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Será que desta vez o mundo acaba?

por Evanildo da Silveira

Não sobrará pedra sobre pedra. A crosta da Terra se abrirá, arremessando nações inteiras aos oceanos, gigantescos vulcões adormecidos acordarão de sonos milenares, grandes terremotos sacudirão o planeta e megatsunamis varrerão do mapa cidades costeiras, como Nova York e Rio de Janeiro. E tudo isso acontecerá, precisamente, em 21 de dezembro de 2012, dia do ano dedicado a São Pedro Canísio, que, em vida, foi escritor e missionário. Uma infinidade de pessoas estão convictas do final apocalíptico do terceiro planeta do Sistema Solar, crentes numa previsão que, imaginam, teria sido traçada pelos maias, civilização que floresceu na mesoamérica entre os séculos 3 e 9, numa região hoje ocupada por Belize, El Salvador, Guatemala, Honduras e México. Muitos dão força à profecia com a citação de um fenômeno astronômico que de fato estará transcorrendo naquela época: o alinhamento da Terra e do Sol no solstício de dezembro com o equador da Via Láctea.

Porém, a despeito de tanta publicidade em torno do assunto, não há na realidade o que temer. Essa é apenas mais uma das numerosas antevisões sobre o fim dos tempos, exatamente como aconteceu com inúmeras outras datas ao longo da história e, mais recentemente, com a chegada do ano 2000. Mesmo que todas as previsões anteriores tenham falhado, novas não param de surgir, e a expectativa de que um dia tudo venha a terminar em água e fogo mantém seu fôlego porque sempre haverá alguém disposto a acreditar nela, principalmente devido a eventos catastróficos reais – como o recente terremoto no Japão –, que acabam alimentando o imaginário popular.

Zilhões de páginas e bytes estão sendo utilizados para falar do assunto. São livros, artigos, reportagens, vídeos, blogs, sites e até uma grande produção hollywoodiana: o filme catástrofe 2012, que chegou às telas em 2009. O longa-metragem foi dirigido por Roland Emmerich, especialista nesse tipo de obra, que tem em seu currículo Independence Day (1996), Godzilla (1998) e O Dia depois de Amanhã (2004). Com John Cusack, Chiwetel Ejiofor, Amanda Peet, Oliver Platt, Danny Glover, Thandie Newton e Woody Harrelson no elenco, entre outros, a película custou a bagatela de US$ 200 milhões para ser produzida.

Baseado na previsão creditada aos maias, o enredo do filme é assustador. Na trama, o núcleo da Terra é bombardeado por uma quantidade enorme de neutrinos – partículas sem massa oriundas do centro do Sol –, aquecendo-se rapidamente. Isso provoca um deslocamento da crosta terrestre, levando a um cataclismo que só a tela grande seria capaz de reproduzir. O estado americano da Califórnia, por exemplo, é jogado no oceano Pacífico, e o temível Yellowstone, supervulcão adormecido, volta à ativa depois de milhares de anos. Curiosamente, os maias não disseram nada sobre isso. Assim como não previram sua própria decadência e fim como civilização, nem anteviram a chegada dos conquistadores espanhóis liderados por Hernán Cortés, em 1519.

A história mostra que esse povo desenvolveu uma complexa civilização entre os anos 2000 a.C. e 1519 d.C. “O auge desse largo espaço de tempo, conhecido como Período Clássico, aconteceu de 292 d.C. a 900 d.C.”, explica o arqueólogo Alexandre Guida Navarro, professor de história da América na Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e responsável por várias escavações em sítios arqueológicos maias, como o de Chichén Itzá, no México. “Nessa época, eles construíram cidades, com ruas e estradas ligando os diferentes bairros e aldeias vizinhas, algumas das quais com mais de 70 mil habitantes, como Tikal, na Guatemala, e Calakmul, no México”, ele destaca.

Coisa dos ocidentais

Os maias também elaboraram um complexo sistema de escrita fonética, único no continente americano, e escreveram sua história em estelas (monumentos de pedra). Consagraram-se como belicosos guerreiros e várias cenas pintadas nos templos procuravam retratar ações militares, levadas a cabo com o objetivo de expandir seu território e suas esferas de poder. Em 800 d.C., os maias começaram a entrar em declínio, notadamente por causa da falta de terras para plantar, dos efeitos nefastos das guerras, do desmatamento e dos danos impostos ao meio ambiente.

Na história dessa gente misteriosa, enfim, não há registros de profecias sobre o fim do mundo – simplesmente porque eles não acreditavam nisso. “Não há escritos ou anotações que conduzam a esse entendimento e muito menos indicativos de que os maias nutriam alguma preocupação com o destino do planeta”, assevera Etiane Caloy, professora de história da América da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). “Eles lidavam com um tempo cíclico – ciclos que iam se encerrando para dar lugar a outros. O nosso Ano-Novo pode ser tomado como exemplo e comparação: o 31 de dezembro é o final de um ciclo, que chega para dar início a um novo ano. Somente isso”, sustenta Etiane.

A mitologia maia também ignorava o assunto. “Eles não tinham lendas nem mitos que tratassem do fim dos tempos”, informa Navarro, da UFMA. “A bem da verdade, isso diz respeito às religiões judaico-cristãs, cujos relatos retratam episódios ligados ao tema, como no livro do Apocalipse, da Bíblia. É, portanto, uma preocupação exclusivamente ocidental, um assunto que se firmou em nossa cultura por força das tradições religiosas.” O pesquisador lembra que o fato de os povos ocidentais depositarem fé em suas práticas religiosas não significa que outras culturas em outras regiões geográficas e em diferentes períodos da história tivessem as mesmas concepções de criação e de destruição do mundo.

Na verdade, as lendas e os mitos maias trafegavam na contramão dessas crendices. “Estão repletos de situações que privilegiam a criação do universo, dos seres vivos e dos deuses responsáveis por tudo isso, mas desprezam questões associadas à destruição”, explica Navarro. “Esse povo não acreditava no fim dos tempos simplesmente porque, em sua concepção, o mundo não acaba, mas está em constante transformação.”

Isso parece se confirmar na concepção de mundo das comunidades maias atuais – sim, elas ainda existem, principalmente na Guatemala. Em vários anos realizando trabalho de campo e em contato direto com o que resta desse povo, Navarro, que é pós-doutor em arqueologia histórica pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), nunca ouviu da boca daqueles descendentes referências ou histórias sobre o fim do mundo. “Nenhum maia contemporâneo fala sobre isso ou deixa entrever a existência de uma ‘memória’ sobre a destruição do planeta”, diz o arqueólogo. E completa afirmando que o distanciamento em relação ao tema demonstrado pelos maias remanescentes é uma clara evidência de que a história do aniquilamento da Terra não passa de uma criação ocidental, uma abstração que surgiu com a clara finalidade de atrair o público a temas especulativos que, infelizmente, não contribuem para o entendimento da complexidade daquela civilização. 

Entretanto, é natural que se pergunte, de onde partiu a informação de que os maias previram o fim dos tempos para 2012? É provável que do calendário deles. Ou melhor, calendários, porque tinham vários. E pelo menos um não era exclusivo daquele povo, mas comum a outros mesoamericanos. Ressalte-se que os maias tinham um sentido histórico muito apurado em relação ao dia a dia, além de uma grande preocupação com a medição da passagem do tempo. Todos os eventos políticos e religiosos importantes, como a fundação das cidades, a coroação dos reis, o surgimento de novas dinastias, as vitórias militares decisivas, por exemplo, eram registrados em detalhes.

Como em qualquer calendário, a unidade básica usada pelos maias era o dia – kin ou k’in, conforme a ortografia revisada, em 1988, pela Academia de Lenguas Mayas de Guatemala. Vinte k’ins formavam um winal; 18 winals completavam um tun (360 dias), que, multiplicado por 20, perfazia um katun ou k’atun (7,2 mil dias). Um k’atun multiplicado por 20 dava um baktun, que era integrado por 144 mil dias ou, aproximadamente, 394 anos solares. “É um sistema complexo, de memória mítica e que tem o propósito de sintetizar a contagem, por incrível que isso possa parecer”, diz Navarro. “Por exemplo, em vez de dizer que se passaram 144 mil dias de tal evento, os maias registravam simplesmente um baktun. Se fosse o dobro de dias, dois baktuns. Era assim também com os demais sistemas (winal, tun, katun). Então, em vez de dizer 360 dias, eles se referiam a um tun”, explica.

Período de transformação

O mais importante, no entanto, é que os maias tinham uma concepção circular ou cíclica do tempo e, a partir da observação dos astros, elaboraram seus calendários complexos e precisos. Um deles é solar, chamado haab, e formado por 18 meses de 20 dias cada, mais um período suplementar (wayeb) de cinco dias, totalizando assim 365 dias, como no mundo ocidental. Havia ainda um calendário religioso denominado tzolkin, ou tzolk’in, composto de 13 meses de 20 dias cada, totalizando, pois, 260 dias. Era o mais importante deles porque regia a vida do povo e as cerimônias sacras.

Segundo Navarro, os dois calendários não funcionavam separadamente, mas em conjunto, numa espécie de engrenagem em que um dependia do outro para “girar”. Assim, o primeiro dia do primeiro mês de ambos só voltava a coincidir após passados 52 anos (de 365 dias), dando origem a um terceiro calendário, a chamada roda calendárica. Nesse sentido, o fim de uma roda calendárica representava o término de um ciclo de 52 anos, mas não o dos tempos.

É no âmbito desse contexto que os maias destruíam seus templos e construíam outros sobre os escombros, ou então derrubavam apenas parte e erguiam novas estruturas sobre as já existentes. “As pirâmides maias, por exemplo, são como fatias de bolo. Exibem várias camadas internas nascidas a partir das remodelações que os edifícios sofriam quando o período do calendário correspondente a 52 anos se encerrava”, explica Navarro. Era quando os rituais e as cerimônias religiosas se intensificavam, e essas manifestações tinham um único objetivo: garantir o equilíbrio cósmico.

Por isso, quando uma roda calendárica chegava ao fim, os maias realizavam rituais associados a derramamento de sangue e sacrifícios. “Para nós, essa prática pode parecer absurda e cruel, mas para eles, não, pois fazia parte de seus sistemas religioso e cultural”, relata Navarro. “Os maias tinham ciência de que o sangue é um líquido vital e, por conta dessa descoberta, diziam que foi com ele que os deuses construíram os seres vivos e parte do universo.” Na realidade, na visão daquele povo o sangue garantia a continuidade da vida no planeta, o que explica, de certa forma, o costume dos sacrifícios humanos. Em dias de rituais, centenas de pessoas podiam ser imoladas em honra aos deuses. Sucumbiam pela decapitação e retirada do coração ainda pulsante. Os próprios reis e governantes se automartirizavam, perfurando os órgãos genitais e as orelhas com o objetivo de ofertar seu sangue às divindades.

Os maias, apesar do que possamos pensar ao tomar conhecimento desses rituais, primavam pela vida, em nome da qual justamente estes eram celebrados. Então, de onde os que propalam a chegada do apocalipse tiraram a ideia de que ele está próximo? É provável que de um outro calendário maia, chamado “contagem longa”. Nele, as datas eram registradas por meio de uma combinação de cinco números, começando pelo 0.0.0.0.0 e avançando da direita para a esquerda. Por meio desse sistema, que combina ciclos menores, de base matemática 20 e 18, chega-se, após 1.872.000 dias, ou 5.125,37 anos, a 13.0.0.0.0, quando então a marcação retorna ao zero. Esse período para os maias equivalia a um grande ciclo ou era. Não representava o fim dos tempos, mas um momento em que o mundo estaria sendo renovado pelos deuses.

Novas datas

No século 20, foi descoberta a correspondência entre esse calendário e o gregoriano, promulgado pelo papa Gregório XIII em 1582 e adotado na maior parte do mundo. Constatou-se assim que a “data zero” dos maias coincidia com o dia 11 de agosto de 3114 a.C. Ninguém sabe informar por que essa data marca o início do calendário de contagem longa, acreditando-se que se relacione a algum evento mítico. De qualquer forma, o ciclo se encerrará justamente no dia 21 de dezembro de 2012.

Nem todos, porém, pensam da mesma forma. Na visão de alguns estudiosos, o 21 de dezembro próximo (k’atun 4 ahau, no calendário maia) marcaria apenas o fim do 13º baktun, em 13.0.0.0.0. Segundo dizem, há inscrições em sítios arqueológicos deixados por esse povo que apontam ou implicam contagens de tempo maiores, até pelo menos 20 baktuns, que totalizariam 7.890 anos solares. Por essa contagem e para a tranquilidade dos crédulos, a humanidade tem ainda uma sobrevida, cujo derradeiro dia pode estar no longínquo ano de 4776.

Mesmo que levemos em consideração o que aconteceu no fim dos três baktuns anteriores, 10.0.0.0.0, 11.0.0.0.0 e 12.0.0.0.0, também não há razão para temores. Eles corresponderam, respectivamente, a 13 de março de 830, 15 de junho de 1224 e 18 de setembro de 1618 do nosso calendário. Nada de extraordinário aconteceu naqueles dias, e o planeta continuou seu curso como faz até hoje. “O medo do fim do mundo tem a ver com a finitude humana ou, em outras palavras, com a morte, uma coisa que assombra”, diz o professor Jelson Oliveira, coordenador do curso de filosofia da PUCPR e autor do livro Ética de Gaia: Ensaios de Ética Socioambiental (Editora Paulus, 2008). “E é engraçado que em tempos como os atuais, em que as religiões e os mitos andam em descrédito por conta, principalmente, do avanço e das descobertas da ciência, as previsões que apontam para o fim do mundo continuem mexendo com o imaginário popular.”

Algumas pessoas, todavia, se apoiam justamente na ciência para justificar a crença de que a grande catástrofe está próxima. Dizem que a “antevisão” dos maias está relacionada com o alinhamento astronômico da Terra e do Sol, no solstício de dezembro, com o equador da Via Láctea, fenômeno que, ensina o astrônomo Ronaldo Rogério de Freitas Mourão, se repete a cada 25.800 anos. “Esse ciclo resulta da precessão dos equinócios”, explica. A precessão é uma lenta mudança que ocorre no eixo de rotação da Terra, devido à qual a posição dos equinócios e a dos solstícios se desloca um grau a cada 71,5 anos. “Já o equador galáctico é uma linha virtual que separa o hemisfério norte do sul da Via Láctea”, esclarece Mourão.

Como o centro galáctico e o Sol são imensos e os movimentos são vagarosos, esse tipo de alinhamento entre eles e a Terra se estende por 36 anos. No caso atual, ele começou em 1980 e se alongará até 2016. “Se o significado de 2012 liga-se à interseção precisa do equador galáctico, o alinhamento já aconteceu”, diz o astrônomo Mourão. De acordo com ele, há quem aceite a ideia de que os antigos maias teriam adotado 2012 para o fim do seu calendário de contagem longa por causa desse fenômeno. “Sinceramente, não creio que eles tivessem conhecimento sobre isso”, observa. E completa afirmando que, “seja como for, esse fato de interesse científico não trará nenhuma consequência para a Terra e muito menos para o universo. Não há nenhum risco de o mundo acabar por causa dele”.

Aqueles que continuam acreditando na destruição do planeta em 2012 podem estar sendo vítimas de uma peça pregada pelo avanço das pesquisas sobre a civilização maia. No entanto, já há estudiosos que contestam o cálculo da correspondência entre a contagem longa (a dos baktuns) e o calendário gregoriano. Num artigo publicado no livro Calendars and Years II: Astronomy and Time in the Ancient and Medieval World, o professor da Universidade da Califórnia Gerardo Aldana coloca em xeque as conversões atualmente aceitas do calendário maia para o gregoriano.

Segundo Aldana, é possível que haja uma discordância entre os dois calendários da ordem de cinco a dez anos. Não parece muito, mas é suficiente para jogar por terra a exatidão da previsão da catástrofe para o dia 21 de dezembro. Em outras palavras, ainda não será desta vez que tudo irá pelos ares. O que não terá fim, com certeza, é a busca incansável por novas datas.