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Revolução incompleta
Getúlio Vargas foi sem dúvida o mais influente homem público brasileiro do século 20, dominando o cenário político do país por 24 anos. Na primeira tentativa para tornar-se presidente, foi derrotado, mas encabeçou a Revolução de 30, que o levaria ao poder. Em 1937, através de um golpe de estado, instituiu o Estado Novo, que permaneceu até 1945. Nesse ano elegeu-se senador, voltando à presidência em 1950, desta vez pelo voto popular. Não chegou a terminar o mandato, suicidando-se em 1954. Getúlio marcou sua participação na vida política brasileira por realizações significativas na área trabalhista e também por iniciativas econômicas de peso, como a implantação do monopólio da Petrobrás e da Companhia Siderúrgica Nacional.
Qual foi, porém, o verdadeiro papel desse homem sobre a vida brasileira? Esse é o objeto de pesquisa de inúmeros estudiosos, como o brasilianista americano Robert Levine, autor do recém-lançado livro Father of the poor? - inédito em português -, do qual foram selecionados os trechos abaixo (tradução: Lúcia Szmrecsányi).
Getúlio Vargas foi, na expressão de Gramsci, um "revolucionário passivo de cima". Sua revolução foi parcial, enxertando novos grupos sociais e novas regras em práticas políticas tradicionais. Embora sua carreira tenha atravessado três Constituições e enormes mudanças na atmosfera política, seu pragmatismo prevaleceu em todas as situações. Ele sempre teve disposição para enfrentar riscos, e essa característica explica não apenas sua longevidade política, como também os erros de cálculo que o levaram a ser desalojado do poder em 1945 e a suicidar-se, anos mais tarde. Getúlio foi capaz de adaptar-se a mudanças no contexto nacional e internacional, mas deixou fundamentalmente inalterado o tecido social brasileiro. Certas características persistiram sem mudança ao longo das décadas em que esteve no poder, como a prontidão das forças armadas para intervir no cenário político e a tenacidade da elite em aferrar-se a privilégios. A distribuição de renda brasileira continuou a figurar entre as mais desiguais do mundo, mas para Vargas isso não chegava a constituir um problema que exigisse solução.
A democracia, para aquele gaúcho que conseguira quase tudo sem maiores dificuldades,
era um luxo ao qual o Brasil não podia se dar. Para ele, os direitos da cidadania não
eram inalienáveis, mas uma recompensa em troca da lealdade e da docilidade. "O
direito ao voto não acaba com a fome", disse Vargas em um discurso da época do
Estado Novo, "assim como o direito de livre associação não dá educação às
crianças." Na verdade, o povo não era sua principal preocupação. Sob seu governo,
os gastos com obras públicas ultrapassaram todos os demais, inclusive aqueles destinados
às forças armadas. Os projetos de obras públicas eram necessários para o
desenvolvimento econômico do país, mas não respondiam a necessidades sociais. Uma das
dificuldades enfrentadas por Vargas residia no fato de que o Brasil - ao contrário dos
Estados Unidos, onde existe uma forte tradição de autonomia dos governos locais,
incluindo a capacidade de obter recursos por meio da emissão de títulos municipais -
possuía um sistema que limitava a capacidade dos estados e municípios de gerar receitas,
levando-os a depender quase que integralmente da iniciativa federal.
Para inglês ver
O estilo de Vargas tinha raízes na tradição de recorrer à intervenção pessoal de funcionários públicos para vencer a burocracia ou para obter favores. Assim, é uma ironia do legado de Vargas o fato de que, embora seu programa incluísse a constituição de um serviço público baseado no mérito, o velho estilo, fundamentado na troca de favores pessoais, tenha não apenas sobrevivido nos estados, mas se expandido na esfera federal, como resultado da centralização do governo. Os arquivos brasileiros estão cheios de pedidos pessoais endereçados aos ministros (e ao próprio Vargas), solicitando empregos para parentes, favorecimentos na concessão de contratos, tratamento privilegiado em detrimento da lei - tudo em flagrante contradição com os objetivos declarados do presidente. Além disso, quanto mais o governo burocratizava o emprego estatal, mais poder era acumulado pelos administradores individuais, e menos segurança se tinha de que eles atuariam em favor da população que deveriam representar. Como resultado, muitas das reformas de Vargas acabaram (intencionalmente ou não) sendo apenas "para inglês ver". O ideário corporativista de Vargas, além disso, favorecia decisões autoritárias, com base na idéia de que essa era a única maneira de evitar que a população carente continuasse a ser ignorada.
Ao fazer-se chefe de estado de todos os brasileiros, Vargas limitou a possibilidade de
emergência de rivais. Durante seu primeiro governo, ele percorreu cerca de 150 mil
quilômetros, visitando cada recanto do país. Sua fama espalhou-se de boca em boca,
inclusive por meio da poesia popular e ingênua da literatura de cordel da zona rural.
Como resultado dessa popularidade inigualável, os comunistas viram-se obrigados, depois
de 1945, a fazer uma aliança com Vargas e as organizações políticas criadas por ele,
ao mesmo tempo em que competiam com elas. Vargas também confundia seus adversários por
meio de inovações contínuas: durante a posteriormente invalidada campanha presidencial
de 1937, por exemplo, os trabalhadores dos sindicatos patrocinados pelo governo eram
levados aos comícios em caminhões conduzidos por funcionários do Ministério do
Trabalho.
Poder vitalício
Ele não escondia sua admiração por pessoas que exerciam o poder com segurança. Pedro Ludovico [político que foi governador de Goiás] lembra um encontro entre Vargas e um chefe carajá, durante uma excursão a uma reserva indígena em Goiás. Quando o índio lhe apresentou uma petição, Vargas perguntou-lhe com que autoridade ele falava em nome de seu povo. "Porque sou o mais poderoso", foi a resposta. Quando Vargas perguntou afavelmente por quanto tempo ele teria esse poder, o chefe respondeu: "Até o fim da minha vida". Vargas riu, pois sua perspectiva era a mesma.
Seu projeto mais abrangente era o de modernizar o país preservando a independência
nacional. Esse objetivo escapou-lhe, mas suas realizações que visavam fazer do Brasil
uma nação mais moderna produziram mais mudanças "revolucionárias" do que
qualquer outra política seguida pelo país. O esforço também consumiu grandes recursos.
A centralização do governo custou caro: os fundos necessários à realização de
projetos gigantescos como a construção da usina hidrelétrica de Paulo Afonso, no rio
São Francisco, por exemplo, jamais poderiam ter sido levantados pelos estados,
constantemente envolvidos em disputas internas e pouco capazes de obter créditos. Como
Vargas e outros nacionalistas temiam, a Segunda Guerra Mundial resultou em uma maior
dependência do Brasil com relação aos Estados Unidos e em uma maior influência da
cultura norte-americana - disseminada por meio da publicidade, do cinema, de bens de
consumo e do exemplo direto do comportamento de milhares de soldados americanos
aquartelados em bases brasileiras durante a guerra.
Um Roosevelt do hemisfério sul?
Vargas exibiu uma vontade de ferro e muita habilidade estratégica como chefe de estado. Como Franklin D. Roosevelt [presidente dos EUA de 1933 a 1945], que em um momento de galanteio diplomático referiu-se ao colega brasileiro como um dos inventores do New Deal, Getúlio era um operador político astuto e talentoso, além de comportar-se como um camaleão político. As medidas tomadas por Vargas e por Roosevelt fizeram chegar aos cidadãos comuns, na maioria dos casos pela primeira vez, a premissa de que o governo se preocupava com eles e estava disposto a defender seus interesses. O New Deal atingiu setores mais amplos da sociedade americana do que o Estado Novo no Brasil, mas Vargas enfrentou uma tarefa mais árdua. Vargas era um administrador habilidoso, que sabia fazer uso de protelações e de lisonjas, era capaz de guardar um segredo e, também à semelhança de Roosevelt, sabia agir com astúcia e dissimulação. Enquanto o New Deal foi ferozmente atacado por interesses econômicos, a reação à legislação de Vargas foi em grande parte passiva. Como no caso do sucessor de Roosevelt, Harry S. Truman, os valores de Getúlio eram claros, rígidos e tradicionais. Os dois homens provinham de cidades pequenas, não apreciavam o brilho e a agitação das grandes cidades e preferiam a companhia de velhos camaradas. Vargas era pessoalmente honesto, mas, paradoxalmente, iniciou sua carreira com o apoio de uma máquina política poderosa, da mesma forma que Truman.
Entretanto, havia também grandes diferenças entre o New Deal e o regime de Vargas. Ao
contrário de Roosevelt, Vargas não trabalhava para conciliar opostos. Diferentemente do
New Deal, o Estado Novo não fazia apelo à consciência social do país. Roosevelt atacou
"monarquistas econômicos" e plutocratas gananciosos; Vargas permaneceu em
silêncio. A elite de São Paulo ainda se ressentia, por considerá-lo um sulista sem
sofisticação e porque suas medidas corporativistas e nacionalistas contrariavam a
tradição paulista de encarar a política como uma ferramenta para a expansão dos
negócios. A maioria dos outros brasileiros, porém, parecia não se importar tanto, e,
com o passar do tempo, muitos tornaram-se nostálgicos do paternalismo getulista.
A revolução incompleta
William E. Leuctenburg definiu o New Deal de Roosevelt como uma revolução incompleta, pois, embora tenha logrado uma sociedade mais justa por meio do reconhecimento de grupos que até então não possuíam representação, continuou excluindo vários outros grupos, inclusive trabalhadores agrícolas não assalariados, moradores de favelas e a maior parte dos não-brancos. Os esforços de Vargas para modernizar o país e integrá-lo nacionalmente criaram uma burocracia forte, formada por administradores e funcionários públicos. Entretanto, ele se recusou a dar voz política a esse grupo, ignorando-o completamente nos anos 50, quando se dirigia diretamente à classe operária com seus slogans populistas. Relativamente instruída e dotada de capacidade de ascensão social, a classe média urbana poderia ter se tornado uma fonte de sustentação política para Getúlio, que preferiu, entretanto, deixá-la de lado, beneficiando a velha elite com suas ações, ao mesmo tempo em que fazia apelo aos trabalhadores em seus discursos e pronunciamentos públicos.
As pessoas mais afetadas pelas reformas getulistas pertenciam a um segmento que, na
Europa Ocidental ou nos Estados Unidos, seria definido como de classe média baixa:
tratava-se de trabalhadores assalariados, que, pela primeira vez, passaram a ter alguns
direitos assegurados pelo governo, tais como aposentadoria, estabilidade no emprego e
melhores condições de trabalho.
Greves
Os empregadores freqüentemente ignoravam as regras, sob o argumento de que seriam
levados a fechar suas empresas se fossem obrigados a segui-las. Essa é a principal razão
para o fato de que a oscilante legislação social e trabalhista de Vargas foi incapaz de
promover mudanças mais efetivas, embora o próprio Vargas tenha permanecido popular entre
os trabalhadores brasileiros, que cortejou tão ardentemente. Eles, por sua vez, foram a
base de sua vitória na campanha presidencial de 1950. Para os industriais e empregadores,
não importava se a retórica de Vargas fosse progressista ou corporativista: eles
pretendiam simplesmente impedir qualquer reforma que interferisse em seus lucros.
Virtualmente todas as greves do período entre 1931 e 1936, do Rio Grande do Sul ao Pará,
e todas as greves limitadas e paralisações do trabalho que ocorreram de 1936 a 1940
visavam a obtenção de direitos e condições garantidos por lei, mas não assegurados na
prática. A Companhia de Tecidos Paulista, em Pernambuco, obrigava os trabalhadores -
muitos dos quais eram mulheres e crianças - a trabalhar 12 horas por dia, embora a
legislação prescrevesse o turno de oito horas. O mesmo acontecia em várias fábricas de
São Paulo, onde não eram raras jornadas de trabalho de 14 horas. Havia muitas formas de
burlar a legislação. A antropóloga Janice Perlman relata a história de um migrante de
60 anos de idade que obteve sua carteira de trabalho após seis meses de espera, sendo
então informado por um gerente de que só seria contratado caso a carteira não fosse
assinada, para que a empresa não fosse obrigada a pagar benefícios de seguridade social,
contribuições para a aposentadoria, licenças para tratamento de saúde ou horas extras.
O homem aceitou o emprego, cumprindo uma jornada de 12 horas (quatro a mais do que o
máximo permitido pela lei), recebendo meio salário mínimo por mês e sem nenhuma
proteção trabalhista. Aqueles que não possuíam nenhum documento enfrentavam
dificuldades ainda maiores. A polícia costumava revistar veículos de transporte
coletivo, realizar batidas nos bairros mais pobres e abordar as pessoas em outras
situações para examinar os documentos; quem estivesse sem eles era preso por vadiagem.
Interior esquecido
Boa parte da legislação do regime teve sua eficácia restrita à capital federal do Rio de Janeiro, diretamente supervisionada pelo governo. A área rural e as regiões mais remotas enfrentavam a pior situação: com exceção do atendimento médico e de outros programas de saneamento, implementados pelos norte-americanos como parte do esforço para incrementar a produção de borracha durante a época da guerra, a influência das medidas de Vargas sobre a vida dos brasileiros do interior foi muito menor do que para os habitantes das grandes cidades próximas à costa, chegando a ser nula na maioria dos casos.
As agências regionais do governo federal ofereciam empregos, mas o apadrinhamento
predominava sobre o novo aparato do serviço público. A falta de oportunidades de emprego
impedia qualquer progresso real decorrente dos programas governamentais. Posto que essas
regiões raramente sofreram algum processo de industrialização, não havia sindicatos de
trabalhadores. Considerando que os maiores gastos orçamentários de Vargas sempre foram
no setor de transportes, pode-se dizer que, entre os projetos de seu governo, aquele que
teve maior impacto em boa parte do interior foi a abertura de estradas para possibilitar a
emigração das famílias.
Simplicidade
Aos olhos do público, pelo menos, Vargas sempre permaneceu uma figura enigmática. Mesmo permitindo que seus familiares desfrutassem de sinecuras e, às vezes, de posições de poder (como no caso da nomeação de seu irmão Benjamim, conhecido como "Beijo", para o cargo de chefe da polícia do Rio de Janeiro), ele nunca usou sua posição para obter ganhos pessoais. A simplicidade de seu estilo de vida surpreendia aqueles que podiam vê-lo fora da pompa do gabinete presidencial. Abelardo Jurema, que visitou o palácio poucos dias antes da morte de Getúlio, comentou posteriormente ter ficado impressionado com o despojamento do quarto do presidente. A mobília era escassa; sobre a escrivaninha simples, havia vidros de remédios, como na casa de seu avô, no interior, observou Jurema. Os propagandistas de Vargas tentaram durante anos retratá-lo de forma a dar a impressão de que era mais alto do que na realidade, mas os resultados sempre soaram falsos, e a maioria dos brasileiros preferia vê-lo como um homem baixo, que gostava de montar cavalos e amava seu país.
Tudo isso contribuía para a popularidade de Vargas. Embora ele não tenha feito nada
de específico pelos não-brancos, os negros e os mestiços apreciavam-no, assim como os
negros americanos gostavam de Roosevelt, que aceitava a segregação racial. Vargas era
mestre na arte de falar às pessoas comuns, mas nunca traçou uma rígida linha divisória
entre o "povo" e as classes dominantes. Tampouco se propôs a redefinir os
direitos de propriedade ou a redistribuir a renda, como fez Juan Perón na Argentina. Sua
linguagem, retórica e moralista, dava sono às pessoas. Apesar do ostensivo teatro
nacionalista, e à semelhança dos regimes de Franco, na Espanha, de Salazar, em Portugal,
e do primeiro governo de Vichy, na França, o governo de Vargas nunca chegou a impor à
população um rígido esquema ideológico, baseando-se em uma propaganda simplista que
poucos brasileiros instruídos levavam a sério.
Tratamento diferenciado
Os mais ricos entendiam que a máquina publicitária do governo, nas palavras de
Hernane Tavares de Sá, "exagerava vergonhosamente" as realizações concretas
propagandeadas; sabiam, também, que seus problemas não haviam sido resolvidos, assim
como seu padrão de vida não melhorara tanto quanto havia sido prometido nos programas
radiofônicos e nos discursos. Mas Vargas tornara-os conscientes da posição vulnerável
do Brasil no contexto mundial e, desde os primeiros dias de sua campanha presidencial pela
Aliança Liberal, em 1930, fizera-os saber que se preocupava com todos os brasileiros,
não apenas com os poderosos. Para a metade mais pobre da população, que mal tinha o que
comer, isso não fez grande diferença, embora ainda assim muitos desses homens e mulheres
nostalgicamente o considerassem como o "pai dos pobres". Para eles, bastava o
fato de Vargas ter falado em seu favor. Se Getúlio foi o "pai" do Brasil,
tratou os filhos de maneira diferenciada, negligenciando benevolamente aqueles que tinham
a pele mais escura e viviam no interior, e favorecendo aqueles que, a seu ver, tinham
potencial para realizar seus sonhos de construção nacional. O tratamento desigual
dispensado a seus concidadãos brasileiros, porém, não diminuiu a adoração que
milhões de pessoas tinham por ele. Quando confrontadas por esses fatos, as pessoas comuns
dariam de ombros e diriam: "O presidente sempre se lembrou da gente".