da natureza, mas que podia ser manipulada por humanos e máquinas, a noção de natureza humana foi para o espaço, pois ela estava baseada em um referencial que deixou de existir. O impacto disso na cultura e na mente das pessoas é imenso.

Qual a implicação da desconstrução da natureza humana?

Discute-se a relação entre natureza humana e inteligência artificial e quais são as linhas que se abrem para uma reengenharia do próprio corpo humano, que vai desde o bodybuilding até a intervenção genética, biotecnológica nos genes humanos ou nos genes animais com genes humanos.

Os tipos de agenciamentos que podem ser somáticos, só naquele corpo, ou que possam ser passados de uma geração para outra. A crise da natureza humana é ontológica, que afeta o próprio modo de existência dos seres, e epistemológica, pois afeta o modo de entendimento e conhecimento desses seres. 

Como entender o ser humano com a biotecnologia, que oferece instrumentos para o prolongamento da vida e até a sugestão de uma quase imortalidade?

Afeta a questão da longevidade, de retardamento do envelhecimento e a engenharia reversa, que permite reverter processos de degenerescência. Tem várias correntes discutindo o que seria esse futuro pós-humano. Há posições que dizem que estamos criando máquinas que, numa linha evolutiva, são mais adequadas a essa aceleração que estamos vivendo, ou seja, elas seriam uma espécie superior e nós estaríamos fadados ao desaparecimento.

Até a posição que diz que não é a questão das máquinas, mas da própria transformação da espécie e de que modo ela se dá. É por implantes de máquinas no próprio corpo? É por uma luta contra isso para manter a especificidade do humano?

Quais situações monstruosas esse contexto biotecnológico pode trazer?

É um experimento que já existe. A criação de uma orelha no dorso de um rato. Você cria em laboratório com o objetivo de pesquisa, mas não só de pesquisa. A partir da criação desse animal, imaginemos que ele possa se reproduzir e que escape do laboratório e entre na natureza. A natureza estava evoluindo em certo ritmo da relação entre as espécies e você tem essas espécies biotecnológicas que entram na natureza misturando os genes de forma irreversível.

Já estamos em um mundo desequilibrado do ponto de vista ambiental, mas nada comparado ao que poderá acontecer quando essas espécies biotecnológicas começarem a se reproduzir sem controle. Além disso, há a questão de quando as três revoluções tecnológicas começarão a confluir e se reproduzir em um processo de autorreprodução.

A da robótica e da inteligência artificial, criando máquinas inteligentes elas próprias; a biotecnologia, criando seres artificiais; e a nanotecnologia, promovendo a autocriação de materiais no plano nano sem controle. Quando você tiver a convergência dessas três, quando elas começarem a se reproduzir sem nenhum controle humano, o que vai acontecer?

Como o avanço da biotecnologia se refletiu no cotidiano do ser humano e no próprio conceito de vida?

O itinerário básico da vida, de onde viemos e para onde vamos, é complexificado e questionado. A discussão sobre quando começa a vida é objeto de discussão, a morte também. Porque, com os aparelhos da medicina, surge a questão sobre se devem ou não ser desligados em uma pessoa que está em estado vegetativo no hospital – e também a questão da eutanásia.

O que você tem entre a vida e a morte também é transformado por causa da tecnociência e da virada cibernética. Vida, trabalho e linguagem. Na vida cotidiana, quando você levanta, antes de escovar os dentes, você olha o e-mail para planejar seu dia. O tempo que você dedica às redes sociais, o modo como você trabalha, é basicamente processamento de informações. O modo como você se locomove, que é acoplando aparelhos. A comida é feita no micro-ondas. A própria noção da medicina mudou, virou preventiva.   

Como a educação se coloca neste mundo da aceleração?

As pessoas não estão sendo preparadas, estão sendo atiradas de modo quase selvagem nesse processo, e o aprendizado se dá como é possível. A crise das instituições fica evidente na incapacidade delas de responder ao que está acontecendo. Veja a incapacidade da universidade de sacar as diferenças de temporalidade e a necessidade de elaborar isso e preparar as pessoas para este mundo, mudando o modo de ensinar.

Não é possível ensinar do jeito que se ensinava no século 19, que é o que temos hoje. Estamos conectados à internet e a disciplina também, os trabalhos são feitos na rede, a bibliografia está em sites. Precisamos de outro tipo de aula na qual a participação do professor muda.

Como fica o embate entre o assombro do novo e uma corrente que mergulhou nesta sem medo de errar?

Em 2000, tive um encontro com o especialista de geopolítica de um grupo de pesquisa do escritório europeu de patentes, que é uma organização enorme que lida com a inovação na Europa como um todo. Eles estão acompanhando tudo o que está acontecendo na ponta dos processos tecnológicos.

Tinha um grupo que estudava futuro e esse sujeito era encarregado da parte de geopolítica no grupo. Li uma entrevista dele, pouco tempo depois, em que disse que se você pegar a intensidade da aceleração tecnológica do ano 2000 como parâmetro e projetar para os 100 anos anteriores, os 100 anos anteriores viram 16. Porque o período começou com pouca aceleração tecnológica e depois foi se acelerando.

Houve uma compressão de 100 anos em 16. Se você toma a intensidade da aceleração do ano 2000 e olha pra frente, a aceleração da aceleração do futuro significa um impacto de 25.000 anos em 100. Isso é um cálculo, não é achismo. Considerando os próximos 20 anos, significa uma transformação tecnológica equivalente a 2.500 anos, que é o tempo da pré-história para cá. Isso significa que toda a discussão da obsolescência do humano, se vamos aguentar essa aceleração e o modo como o humano vai se transformar estão colocados como uma questão vital.


“Já estamos em um mundo desequilibrado do ponto de vista ambiental, mas nada comparado ao que poderá acontecer quando essas espécies biotecnológicas começarem a se reproduzir sem controle”


“Tem várias correntes discutindo o que seria esse futuro pós-humano. (...) Há a posição que diz que não é a questão das máquinas, mas da própria transformação da espécie e de que modo ela se dá. É por implantes de máquinas no próprio corpo? É por uma luta contra isso para manter a especificidade do humano?”


“Discute-se a relação entre natureza humana e inteligência artificial e quais são as linhas que se abrem para uma reengenharia do próprio corpo humano, que vai desde o bodybuildingaté a intervenção genética, biotecnológica nos genes humanos ou nos genes animais com genes humanos”


“Com a virada cibernética, essa relação entre natureza e cultura começou a se modificar, pois houve um salto da biologia para a biologia molecular. (...) Quando se descobriu que havia uma linguagem que era da natureza, mas que podia ser manipulada por humanos e máquinas, a noção de natureza humana foi para o espaço”


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