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A polêmica do parto humanizado

por Felipe Obrer

Como no mito da caverna platônica, espectros fantasmagóricos e distorcidos, não condizentes com a realidade, habitam o imaginário social relacionado à gestação, ao parto e ao nascimento. Contribuem grandemente para essa ilusão as representações que a mídia televisiva e o cinema fazem: a mulher deitada, gritando ou gemendo de dor, e pessoas com atitude compungida em volta. Perguntamos à mulher: “Quem fez o seu parto?”, esquecendo-nos de que ela poderia ser a protagonista, em vez de um médico ou uma parteira. Sabemos que comer, dormir, amar e defecar são atividades que ninguém pode fazer por nós. Por que, então, um parto poderia ser terceirizado?

A discussão do tema não é simples. Existem tabus muito arraigados, justificados por um discurso pretensamente científico, que mantêm o estado de coisas presente e legitimam uma série de intervenções. Convém, contudo, considerarmos que a socialização do parto é um fenômeno novo na história da humanidade, tendo ele sido durante a maior parte do tempo ligado apenas ao universo feminino e tratado como processo fisiológico, não como doença. Parteiras por vocação eram as únicas presenças além da parturiente. Mesmo que hoje consideremos natural, nem sempre foi permitida a entrada em cena de homens vestidos de jaleco branco, ditando normas sobre o que as gestantes e mulheres em trabalho de parto devem fazer.

Assim como em outras práticas humanas, os questionamentos teóricos e as propostas de reformulação desses procedimentos vêm acontecendo há décadas. O degelo, no entanto, é lento, mas poderia começar pelos corações. No tocante ao parto e ao nascimento, é isso o que nos diz a ciência mais avançada – feita, paradoxalmente, por homens e mulheres de jaleco branco e que não desperdiçam sabedorias milenares.

Mais que um dispositivo anatômico bombeador de sangue para o organismo, o coração entra aqui como símbolo do afeto. A capacidade de amar do ser humano, atestam estudos, está relacionada a um hormônio chamado ocitocina (ou oxitocina). Produzida pela glândula pituitária numa região do cérebro conhecida por hipotálamo, essa substância química é liberada em situações especiais da vida. Estão entre elas, por exemplo, o compartilhamento das refeições ou do chá e a interpretação musical em parceria com outra pessoa. A ocitocina também se apresenta quando entramos no estado de sono e quando atingimos o orgasmo. Além disso, ela é liberada pelas mulheres durante o trabalho de parto. É esse hormônio que produz o apagamento neocortical, a tal viagem “para um outro planeta”. Algumas coisas da vida não são possíveis “com a cabeça cheia”. Qualquer pessoa curiosa pode descobrir essas informações e muitas outras lendo A Cientificação do Amor, ou explorando a farta literatura produzida pelo francês Michel Odent, com inúmeros livros traduzidos para a língua portuguesa. Ele é uma espécie de legionário cativante e apaixonado da humanização do parto e do nascimento, ativo pela causa há pelo menos 40 anos.

Odent iniciou o caminho que o levaria a se transformar numa referência mundial no assunto ainda nos anos 1960, na França, ao se lançar de corpo e alma na cruzada que tinha em mira melhorar a maneira como as pessoas nascem. Dirigiu em seu país uma maternidade chamada Pithiviers, que serviu para a descoberta de maneiras mais eficazes e menos intervencionistas de prestar assistência a mulheres grávidas ou em trabalho de parto. Lá foi criada, por exemplo, uma sala de música, onde havia um piano e realizavam-se encontros em que a equipe de saúde e os pacientes se reuniam para cantar. Odent diz que o mobiliário interfere na percepção do ambiente, e a presença de um instrumento musical desfaz parte da frieza comum em hospitais.

Encontros mundiais

Há algumas décadas radicado em Londres, o médico segue com iniciativas de fomento às casas de parto, ao uso de piscinas específicas em ambientes hospitalares, ao parto domiciliar, ao protagonismo feminino e à não intervenção. Ele mantém na internet o site www.wombecology.com, em que publica estudos relacionados à relação entre o feto e o ambiente intrauterino, aos distúrbios em geral e à saúde mental.

Entre outras ocasiões, o francês esteve no Brasil em 2011, quando proferiu uma palestra e ministrou um workshop. A ponte entre ele e o país é Heloisa Lessa, que, questionada se gostaria de ser chamada de parteira ou enfermeira obstétrica, respondeu: “Prefiro enfermeira-parteira. Porque tem o lado da enfermeira – não a que dá injeção, mas a que cuida – e o da parteira, aquela que reza”. E o que ela acha da cesariana? “É a coisa mais linda do mundo quando necessária. Mas o interessante é oferecer às mulheres as melhores condições para um parto pelas vias normais, fisiológicas. Se surgirem complicações, aí sim recorremos à cesárea.”

Heloisa dedica a vida à assistência pré-natal para gestantes, aos partos domiciliares e, junto com Odent, a organizar eventos ao redor do mundo dedicados à difusão de informações e conceitos das práticas humanizadas. Em 2010, os dois promoveram um encontro nas ilhas Canárias relativo ao tema e no momento trabalham com vistas à realização em outubro de uma conferência internacional em Honolulu, no Havaí. Eles escolhem lugares “perdidos” no meio do oceano para reafirmar a natureza aquática do homem e sair do eixo das grandes metrópoles, ficando mais próximos da equidistância em relação aos extremos. Japonês, inglês e espanhol, os três idiomas para os quais haverá tradução simultânea, atestam a diversidade de participantes. Heloisa conta que o próximo encontro terá uma oficina de tricô silencioso para parteiras, com a finalidade de destacar o que é mais importante na assistência ao parto: calma e discrição. Experimentos comprovaram que o ato de tricotar induz, por ser repetitivo, a um estado de tranquilidade. Para mostrar que a defesa do parto humanizado não pode comportar maniqueísmos, um dos palestrantes, médico, vai discorrer sobre a cesárea e as técnicas mais modernas na cirurgia.

Ao ler os livros de Michel Odent ou ao ouvi-lo falar nas palestras ou em vídeos disponíveis na internet, emergem algumas noções que, de tão lógicas, passam a ideia de coisas evidentes por si mesmas. O problema é que muitas vezes não vemos o óbvio. As constatações científicas que ele apresenta são várias, e uma delas acentua que o fenômeno do parto integra a vida sexual humana. Embora tenhamos encontrado modos de ignorar o fato, são inúmeras as semelhanças da mulher em trabalho de parto e no desenrolar do ato sexual. E isso acontece até mesmo no plano dos neurotransmissores – substâncias químicas liberadas pelos neurônios e que respondem pela transferência de informações entre eles. E todos sabemos que um hospital, com cheiros e pessoas estranhas, não é o primeiro lugar que vem à mente quando pensamos em amor físico.

De todo modo, o movimento da humanização defende a liberdade de escolha, e há mulheres que se sentem mais seguras em um ambiente hospitalar. Ainda assim, dizem os defensores do parto domiciliar, o hospital poderia ficar apenas para os casos de risco. Segundo Odent, durante o trabalho de parto a ocitocina só será liberada nas situações em que houver a sensação de segurança, a privacidade, o silêncio, a penumbra e a liberdade de movimentos. Para quem assiste a um parto, é imperioso ter consciência dessas necessidades. Lamentavelmente, a grande maioria dos profissionais da saúde parece não se dar conta disso.

“Desnecesárea”

Ligia Moreiras Sena, doutoranda em saúde coletiva e autora do blog Cientista que Virou Mãe, está envolvida no momento com o trabalho de pesquisa “Teste da Violência Obstétrica”, que, como o próprio nome diz, enfoca os maus-tratos contra as mulheres durante o trabalho de parto. A difusão desse estudo está se dando por meio de uma rede de blogs e sites de mulheres que respondem e o repassam para outras mulheres. A “blogagem” coletiva se destina a chamar a atenção do poder público e da sociedade para esse grande problema, que arrasa emocional e fisicamente um grande número de mulheres e que é mais comum que pensamos.

O obstetra Marcos Leite dos Santos, também ativista da humanização, repete uma máxima que cabe aqui: “Quando se trata de parto, eu só sou radical em um ponto: não dá para ser radical”. O médico participa com grande frequência de congressos e reuniões em todo o mundo, sempre defendendo maior atenção à saúde com o propósito de assegurar menor mortalidade materno-infantil, mais respeito às mulheres e condições mais favoráveis ao bom andamento dos partos. Santos presidiu reiteradas vezes a Rehuna (Rede pela Humanização do Parto e do Nascimento), entidade integrada por profissionais da saúde, parteiras, doulas (mulheres que prestam auxílio a gestantes ou no pós-parto) e pessoas interessadas na mudança do cenário atual.

O Brasil prima pela intervenção cirúrgica em substituição a um evento fisiológico que, em boa parte dos casos, está fadado a correr bem, naturalmente. Os ativistas da humanização criaram até o neologismo “desnecesárea” para traduzir a realidade. Quais são os motivos para o registro de uma taxa de cesarianas próxima a 50% em todo o país, e de 90% na rede privada? Certamente esses números têm origens culturais e estão diretamente relacionados à formação dos profissionais da saúde.

Por sorte, há médicos e médicos, dizem as pessoas que comungam dos ensinamentos de Odent, e um bom indício de que essa cruzada ganha cada vez mais adeptos no Brasil é a transmissão da prática médica do parto humanizado de uma geração a outra. O obstetra Pablo de Queiroz Santos, formado em medicina pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e defensor desse tipo de parto, é filho de Marcos Leite, também obstetra e um importante defensor, no plano nacional, da humanização pregada pelo médico francês.

É importante frisar que Queiroz Santos nasceu de parto normal, sem intervenções. E é interessante contar que ele fez residência em um hospital filantrópico de uma metrópole brasileira onde a maior parte dos atendimentos é realizada pelo SUS (Sistema Único de Saúde). A vivência na instituição hospitalar, situada na periferia de Florianópolis, foi uma oportunidade de aprendizado muito valiosa, segundo garante. Ele narra ter presenciado naquela casa de saúde muitos exemplos de “maus-tratos” às mulheres em trabalho de parto. Atualmente, Santos é plantonista no Hospital Universitário da UFSC, na mesma cidade, no setor de obstetrícia. Ele diz que a instituição é um caso especial no que tange à humanização, contando com profissionais que têm consciência do respeito que deve ser dado à autonomia da mulher nesse contexto.

No Brasil, enquanto isso, dizem os profissionais que pensam como Queiroz Santos, segue, inabalável, a realização de um número explosivo de cesáreas pré-agendadas, justificadas, na maior parte das vezes, por medos infundados vivenciados pelas gestantes, quando não pelo comodismo de parcela ponderável dos profissionais. Por outro lado, trecho da conclusão do artigo “Modelos de Assistência ao Parto e Taxas de Cesárea em Diferentes Países”, publicado em 2011 pela “Revista de Saúde Pública”, de São Paulo, diz que “seria simplista, como relatado em alguns trabalhos, apenas responsabilizar a decisão médica pelas elevadas taxas de cesárea, ignorando aspectos do relacionamento médico-paciente, bem como aspectos do contexto social e do atual modelo assistencial, público ou privado, de cada país”.

Nem fotos nem vídeos

Assistência humanizada pressupõe deixar o relógio de lado e não se importar com o trabalho nos fins de semana e ao longo das madrugadas. Queiroz Santos relata que tem atendido casais – ela ainda no início da gestação – que chegam de cabeça feita e decididos pela cesárea. “São refratários ao parto normal e pronto”, conta. Entretanto, no decorrer do acompanhamento pré-natal honesto e após esclarecimentos tranquilizadores, “tenho conseguido fazê-los mudar de ideia”, afirma o obstetra.

Ele diz que a natureza de um parto é tão diversa das características de uma doença que não teria sentido manter o atendimento à parturiente restrito ao hospital. As complicações, garante, são muito menos comuns nos partos domiciliares. “No hospital os procedimentos são regidos por um gráfico chamado ‘partograma’, e qualquer ponto fora da curva deve ser rapidamente corrigido, desconsiderando, assim, as individualidades e recorrendo à intervenção.” Por isso mesmo, segundo Queiroz Santos, a assistência humaniza­-da ao parto só é verdadeiramente possível quando é pessoal, não massificada.

O trabalho Humanização do Parto e do Nascimento no Estado de São Paulo, de autoria das médicas pediatras Sandra Regina de Souza e Sonia Isoyama Venancio, e publicado no Boletim do Instituto de Saúde, de São Paulo, diz que, “em meio aos avanços tecnológicos e às descobertas da ciência, no início do século 20, o parto deixa de ser um evento privado e desloca-se para o ambiente público”. Com isso, dizem Sandra e Sonia, ocorre a transferência de responsabilidades e de poder sobre o nascimento. O homem-companheiro-pai é retirado de cena, a mulher-mãe e o bebê-filho são cercados por cuidados, e é quando entra em ação a equipe de especialistas.

Um pouco adiante, lê-se no mesmo texto: “Tendo sido o hospital eleito sede do nascimento e equipado com o crescente aparato tecnológico disponível, tivemos em curto espaço de tempo o aumento das taxas de cesariana”. Em nome de uma “ditadura da proteção”, mães e bebês eram separados logo após o nascimento “e submetidos rigorosamente às rotinas institucionais, que abrangem desde o momento do banho e o tipo de vestimenta do bebê até o horário de visitas e quem e como pode pegá-lo no colo”. As autoras fazem afirmações que causam ainda mais surpresa: “A criança é precocemente tomada pela equipe e tardia e inadequadamente entregue à sua família na hora da alta hospitalar”. O que irá diferenciar bebês saudáveis daqueles com patologia, elas afirmam, “é o tempo em que permanecerão sob a responsabilidade da instituição, logo, pertencendo à equipe”, respondem Sandra e Sonia.

A psicoterapeuta argentina Laura Gutman, no livro A Maternidade e o Encontro com a Própria Sombra, destaca que as melhores oportunidades para que cada mulher se conecte com os aspectos mais naturais, animais e selvagens de seu ser essencial são o parto e a lactância. “É claro que muito poucas o conseguem, porque homens e mulheres, aterrorizados por esses aspectos animais, fazem o possível para que eles não interfiram em sua maneira de ser. Gostaríamos de parir só com a cabeça, sem integrar nossas regiões baixas. Talvez seja por isso que todos ficam mais tranquilos com as cesarianas: o nascimento acontece em um lugar mais elevado, mais limpo e decoroso.”

O que de fato atrapalha a liberação de ocitocina e o consequente apagamento neocortical? Quais são as condições que interferem negativamente no bom andamento do trabalho de parto de uma mulher? Odent aponta a adrenalina como a inimiga do bom fluxo. Ele afirma que a presença de alguém tenso no ambiente leva logo a um “contágio” que impede a liberação de ocitocina. Além disso, alerta para a má influência da linguagem verbal, afirmando que ela deve ser reduzida ao mínimo possível, já que tem o condão de ativar o neocórtex. Luzes intensas têm a mesma propriedade e, assim, é preferível o lusco-fusco. A sensação de frio, por sua vez, desencadeia a liberação de adrenalina, sendo, portanto, necessário manter o ambiente aquecido a fim de propiciar o conforto necessário à parturiente.

E tem mais: a mulher em trabalho de parto não aprova a sensação de que está sendo observada, seja por estranhos, seja pela lente de uma câmera filmadora ou fotográfica. Na era do espetáculo, Odent é categórico ao dizer que câmeras no ambiente prejudicam o bom andamento dos trabalhos e que não deveríamos nem pensar em fotos ou vídeos nesse momento.