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Veneno que salva

RICARDO BONALUME NETO

Um dos símbolos do ambientalismo moderno é o panda, o simpático urso chinês preto e branco. Ninguém pensaria em atrair adeptos para a defesa da natureza, da biodiversidade e de causas ecológicas com cobras e lagartos, aranhas e escorpiões, rãs e sapos. Mas, curiosamente, esses são os bichos que constituem, na prática, a biodiversidade útil ao ser humano, devido à sua importância para a ciência. Eles são os protagonistas de uma guerra entre animais e plantas, entre animais e animais, em que as armas são as garras, dentes, e – principalmente – venenos.

As cobras são os animais que primeiro surgem à mente quando se fala em veneno. Mas até as aparentemente inofensivas plantas participam ativamente dessa guerra química natural, produzindo toxinas – as substâncias venenosas produzidas pelos seres vivos – capazes de afastar insetos e outros bichos interessados em comê-las. Trata-se de um processo dinâmico. Os pesquisadores descobriram, por exemplo, que os insetos podem desenvolver rapidamente novas enzimas (um tipo de proteínas) capazes de neutralizar os venenos que as plantas usam para se defender.

Esse dinamismo faz parte da seleção natural, o processo pelo qual os organismos mais bem adaptados ao ambiente tendem a sobreviver e a transmitir suas características genéticas. "Essa preservação de variantes favoráveis e a rejeição de variantes danosas eu chamo de seleção natural", escreveu o naturalista britânico Charles Darwin no livro inicial, e fundamental, da teoria evolucionista, A origem das espécies, de 1859.

Antes de escrever essa obra, Darwin viajou pelo mundo, e um dos lugares que o fascinou foi a Mata Atlântica brasileira. "Deleite", declarou ele, "é uma palavra débil demais" para revelar o prazer sentido ao andar pela primeira vez por uma floresta dessas. Para ele, a variedade de formas vivas dos trópicos – o que hoje virou moda chamar de biodiversidade – indicava que essa região deveria ser o "berço" da humanidade. E essa variedade contém uma grande quantidade de perigosas toxinas.

Efeito rápido

Um bom exemplo da seleção natural em ação é a jararaca-ilhoa, cobra típica da ilha de Queimada Grande, no litoral paulista. Isolada pelo mar, a jararaca-ilhoa teve de se adaptar. Passou a subir com facilidade em árvores, e seu veneno tornou-se muito mais potente, de modo a provocar a morte rápida das aves, seu principal alimento. Se a vítima demora a morrer, pode ainda voar um pouco, e cair no mar.

Mas não é só em locais como esse que o brasileiro pode topar com uma cobra. Aquela idéia do turista estrangeiro que acredita que cobras e lagartos passeiam pelas ruas do país não está longe da realidade. Onde há comida, há um ser vivo procurando comer. E as grandes metrópoles brasileiras estão cheias de ratos e camundongos, o cardápio tradicional de cobras (venenosas ou não). Volta e meia, as serpentes assustam os moradores de bairros com bom índice de área verde, mesmo em vizinhanças mais abastadas. "No Morumbi aparecem jararacas de vez em quando", disse Maria de Fátima Domingues Furtado, especialista em herpetologia (o estudo dos répteis) do Instituto Butantan (veja o box), referindo-se a um dos bairros ditos nobres de São Paulo.

Certas cobras assustam mais, e com razão. A seleção natural fez com que algumas ficassem mais venenosas que outras, mas isso também criou uma alternativa curiosa de defesa – cobras que imitam suas colegas peçonhentas para espantar predadores. É o caso da cobra-coral, verdadeira (e bem venenosa) ou falsa. Ao se imitarem mutuamente, essas cobras proporcionam uma elegante aula de biologia, uma prova viva da teoria da evolução de Charles Darwin.

A coral-verdadeira, cobra do gênero Micrurus, é bonita e letal, devido a um veneno altamente tóxico, que age diretamente no sistema nervoso. Um mesmo soro antiofídico serve para tratar picadas de jararaca ou cascavel, mas uma picada de coral precisa ser tratada com soro fabricado somente a partir de seu veneno.

Segundo outro pesquisador do Butantan, Giuseppe Puorto, um dos autores de um estudo sobre as cobras encontradas em São Paulo de 1987 a 1991, só duas corais-verdadeiras foram achadas na cidade. Uma foi no Morumbi, e a outra no vizinho bairro do Butantã (o nome do instituto permanece com a grafia antiga). A grande maioria das centenas de cobras da capital paulista – 89% – são serpentes não-venenosas, mostra o estudo.

De veneno a remédio

Nos últimos anos, os laboratórios descobriram que a guerra química natural pode ser fonte de novos medicamentos. O Brasil tem um bom exemplo disso.

A jararaca tem tudo para ser a cobra mais odiada do Brasil. Tanto que chamar alguém de jararaca é uma ofensa pesada, uma alusão nada sutil ao mau gênio da pessoa. Ela é responsável por mais da metade dos acidentes ofídicos no país. Há uma dose de injustiça nisso, pois a jararaca é mansa, e só ataca o homem quando provocada (cobras atacam quando se sentem acuadas, na maioria dos casos quando alguém pisa nelas).

A jararaca é também útil, pois se alimenta de roedores. Mais: os estudos sobre o veneno da jararaca foram fundamentais para estabelecer as bases da farmacologia brasileira. Um cientista pioneiro nesse campo foi Vital Brasil. E foi pesquisando o veneno da jararaca que Maurício Rocha e Silva, Gastão Rosenfeld e Wilson Beraldo descobriram em 1948 a bradicinina, uma substância com forte capacidade de baixar a pressão arterial. Trabalhos posteriores com a bradicinina e substâncias correlatas levaram à criação de medicamentos para regular a pressão sanguínea. O remédio Capoten, por exemplo, é utilizado por muitas pessoas, que nem imaginam que ele contém algo dessa odiada cobra.

As descobertas desses brasileiros – e de seus seguidores, como Sérgio Ferreira – serviram à humanidade, não há dúvida. Mas nenhum deles recebeu royalties pelas pesquisas, divulgadas publicamente. A causa foi a incapacidade da indústria farmacêutica do país de se aproveitar do conhecimento aqui gerado. De que adianta ter biodiversidade, ter mesmo o conhecimento científico, se não se consegue dar o passo seguinte, que é seu aproveitamento comercial?

O veneno da jararaca tem efeito vasoativo, isto é, age nos vasos sanguíneos, provocando hemorragias e hematomas nas suas vítimas. Outros venenos agem no sistema nervoso – são "neurotóxicos" – , e estão sendo estudados por cientistas em busca de novas drogas.

É o caso de pesquisas chefiadas pelo pernambucano Edson Xavier de Albuquerque, ligado à Universidade de Maryland, onde chefia o Departamento de Farmacologia e Terapêutica Experimental, e ao Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Ele é um dos principais especialistas do mundo na área de farmacologia do sistema nervoso e recebeu prêmios importantes por sua pesquisa relativa ao mal de Alzheimer. Toxinas de anfíbios estão entre os objetos de pesquisa de Albuquerque e seus colegas. São pequenas rãs da floresta equatorial cuja pele contém venenos extremamente potentes (tanto que os índios, para envenenar suas flechas, simplesmente esfregavam as pontas nas costas do animal).

Biopirataria

Como tudo no Brasil, os animais peçonhentos também são vítimas de pirataria. Em março de 97 a Polícia Federal apreendeu 112 aranhas no Rio, de posse de um viajante alemão a caminho de Düsseldorf. Suspeitou-se que ele teria caçado as aranhas por encargo de uma empresa farmacêutica, mas também poderia ser encomenda de uma loja de animais. Criar cobras e aranhas em casa também virou mania. Em agosto de 97 uma carga de cobras e aranhas foi apreendida no aeroporto de Salvador, pronta para embarcar rumo ao exterior. Eram 47 caixas, com mais de mil espécimes de cobras, aranhas, tartarugas e peixes.

Se existe o contrabando, é porque o comércio de proteínas de animais peçonhentos é valioso, a ponto de existir um verdadeiro "mercado paralelo" de veneno de cobra. Um grama desse produto vale até seis vezes mais que um grama de cocaína, segundo notícias de jornais. O veneno destina-se à produção de medicamentos em laboratórios do Primeiro Mundo.

A coleta de proteínas exóticas pode perfeitamente ser feita respeitando-se as leis. É o caso do americano Terry Fredeking e sua empresa Antibody Systems. Em busca dos pedidos de laboratórios, institutos de pesquisa e universidades, ele trabalha com um diplomata aposentado, Robert Dean, que se encarrega de checar a legislação dos países onde será feita a coleta.

Fredeking é uma espécie de Indiana Jones da biodiversidade. Ele e Dean andam pela mata com frascos criogênicos, equipamento para congelar o material coletado. Algumas proteínas não duram mais que alguns minutos fora do corpo e precisam ser congeladas.

Os países do Terceiro Mundo estão cada vez mais preocupados com essa exploração de sua biodiversidade. Por isso Dean tem um trabalho cada vez maior para acertar a papelada burocrática. "Antes de ir a esses lugares, checo com a embaixada dos EUA local e entramos em contato com as autoridades do país, para que nada seja considerado suspeito ou ilegal", diz Dean.

Dean, cuja mulher é brasileira, trabalhou como diplomata por vários anos no Brasil, em São Paulo, Brasília, Belém e Rio de Janeiro. Também foi embaixador no Peru.

Uma proteína importante coletada por eles foi o veneno de uma pequena cobra de alguns centímetros da África do Sul. O animal vive em cupinzeiros e formigueiros mas não se alimenta de formigas ou cupins, e sim das lagartixas que vêm comer os insetos. Cobra e insetos são aliados nessa guerra natural. O veneno da cobra é fonte potencial de uma nova droga para abaixar a pressão do sangue.

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