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Preconceito em baixa
Portadores de deficiência ainda lutam para conquistar um lugar ao sol. Felizmente já estão surgindo os primeiros aliados
IMMACULADA LOPEZ
Começa mais uma aula. Entre os alunos, há um com deficiência mental e outro que não pode ouvir. São crianças que estão na mesma classe, lado a lado. No palco, artistas em cadeiras de rodas dividem a coreografia com outros bailarinos. Todos são aplaudidos pelo seu talento. Nas férias, primos e irmãos se divertem juntos, independentemente da deficiência apresentada por alguns deles.
Apesar de ainda serem raras, essas cenas começam a se compor em diferentes cidades do país. Na educação, nas artes e no lazer, ensaia-se uma nova relação com os portadores de deficiência. Uma relação baseada não apenas na idéia de integração como foi pensada até hoje, mas numa visão mais ampla: a inclusão.
Desde a década de 60, fala-se na integração do deficiente. Nessa época, surgiram, no país, os primeiros centros de reabilitação, escolas especiais e oficinas de trabalho para pessoas com deficiência física ou mental. Acreditava-se que, nessas instituições, elas conseguiriam preparar-se para se inserir na sociedade. A partir de 1981, Ano Internacional das Pessoas Portadoras de Deficiência, a luta pela integração ganhou novo rumo no país. Os próprios portadores começaram a se mobilizar e fazer suas reivindicações. "Antes os médicos, religiosos e familiares decidiam por nós", conta a jornalista Ana Maria Morales Crespo, uma das fundadoras do Núcleo de Integração do Deficiente, que, com outras entidades, participou da elaboração de leis e políticas públicas específicas para os portadores de deficiências, principalmente, nos anos 80.
"Começamos a mostrar que podíamos ser produtivos e tomar decisões", diz Ana Maria, que não acredita que por andar com muletas não possa ter uma vida plena como todos. Hoje, ela coordena o Centro de Vida Independente Araci Nallin, em São Paulo. O movimento de Vida Independente tem respondido às novas necessidades do grupo (ver texto abaixo). Mas Ana Maria, ao lado de tantos outros, observa que a participação dos deficientes nas diferentes atividades do dia-a-dia ainda não acontece de forma ampla.
A realidade é esta: simplesmente por não apresentar todas as habilidades físicas ou mentais, milhões de brasileiros continuam desvalorizados e são privados das oportunidades do dia-a-dia. A Organização Mundial da Saúde estima que 10% da população, em países em desenvolvimento, apresenta algum tipo de deficiência. No Brasil, seriam 15 milhões. Quinze milhões de pessoas impedidas de participar da vida comum do país – seja na hora de estudar, trabalhar, divertir-se ou apenas andar pelas ruas.
Os especialistas e os portadores de deficiência indagam por que a integração ainda não se concretizou e começam a questionar o slogan repetido até agora: "O deficiente deve se integrar na sociedade". Será realmente esse o caminho? E perguntam se o pensamento não precisa mudar para: "A sociedade deve incluir o deficiente". O que parece um mero jogo de palavras revela uma importante mudança de postura que está acontecendo em todo o mundo e começa a ser discutida no Brasil: cabe à sociedade descruzar os braços, sem ficar esperando que os diferentes se integrem. Ela mesma deve incluí-los.
Nova época
"Antes, quando se pensava em integração, era o portador que precisava se esforçar e se capacitar para entrar na sociedade. A responsabilidade era só dele. Desde que fosse capaz de acompanhar o que era considerado normal, ele era convidado a se integrar", esclarece Romeu Kazumi Sassaki, autor do livro Inclusão: construindo uma sociedade para todos e integrante do Programa de Atendimento aos Portadores de Deficiência da cidade de São Paulo. "Era a solução para a época. Mas agora sabemos que esse caminho é limitado. A sociedade precisa assumir sua parte de responsabilidade. As empresas, escolas, clubes e hospitais em geral devem se preparar para receber também quem tem deficiências." Como outros especialistas, Romeu espera que a nova mentalidade comece a se concretizar nos serviços públicos. E, pelo menos, nos projetos e discussões oficiais, a palavra "inclusão" já está aparecendo.
"Se antes trabalhávamos apenas com serviços específicos, em separado, agora perseguimos a equiparação de oportunidades para todos", garante Tânia Maria Silva de Almeida, coordenadora da Corde (Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência), órgão do Ministério da Justiça responsável pela elaboração de políticas públicas que assegurem cidadania plena aos portadores. Segundo Tânia, as prioridades dessas pessoas são as mesmas que as de todos os brasileiros: saúde, educação, trabalho e transporte. O cenário geral não é muito animador, e se agrava para os que têm necessidades especiais. De qualquer forma, Tânia garante que a proposta inclusiva já está presente nas ações do governo, pois as escolas regulares, os centros de saúde e os cursos de capacitação profissional estariam abrindo suas portas para os portadores de deficiência. "Mas ainda temos que superar uma grande dificuldade: a mentalidade das pessoas", adverte Tânia.
Para Maria de Lourdes Canziani, que coordenou a Corde durante os últimos sete anos, a resistência vem de diferentes fontes. De um lado, há a desinformação geral da sociedade sobre o que são as deficiências e os direitos dos portadores. De outro, observa-se a radicalização de algumas entidades filantrópicas que insistem em perpetuar o protecionismo e paternalismo junto aos deficientes. Na verdade, a postura da sociedade e a das instituições se reforçam. "O modelo institucional e segregador tem encontrado muito respaldo na sociedade em geral", diz o médico Jorge Márcio Pereira de Andrade, presidente da DefNet, um centro de informações sobre paralisia cerebral via Internet. "Afinal, é mais cômodo ser bonzinho do que aceitar preconceitos." A pesquisadora Lígia Assumpção Amaral, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, resume essa limitação em uma frase: "Não sabemos lidar com as diferenças".
Andando com dificuldade, pois tem seqüelas de uma poliomielite infantil, Lígia conta que ainda causa espanto quando chega para participar de conferências em universidades. "As pessoas ficam admiradas. Não entendo o porquê. O que tem a ver uma deficiência física com a capacidade intelectual ou profissional da pessoa?" E essa não é a única reação inexplicável com que Lígia se depara continuamente.
"Um dia, depois de muito passear, sentei na escadaria de um museu por alguns minutos. Logo veio o guarda me avisar que era proibido pedir esmolas." Como psicóloga, Lígia explica que as pessoas se relacionam apenas com o estereótipo do portador de deficiência, que passa de herói a vítima, e de vítima a vilão, aproveitador, inútil. "As pessoas não conseguem enxergar além da deficiência e reconhecer os direitos e potencialidades da pessoa."
Para minar esse pensamento, a psicóloga acredita no poder da convivência. "Outro dia, encontrei na rua um antigo colega de escola, que não via há anos. Ele me contou que hoje é empresário e que, na sua empresa, um candidato jamais é recusado por ser portador de deficiência. Disse que havia convivido comigo na sala de aula e teve oportunidade de perceber que deficiência não é sinônimo de incompetência ou incapacidade." Por isso, os pesquisadores acreditam que incluir os portadores de deficiência na sala de aula regular seria o estopim de uma nova mentalidade. É a chamada "educação inclusiva".
"Certamente, crianças que vivenciem a diversidade na escola serão melhores que nós, que não aprendemos a lidar com o diferente", assegura a pedagoga Maria Tereza Mantoan, coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino de Deficientes da Unicamp e autora do livro Ser ou estar: eis a questão – Explicando o déficit intelectual.
Hoje, são raros os alunos com deficiência estudando nas salas regulares. A maioria está nas salas especiais, nas escolas especiais ou em casa. "Por muito tempo, se acreditou – e muitos ainda acreditam – que a criança teria maiores chances de se desenvolver e se adaptar à vida social com uma educação especial", afirma a pesquisadora. Ou seja, o melhor para a criança seria ficar com outros portadores de deficiência, em espaços separados, com professores especializados. "Entretanto, estudos mais recentes, realizados no mundo inteiro, comprovam que a criança se desenvolve mais quando convive num ambiente variado, recebendo estímulos diversos, em condições normais." No Brasil, a proposta da educação inclusiva está dando os primeiros passos e, se levada a sério, promete alterar a qualidade de educação para todos.
"Hoje, a escola estigmatiza e expulsa muitas crianças, não só os portadores de deficiência, mas também os meninos de rua, os alunos com dificuldade de aprendizagem, entre outros", observa a pedagoga Leny Magalhães Mrech, da Faculdade de Educação da USP. "No Brasil, chega a ocorrer o inverso", completa Maria Tereza, da Unicamp. "Ao invés dos portadores de deficiência serem recebidos nas classes regulares, alunos que têm uma simples dificuldade motora ou um problema disciplinar são empurrados para as salas especiais." Para a pesquisadora, esses encaminhamentos absurdos, ao lado do alto índice de evasão e repetência, atestam o fracasso do atual ensino regular. "Por isso, a educação inclusiva é ainda mais urgente no Brasil."
Potencialidades
Ao incluir alunos de todos os perfis na mesma sala de aula, a escola deve repensar muitos hábitos de sua rotina. Segundo Maria Tereza, em lugar de avaliar os alunos comparando uns aos outros, deve-se considerar o processo pessoal de cada um. Em lugar de estimular um ambiente competitivo, deve-se favorecer uma prática de cooperação entre os estudantes. E os conteúdos curriculares fechados devem ser substituídos pela pluralidade e pela criatividade. O próprio enfoque das diferenças entre os alunos deve se alterar. "Até hoje trabalhamos a partir das deficiências. Temos que partir das potencialidades", afirma Lucimar Camões Peixoto, coordenadora-geral de Educação Especial no Ministério da Educação. Para realizar essa virada, as especialistas concordam que o maior investimento deve se dar na formação dos professores do ensino regular. "Não é possível haver inclusão sem apoio ao professor", adverte Maria Tereza.
No final do ano passado, foi lançado o novo Plano Nacional de Educação Especial, que definiu metas para os próximos dez anos. Entre elas, destacam-se as seguintes: universalizar o atendimento aos alunos com necessidades educativas especiais na educação básica e superior com o devido apoio especializado; aumentar os recursos orçamentários para esse atendimento visando atingir no mínimo 5% dos recursos destinados à educação; introduzir nos cursos de formação de professores conteúdos que permitam realizar esse trabalho; reavaliar todas as classes especiais; redimensionar a atuação de todos os estabelecimentos de educação especial; dar acesso a equipamentos específicos para os alunos com deficiência visual e auditiva; adaptar os prédios escolares.
Segundo esse plano, a maioria dos alunos com necessidades educativas especiais freqüentará classes comuns, mas alguns poderão precisar de classes especiais, e os casos mais sérios, com alto grau de comprometimento mental ou com deficiências múltiplas, serão encaminhados a instituições especializadas. A pesquisadora Maria Tereza não concorda com essa separação e teme que, no Brasil, a inclusão ocorra de forma distorcida. "A educação inclusiva não admite salas ou escolas especiais. Ninguém pode ser excluído." Neste ano, o plano começa ser repassado para os estados e municípios e vai se concretizar escola por escola.
Um exemplo em Natal
Na dianteira do ministério, algumas prefeituras e instituições já colhem os bons frutos da proposta inclusiva. Em Natal, no Rio Grande do Norte, por exemplo, as primeiras crianças com síndrome de Down que estudaram nas escolas do Sesi (Serviço Social da Indústria) já foram para outros cursos regulares. "Percebemos que elas estão felizes", diz Maria de Fátima Felipe, coordenadora do Programa de Educação do Sesi do Rio Grande do Norte. "Certamente, estão avançando muito mais na apropriação de conhecimento, no desenvolvimento da linguagem e relacionamento social do que se tivessem ficado nas instituições especializadas", assegura a educadora.
Foram os pais dessas crianças que, em 1990, solicitaram a matrícula de seus filhos na rede escolar do Sesi. "Logo, nos perguntamos qual era a legitimidade de uma escola que só podia ser freqüentada por alguns", lembra Fátima, "e então decidimos mudar." Com as primeiras matrículas, a escola foi se reorganizando, e os ajustes acabaram sendo muito mais simples do que imaginavam. "O ponto-chave foi reciclar as concepções dos professores e educadores, investindo na sua formação", afirma Fátima. "No final, toda a escola saiu ganhando." Hoje, 58 crianças, com diferentes tipos de deficiência, freqüentam oito escolas do Sesi na capital e no interior daquele estado.
No município de Santo André, na Grande São Paulo, está em andamento outro projeto. No ano passado, a prefeitura começou um abrangente plano de educação inclusiva. "Só vamos superar o fracasso escolar quando percebermos que a grande culpada não é a criança. O professor não pode tratar todos os alunos como se fossem iguais", diz Maria Sirley dos Santos, diretora do Departamento de Educação Infantil e Ensino Fundamental da Secretaria Municipal de Educação de Santo André. Até o ano 2000, a prefeitura pretende promover uma reciclagem dos professores, diretores e pedagogos da rede municipal de educação básica e prepará-los para trabalhar com todo tipo de aluno. Em paralelo, serão criadas escolas de pais e centros de diagnóstico e acompanhamento clínico, onde os alunos terão apoio fonoaudiológico, psicológico e psicopedagógico.
Ao lado da educação, as artes e o lazer também têm se mostrado um terreno fértil para plantar uma nova relação com as deficiências. "Quando observamos nossos filhos brincando com as outras crianças, mudamos nosso modo de vê-los", conta Heloisa Capelas Barbosa, presidente da Associação de Pais e Amigos de Pessoas Portadoras de Deficiência dos Funcionários do Banco do Brasil (APABB), em São Paulo. "Finalmente podiam fazer algo do jeito deles. Percebemos que criavam vínculos e sorriam como todas as crianças." Mãe de três filhos (entre eles, Beatriz, que nasceu com uma deficiência mental e tem hoje 15 anos), Heloisa foi uma das primeiras a participar das reuniões da associação, fundada há dez anos. Segundo Heloisa, os pais que têm filhos deficientes costumam se angustiar tanto com a preocupação de adequá-los aos padrões de comportamento que a brincadeira e a liberdade não têm vez.
Na mesma situação, alguns colegas do banco começaram a se reunir, fazer churrascos, passar o dia no clube e conviver de forma diferente. "Vimos que nossos filhos, com autismo, paralisia cerebral, síndrome de Down, podiam brincar com seus irmãos, primos ou vizinhos sem problemas. Fazíamos a famosa ‘inclusão’ sem saber." Essa postura foi sendo amadurecida e, hoje, está presente nos 11 núcleos da associação espalhados pelo país.
Desde 95, a associação se abriu para toda a comunidade e já envolve quase 900 pessoas. Em São Paulo, além das atividades de recreação de fim de semana, são organizados acampamentos e passeios, nos quais crianças com e sem deficiências convivem em espaços freqüentados por todos. "Muitas vezes, a exclusão começa na própria família, e as instituições convencionais não tentam reverter esse distanciamento. Por isso, buscamos em primeiro lugar incluir a pessoa no universo que a rodeia", destaca Heloisa.
Espaço para a arte
Da mesma forma que o portador de uma deficiência física ou mental pode brincar, também pode criar. Por isso, a arte se apresenta como outro importante campo para a mudança de mentalidade. "A sociedade confunde deficiência com incapacidade de criar e se expressar", afirma Albertina Brasil Santos, coordenadora do Very Special Arts no país. Iniciado há mais de 20 anos nos Estados Unidos, esse programa chegou ao Brasil nos anos 90 e, em parceria com a Funarte, já formou comitês em todos os estados. O objetivo é divulgar seus projetos e abrir espaço para os artistas que sejam portadores de deficiência.
"Queremos que eles sejam inseridos no mercado e nos espaços culturais, não por sua deficiência mas por seu talento e pela qualidade do trabalho", esclarece Paulo César Soares, diretor artístico da entidade. Ele cita o exemplo das secretarias de cultura, que não se lembram de incluir em suas programações artistas portadores de deficiência. "Não estamos falando em reuni-los em uma programação especial, segregada, mas de incluí-los na programação rotineira."
Para chamar a atenção do público, mídia e patrocinadores, o Very Special Arts organiza festivais anualmente. De 27 a 30 de maio deste ano, no Sesc Pompéia, em São Paulo, acontece o I Festival Latino-Americano de Artes Sem Barreira. Grupos formados por pessoas deficientes e não deficientes, como a Roda-Viva Cia. de Dança (ver texto abaixo)), o Coral Benjamin Constant e o Grupo de Dança Folclórica Anjori, vão se revezar no palco com Ney Matogrosso, Toquinho e o Ballet Stagium, entre outros.
Em paralelo, vai ser realizado o I Congresso Latino-Americano de Arte-Educação Inclusiva, no mesmo local. "Além de abrir o mercado para o artista profissional, buscamos valorizar a arte como processo educativo", diz Paulo César. Através de palestras e oficinas de música, canto, capoeira, fotografia, entre outras, busca-se despertar os arte-educadores para as possibilidades de trabalho com uma turma heterogênea, que inclua portadores de deficiência.
Barreiras urbanas
Na verdade, a mudança de visão precisa ser acompanhada de alterações concretas, começando pelo espaço físico. Afinal, para participar do dia-a-dia, a pessoa precisa do primário direito de ir e vir. Os especialistas declaram que mais uma vez a sociedade precisa voltar os olhos para si mesma e reconhecer que até mesmo o traçado de suas ruas e edifícios desconsidera as diferenças entre as pessoas.
No projeto Espaço Acessível, montado na última Bienal Internacional de Arquitetura, em São Paulo, o visitante era convidado a se sentar numa cadeira de rodas e andar sobre pedras, superando buracos e desníveis. Nas ruas, a lista de barreiras é bem maior: falta de rampas e elevadores; ausência de sinalização para deficientes auditivos e visuais; telefones públicos, lixeiras e placas no meio das calçadas; degraus altos, etc . "Quando é possível passar pela porta do banheiro, alcançar a pia, se ver no espelho ou alcançar o balcão é a glória", conta Ana Maria Morales Crespo, do Centro de Vida Independente Araci Nallin.
No mesmo Espaço Acessível, foram apresentadas várias soluções que assombraram os arquitetos por sua simplicidade e baixo custo. "A discussão da acessibilidade não faz parte do currículo das faculdades. Os arquitetos se formam achando que adaptar o espaço é um bicho-de-sete-cabeças", conta Silvana Serafino Cambiaghi, uma das curadoras do projeto. Usuária de cadeira de rodas, a própria Silvana demonstra a validade das soluções. Na cozinha, os móveis e eletrodomésticos estão ao seu alcance; na frente do fogão, há uma área de giro para a cadeira; o móvel da pia tem um recuo que lhe permite alcançar a torneira. No banheiro, há barras e espaço para se acomodar. Nas rampas, um piso diferenciado alerta o deficiente visual de que ali começa uma subida. No corrimão, avisos em braile informam a próxima atração da exposição. O corrimão está afastado da parede e tem a espessura correta para quem precisa se apoiar nele. As torneiras e maçanetas são de fácil manuseio. "Todos esses detalhes facilitam a vida não só do portador de uma deficiência, mas também dos idosos, crianças, baixinhos, obesos ou cardíacos", destaca a arquiteta Maria Elisabete Lopes, também curadora do projeto.
"Hoje, os projetos devem buscar o desenho universal", diz Adriana de Almeida Prado, arquiteta do Centro de Estudos e Pesquisas de Administração Municipal (Cepam), que assessora as prefeituras paulistas. "Não só os edifícios, mas os meios de transporte, a comunicação, as ruas, praças e objetos devem ser pensados a partir da multiplicidade das pessoas." Certamente, a adaptação de tudo já construído não é nada fácil. "Quando uma prefeitura nos procura, sugerimos que comece traçando uma primeira rota acessível, que, por exemplo, interligue o centro."
Para Adriana, a parceria com a sociedade deve ser estimulada. Ela cita o caso do município de Santo André, na Grande São Paulo, que criou o programa "S.O.S. Rampa e Calçada", em 97. A população foi chamada a fiscalizar e denunciar a obstrução de rampas e calçadas. Em São Vicente, no litoral paulista, o projeto "Adote uma Rampa e uma Faixa" está à espera de patrocinadores que queiram rebaixar a guia e, em troca, ver seu nome pintado na faixa de pedestres.
A Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) lançou, em 94, uma norma de acessibilidade a edificações, que alguns municípios já transformaram em lei. Outra norma sobre o acessibilidade no transporte público já está pronta, apenas esperando publicação. Enquanto isso, alguns empreendedores dão exemplo de que a acessibilidade não é um quebra-cabeça tão complicado.
Já no começo dos anos 80, o Sesc (Serviço Social do Comércio) de São Paulo estabeleceu normas de acesso para todos os seus espaços. As unidades construídas desde então – Santos, Taubaté, São José do Rio Preto e São Carlos, no interior, e Itaquera, Ipiranga e a recente Vila Mariana, na capital – incorporaram adaptações nos seus projetos. "A elevação de custo é mínima, comparada com o benefício social", diz Luís Wilson Pina, assessor de planejamento da entidade. Entradas e saídas, portas e corredores, vestiários, sanitários e estacionamentos foram planejados considerando também os portadores de deficiência, idosos e crianças. "O objetivo é facilitar a presença e participação de todos", resume Pina.
De volta à vida
Por mais que a pessoa tenha uma deficiência, pode conquistar uma vida independente, produtiva e plena. Com essa certeza, o movimento de Vida Independente se espalhou nos Estados Unidos e chegou, há dez anos, ao Rio de Janeiro. Hoje, já são 12 Centros de Vida Independente (CVI) no país, de Curitiba a São Luís do Maranhão. Criados e dirigidos por portadores de deficiência, os centros atuam com autonomia, mas têm uma filosofia em comum.
"Buscamos fortalecer a pessoa através de informações e orientações", explica Geraldo Nogueira, do CVI do Rio de Janeiro. Um dos serviços básicos é o Aconselhamento de Pares. Apesar do nome, a idéia não é aconselhar, mas propiciar uma troca de vivências. "É essencial poder conversar com alguém na mesma situação e encontrar caminhos para as dificuldades", diz Geraldo. "Muitas vezes, a pessoa vive de forma isolada e se sente só", completa Ana Maria Morales Crespo, do CVI Araci Nallin, de São Paulo. "E existir alguém com quem ela possa dividir problemas e buscar soluções significa resgatá-la para a vida." Os centros também mantêm um núcleo de informações sobre escolas, unidades de reabilitação, equipamentos, entidades, transporte e outros serviços que atendam portadores de deficiência.
No Rio de Janeiro, são oferecidos equipamentos personalizados, além de cursos preparatórios para o mercado de trabalho. Através de uma parceria com a Pontifícia Universidade Católica (PUC/RJ), foi montada uma oficina onde um fisioterapeuta, um desenhista industrial e o portador de deficiência buscam juntos uma solução de prótese não disponível no mercado.
Todo o atendimento à comunidade é gratuito, e os centros tentam se manter com assessorias e palestras para empresas e administrações públicas.
O papel da dança
No palco, bailarinos fazem o espetáculo. Não importa que alguns apresentem uma deficiência física. Não a escondem (como ocultar uma cadeira de rodas ou um par de muletas?), mas tampouco tentam transformá-la em protagonista. "Simplesmente dançamos", resume Henrique Amoedo, coreógrafo e bailarino da Roda-Viva Cia. de Dança, que surgiu na cidade de Natal, em 95. "Buscamos surpreender pela qualidade de nosso trabalho e não por incluirmos profissionais com deficiência." São todos artistas e, juntos, recriam o belo. "As pessoas descobrem que a estética da arte vai muito além de um corpo perfeito", diz o coreógrafo. Em cena, são 14 bailarinos, cinco deles usuários de cadeira de rodas, dois com muletas e outros três com seqüelas de poliomielite.
O projeto começou com o Programa Interdisciplinar de Reabilitação de Lesão Medular, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Segundo o coreógrafo, a dança pode auxiliar muito no processo de reabilitação. "Além de trabalhar com a flexibilidade, alongamento e coordenação, ajuda no aprendizado do manejo de uma cadeira de rodas e dos movimentos do dia-a-dia", diz Henrique. E também pode interferir no processo de inserção social. "Afinal, a dança sempre foi uma forma de o homem chegar aos outros."
Hoje, a Roda-Viva é um projeto de extensão universitária do Departamento de Artes da universidade. Ainda sem transporte próprio nem patrocinador, o grupo tenta cumprir uma agenda intensa e variada. Além de se dedicar aos ensaios e espetáculos, a companhia desenvolve o Projeto Arte na Escola, através do qual se apresenta em escolas estaduais e discute a prevenção das deficiências. Os bailarinos também visitam famílias de pessoas com deficiência, dando orientações sobre os cuidados e caminhos para melhorar sua qualidade de vida no dia-a-dia.