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Três vozes que ninguém esquece

por Herbert Carvalho

Foram cantoras do rádio e da TV, na época em que esses meios eletrônicos de comunicação ofereciam uma programação artística de qualidade. Quando os homens monopolizavam o mundo da música, elas bateram todos os recordes de vendagem de discos. Apesar das trevas da censura e da ditadura militar, cantaram a liberdade e a esperança de um Brasil socialmente justo. Contra a invasão de ritmos estrangeiros, foram buscar nos rincões do interior e nos morros urbanos jovens compositores e veteranos esquecidos, que revelaram para o mundo. Lançaram modas e bossas, viveram muito em pouco tempo e ajudaram a criar a identidade de um país que se define pelo canto e pela arte resistente de seu povo. Nara e Clara completariam 70 anos em 2012 se estivessem vivas, enquanto Elis estaria festejando 67. Recordá-las significa reviver a Era dos Festivais, da Jovem Guarda e do Tropicalismo, enfim, da criação e do auge daquilo que hoje conhecemos como música popular brasileira.

Nara Lofego Leão nasceu em Vitória e contava um ano de idade quando sua família deixou a capital do Espírito Santo para se estabelecer em um apartamento em Copacabana, bairro carioca que entraria para a história como o principal reduto da Bossa Nova.

O advogado Jairo Leão e a professora Altina Lofego, descendentes das famílias D’Amico e Lofiego, de imigrantes italianos da região da Basilicata, formavam um casal de classe média diferente. Não comemoravam Natal, Ano-Novo ou mesmo aniversários. Além disso, emanciparam as filhas antes da maioridade legal, e, mais do que diplomas, exigiam delas que trabalhassem, para não depender de maridos.

A mais velha, Danuza Leão, antes de se tornar cronista e escritora, foi a primeira modelo brasileira a desfilar no exterior. A beleza e o sucesso da irmã marcaram a infância da caçula, Nara, nove anos mais jovem, que era tímida e se achava feia, embora mais tarde tivesse os próprios joelhos reconhecidos como os mais lindos do Brasil.

Recolhida à sua “concha” até os 12 anos, dela começa a sair com a ajuda do violão, que aprende com Patrício Teixeira, antigo companheiro de Pixinguinha e autor de um manual do instrumento. Pegava carona nessas aulas outro capixaba, Roberto Batalha Menescal, cinco anos mais velho que Nara, seu namorado na adolescência e amigo por toda a vida, produtor de seus discos e músico que a acompanharia até o outro lado do mundo, em turnê pelo Japão.

À liberdade de uma casa sem regras nem horários, onde as reuniões musicais na sala aconteciam a distância dos longínquos quartos dos pais, soma-se a urbanização acelerada e a violência de uma cidade que não permitia mais serestas na rua: entre quatro paredes surge então o laboratório intimista que produziu as obras iniciais do próprio Menescal, do namorado seguinte de Nara, Ronaldo Bôscoli, e dos demais mitos da Bossa Nova, como João Gilberto, Carlos Lyra e Vinicius de Moraes. Vivia-se ainda o final dos anos dourados quando ao lado de Lyra e Moraes despontou, na comédia musical por eles criada, intitulada Pobre Menina Rica, a cantora Nara Leão, de voz pequena, mas com uma personalidade tão forte que logo se chocaria contra o regime militar recém-instalado em março de 1964.

Nesse ano trágico para a democracia, mas paradoxalmente fértil para a música popular, Nara surpreende ao reunir em seu LP de estreia “bossa-novistas” e sambistas até então ignorados pelas gravadoras, como Cartola, Nelson Cavaquinho e Zé Kéti. Com este último ela faria em seguida, ao lado do maranhense João do Vale, o show Opinião, com textos e direção de militantes do famoso Centro de Cultura Popular (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE). “Além do amor e da saudade, pode o samba cantar a solidariedade, a vontade de uma vida nova, a paz e a liberdade”, disse a cantora, que naquele momento namorava o cineasta Ruy Guerra, marxista convicto, nascido em Moçambique.

Uma declaração que faz no ano seguinte, atacando os militares, a coloca na iminência da prisão, evitada graças à intensa movimentação de intelectuais. Entre eles estava o poeta Carlos Drummond de Andrade, que se dirige ao então presidente Castello Branco por meio de um poema, com estas estrofes finais: “Nara é pássaro, sabia?/ E nem adianta prisão/ Para a voz, que pelos ares,/ Espalha a sua canção./ Meu ilustre marechal,/ dirigente da nação,/ não deixe, nem de brinquedo,/ que prendam Nara Leão”.

Em 1966, ela se consagra no II Festival da TV Record cantando uma das músicas vencedoras, A Banda, de Chico Buarque de Hollanda. O compacto lançado em seguida vende 50 mil cópias em três dias, desbancando o recordista Frank Sinatra, que levara meses para alcançar a mesma quantidade com Strangers in the Night. Em 1967, Nara Leão se casa com outro cineasta, Cacá Diegues. Na boate Zum Zum, Vinicius e Tom Jobim propuseram uma expedição punitiva contra o Cinema Novo, “por ter roubado a musa da Bossa Nova”. No início da década de 1970, ela parte com o marido para a Europa, onde já estavam exilados Caetano Veloso e Gilberto Gil, junto aos quais havia gravado o célebre disco Tropicália, no qual canta a faixa Lindoneia. Sua filha Isabel nasce em Paris e o filho Francisco na volta ao Brasil, em 1972, quando decide estudar psicologia e se dedicar mais à família, deixando a carreira em segundo plano.

Guerreira

Em Paraopeba (MG), no distrito de Cedro – atual município de Caetanópolis –, a vida de Clara Francisca Gonçalves teve seu início marcado pela pobreza e pela tragédia. Perdeu o pai, violeiro que organizava folias de Reis, aos 2 anos de idade, e a mãe aos 6. Com 14 anos, cantava no coro da igreja, mas para ajudar no sustento da família empregou-se como aprendiz de tecelã na Companhia Fiação e Tecidos Cedro e Cachoeira, a mesma em que seu pai fora serrador e onde trabalhavam quase todos os seus irmãos. No dia 3 de setembro de 1957, o mais velho deles, José Pereira Gonçalves, vulgo Zé Chilau, matou com três facadas um namorado da irmã caçula, que por causa desse crime teve de se mudar para Belo Horizonte, onde assumiria o sobrenome materno para tornar-se a cantora Clara Nunes.

Descoberta na capital mineira no início da década de 1960 pelo maestro Jadir Ambrósio, compositor do hino do Cruzeiro Esporte Clube, começou a interpretar em emissoras locais músicas do repertório de Dalva de Oliveira, Ângela Maria e Elizete Cardoso, que ouvia desde criança e admirava. Cantou em casas noturnas – as mesmas em que seu conterrâneo Milton Nascimento se apresentava – e chegou a ter um programa na TV Itacolomi. Porém, brilhar em Belo Horizonte era pouco: Clara ambicionava fazer sucesso nacionalmente, seguindo as trilhas de Nara Leão e Elis Regina, cantoras que estouravam naquele final do ano de 1965, quando então ela decide tentar a sorte no Rio de Janeiro.

Seus três primeiros LPs pela gravadora Odeon foram decepcionantes. Refletiam a indefinição do perfil de cantora. Clara atirava para todo lado, sem acertar o alvo. Começou interpretando canções melosas aboleradas, flertou com a Jovem Guarda – participando inclusive do filme Na Onda do Iê-iê-iê – e chegou a gravar Casinha Pequenina, do folclore popular. Gravou também Apesar de Você, crítica velada de Chico Buarque à ditadura. Embora esse disco não tenha chegado às lojas (a matriz foi apreendida), despertou a ira dos militares, que exigiram sua participação na Olimpíada do Exército e a gravação de um hino. O episódio se repetiria um ano depois, em 1972, com Elis Regina, forçada a cantar o Hino Nacional no mesmo evento, como represália por ter criticado os militares.

Na vida pessoal, Clara também sofreu ao chegar ao Rio de Janeiro em companhia do playboy mineiro Aurino Araújo, seu namorado durante dez anos, irmão de Eduardo Araújo, cantor que dividia apartamento com Carlos Imperial. Viver sob o mesmo teto com Imperial, compositor e produtor musical, protagonista de escândalos e embalos, não deu muito certo. Ela foi morar com outras quatro mulheres, experiência que a marcaria muito, conforme seu próprio relato: “Éramos cinco em um quarto minúsculo. Duas eram prostitutas e uma se drogava. Eu estava para deixar tudo e voltar a Belo Horizonte quando aconteceu uma espécie de milagre. Uma das moças levou-me a um centro na Rocinha. Ali encontrei minha força, meu caminho. Desenvolvi-me na umbanda. As linhas do destino tecem tramas muito esquisitas”.

A esse encontro, que associaria para sempre à imagem de Clara a marca das religiões afro-brasileiras e o título de “guerreira”, seguiu-se outro, decisivo para fazer do samba a expressão maior de sua arte: a convite do lendário Natalino José do Nascimento, o bicheiro Natal, da Portela, ela passa a frequentar a quadra dessa escola de samba da zona norte carioca, pela qual se apaixonaria e desfilaria na avenida até o final da vida, atuando, inclusive, como intérprete de sambas-enredo.

No LP da virada em sua carreira o samba de quadra Ê Baiana e o samba-enredo da Portela Ilu Ayê são decisivos para conquistar crítica e público. O disco vende mais que os três anteriores somados e a Clara mestiça, agora trajando vestidos longos, rendas, colares, guias de santo, pulseiras e turbantes, monopoliza a mídia impressa e eletrônica, fazendo chover convites para shows.

Na década de 1970, Clara Nunes torna-se a primeira mulher a ultrapassar a barreira dos 100 mil discos vendidos, com o sucesso estrondoso de Tristeza Pé no Chão, de Armando Fernandes, e de O Mar Serenou, do portelense Candeia. Casa-se com o poeta e letrista Paulo César Pinheiro, que para ela comporia Portela na Avenida, o primeiro de um total de dez sambas em homenagem a igual número de escolas do Rio, que fariam do compositor um êmulo de Ary Barroso, autor de marchas que exaltam os clubes cariocas de futebol. Sua felicidade só não é completa porque o sonho de ser mãe se frustra após três abortos seguidos, causados por miomas no útero.

Pimentinha

A primogênita do chefe do almoxarifado de uma fábrica de vidros, Romeu Costa, e da lavadeira Ercy Carvalho nasceu em 1945, em Porto Alegre. Na infância vivida em casa de madeira e quintal de terra batida na periferia da capital gaúcha, Elis Regina Carvalho Costa se fazia notar pelas características que a distinguiriam no futuro: era estrábica e baixinha, mas dona de voz poderosa.

Aos 11 anos cantava no programa infantil “Clube do Guri”, da rádio Farroupilha, em Porto Alegre, e aos 14 já ganhava em cachês mais do que o salário do pai, dinheiro que ajudava a família, mas criaria conflitos quando se transformou em fortuna. Estava ainda no Rio Grande do Sul quando gravou, aos 16 anos, seu primeiro disco – Viva a Brotolândia –, com rocks e calipsos, e mais dois de boleros, todos de repercussão local, apenas.

Em 1964, chega ao Rio de Janeiro e desembarca no Beco das Garrafas, pedaço de Copacabana em cujos bares predominava o samba-jazz, com naipes de metais, percussão pesada e cantores improvisados. Rapidamente tornou-se a sensação do lugar, estrelando na boate Bottle’s um show produzido pela dupla bambambã da época, Luiz Carlos Miele e Ronaldo Bôscoli. Este, depois de Nara Leão e de um romance com a cantora Maysa, se tornaria o primeiro marido de Elis, com quem se casou em 1967 e teve um filho, João Marcelo. Também no Beco, a gauchinha conheceu o bailarino Lennie Dale, e com ele aprendeu a usar o corpo no famoso balanço do seu laia-ladaia-sabatana-ave-maria.

O estouro de Elis Regina veio em 1965, ao vencer o I Festival da extinta TV Excelsior defendendo a música Arrastão, de Edu Lobo e Vinicius de Moraes. Em seguida, forma com Jair Rodrigues a célebre dupla do show O Fino da Bossa, que renderia três LPs gravados ao vivo. Elis ganhou um programa homônimo na TV Record, que, durante dois anos, se transformou na trincheira da música de qualidade, antes da invasão do mau gosto que até hoje impera. Seu salário, de US$ 17 mil, era o maior já pago na televisão brasileira e na emissora – quem ganhava mais, até então, era o cantor Agostinho dos Santos, com meros U$ 2 mil por mês. Era tanto dinheiro que os dois primeiros pagamentos, mesmo descontados os 20% do empresário Marcos Lázaro, permitiram a Elis, com sobra, comprar um apartamento para sua família.

Sua carreira a partir daí foi fulgurante no Brasil e no exterior, onde brilhou no Olympia de Paris e no Montreux Jazz Festival, na Suíça. Com o sentido harmônico, o volume e a potência das grandes vozes, transitou da Bossa Nova – gênero que imortalizou na interpretação de Águas de Março e no LP Elis e Tom, gravado nos EUA em 1974 – ao jazz, ritmo em que era capaz de improvisar como as grandes cantoras americanas. Teria feito sólida carreira internacional não fosse tão ligada ao Brasil e aos novos compositores que lançou, como Ivan Lins, com a música Madalena; Renato Teixeira, com Romaria, e a dupla João Bosco e Aldir Blanc. Dos dois ela gravou, entre outras, a canção O Bêbado e a Equilibrista, que se transformaria no hino pela anistia aos exilados e presos políticos. A gargalhada estridente, as brigas que arranjava – inclusive com Nara Leão, acusada por ela de nem ser cantora – e as trocas de namorados (que incluíram Edu Lobo e Nelson Motta, por exemplo) e de maridos (depois de Bôscoli casou-se com o pianista Cesar Camargo Mariano, com quem teve os filhos Pedro e Maria Rita) renderam-lhe dois apelidos: Pimentinha, dado por Vinicius de Moraes, e Eliscóptero, como a chamava a amiga roqueira Rita Lee.

Despedidas

Num sábado do início de 1979, Nara Leão sentiu uma forte tonteira. Tudo parecia rodar. Colocada na cama, falava frases sem sentido em inglês. Quando os filhos chegaram, perguntou em português: “Quem são essas crianças lindas?” A causa desses apagões de memória, que se repetiriam, inclusive no palco, pelos dez anos seguintes até sua morte, era um tumor do tamanho de um maracujá, situado numa área do cérebro inatingível por cirurgia sem sequelas devastadoras. Em março de 1989 fez seu último show em Belém (PA) e assistiu ao filme Bird, a cinebiografia do músico Charlie Parker. Em maio não controlava mais seus movimentos e não conseguia sequer fazer sua assinatura. Morreu no dia 7 de junho, aos 47 anos, sem chegar a votar na eleição direta para presidente da República pela qual tanto lutara, mesmo doente.

Se os médicos nada puderam fazer para salvar a vida de Nara, situação muito diversa ocorreu ao morrer Clara Nunes, episódio em que tiveram forte grau de responsabilidade. Em uma cirurgia de varizes por razões estéticas que poderia ter sido feita com uma anestesia peridural, eles cederam às exigências da cantora pela anestesia geral, mas deixaram de fazer os testes prévios sobre eventual alergia ao medicamento. O resultado foi um choque anafilático que provocou parada cardíaca e edema cerebral. Clara foi reanimada, permaneceu em coma 28 dias, mas seu cérebro já não funcionava. Velada na quadra da Portela por 50 mil pessoas, foi sepultada no Cemitério São João Batista no mesmo dia de sua morte, em 2 de abril de 1983. Tinha 40 anos.

Tragédia ainda maior para os fãs e todo o país ocorrera um ano antes, na cidade de São Paulo. Em 19 de janeiro de 1982, na véspera de contrair o terceiro casamento, agora com Samuel MacDowell, advogado de presos políticos, Elis Regina foi encontrada morta em seu apartamento. O laudo médico divulgado dois dias depois dava conta de que fora vítima de uma parada cardíaca provocada por consumo de álcool e cocaína. Seu corpo foi velado no palco do Teatro Bandeirantes, onde seis anos antes apresentara, durante 14 meses, o show Falso Brilhante, o maior sucesso de sua carreira. A comoção popular, expressa nas longas filas formadas pelas pessoas comuns e fãs que foram se despedir dela e a saudaram no trajeto até o Cemitério do Morumbi, só encontrou paralelo nas mortes de Francisco Alves e Carmen Miranda, na década de 1950. Desaparecida aos 36 anos, Elis deixou gravações antológicas nunca superadas ou igualadas, que nos permitem afirmar, como fazem os argentinos em relação a Carlos Gardel: passam-se as décadas e ela cada vez canta melhor.