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É mineiro, uai!

por Francisco Luiz Noel

Uma instrução normativa baixada pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) no fim de 2011 teve efeito de carta de alforria para o mais famoso queijo artesanal do Brasil. Confinado territorialmente a seu estado por usar leite cru, enquanto os laticínios industriais empregam o pasteurizado, o artesanato do queijo minas começa a romper grilhões da legislação sanitária e a se preparar para conquistar mercado país afora. Quebrada a barreira que obrigava os queijeiros a maturar o produto por 60 dias antes da venda a outras partes do país, a plena liberdade de comércio do queijo tradicional dos mineiros depende apenas de decisão ministerial que fixe prazo de maturação menor sem prejuízo à salubridade do produto.

Com a instrução normativa 57, assinada pelo ministro Jorge Mendes Ribeiro Filho em 15 de dezembro passado, dois meses após receber em Brasília um grupo de artesãos do minas, o produto começa a emergir de um longo período de marginalização legal. Remonta a março de 1952 o decreto 30.691, do presidente Getúlio Vargas, que criou o Regulamento de Inspeção Industrial e Sanitária de Produtos de Origem Animal e tratou o autêntico queijo dos mineiros como espécie em extinção, remanescente do atraso pré-industrial. Em 1996, a portaria 146 do Ministério da Agricultura impôs ao queijo artesanal o descanso mínimo de dois meses, para a eliminação de bactérias das zoonoses, doenças animais transmissíveis ao homem. Engordada por outras leis e resoluções, a legislação nunca havia dispensado ao minas tratamento à altura de sua condição de produto artesanal.

A decisão recente do Mapa abre um novo horizonte ao queijo que enche de orgulho os mineiros. “Havia uma indefinição, que não permitia a maturação por menos de 60 dias. Agora, existe posição favorável, desde que sejam apresentados estudos que comprovem a inocuidade e a preservação da qualidade do produto”, explica o chefe do Serviço de Inspeção de Produtos de Origem Animal, Clério Alves da Silva, da superintendência do ministério em Minas Gerais. O Mapa vai fixar período mais curto de maturação e, cumpridas as exigências sanitárias, os produtores poderão ter sua situação regularizada no Sistema de Inspeção Federal (SIF), requisito para a comercialização do queijo minas artesanal em outros estados.

A valorização de queijos de leite cru, como o mineiro artesanal, e de seu modo tradicional de produção segue tendência em voga na Europa e na América do Norte, materializada no movimento Slow Food. Em oposição às refeições ligeiras e padronizadas das lanchonetes (fast food), os adeptos do Slow Food cultivam a degustação de alimentos artesanais de qualidade, fornecidos na ponta de uma cadeia produtiva que respeita os fabricantes e o meio ambiente. A filosofia Slow, seguida por vários núcleos no Brasil, é obra do italiano Carlo Petrini, da cidade de Bra, na região do Piemonte, afamada pela tradição de seus vinhos, trufas e queijos artesanais à base de leite cru, como o afamado gorgonzola.

Rompendo fronteiras

O percurso rumo à regularização federal do artesanato do queijo minas passa pelas regras do decreto 5.741, de março de 2006, que organizou o Sistema Unificado de Atenção à Sanidade Agropecuária. De acordo com a legislação, a fiscalização higiênico-sanitária e tecnológica exercida pelos serviços estaduais de inspeção pode ser reconhecida pelo Mapa como equivalente ao controle do SIF, desde que tenha os mesmos objetivos de inocuidade e qualidade. Na prática, caberá ao Serviço de Inspeção Estadual (SIE) de Minas Gerais responder pelo controle da salubridade e qualidade do queijo artesanal dos produtores legalizados, avalizando sua oferta fora das terras mineiras.

Hoje, embora o queijo saia de Minas por diversas rotas em direção aos estados vizinhos, apenas sete entrepostos mineiros estão registrados no SIF, submetidos ao prazo antigo estabelecido pela legislação. Obrigados a maturar o queijo por dois meses em temperatura ambiente e câmara fria, enquanto não for estipulado um período menor, esses estabelecimentos endereçam quase toda a oferta do produto ao mercado paulista. Fora desse circuito legal, o queijo artesanal cruza a divisa mineira na clandestinidade, muitas vezes sem garantias de sanidade do rebanho, das boas condições de ordenha e processamento e do cumprimento do prazo legal de cura.

Os entrepostos regularizados estão na região do Alto Paranaíba e no Triângulo Mineiro, onde a tradição dá fama ao minas artesanal. “Queijo aqui é como leite: tem para todo lado. Compra quem tem entreposto e também quem não tem”, diz o comerciante Jesus Rodrigues Cortes, há 45 anos no ramo. Em seu depósito, registrado desde 1999, Jesus coleta queijos de diversos produtores e embala o produto com sua marca, assegurando zelar pelo tempo de cura, imposto pela portaria de 1996. Ele garante que está atento às mudanças na regulamentação e pronto a adaptar instalações e processos para atender às novas normas do Mapa.

O volume da produção de queijo minas artesanal, espalhada por propriedades rurais de todo o estado, é uma incógnita. Numa projeção modesta, o presidente da Associação dos Produtores Artesanais do Queijo Serro (Apaqs), Jorge Brandão Simões, estima em 1,5 mil toneladas a fabricação mensal em seu estado. O número equivale a quase 2 milhões de queijos, que, em valores de mercado, correspondem a cerca de R$ 30 milhões mensais. Do total, 1,2 mil toneladas saem das queijarias do Serro e de outras quatro regiões que se vangloriam de produzir o autêntico minas.

A descoberta do minas

Na terra do pão de queijo, que tem o minas como matéria-prima, o governo despertou para a importância cultural e econômica da tradição queijeira em 2002. O modo de fazer o queijo artesanal foi alçado a patrimônio imaterial do estado em agosto daquele ano, inscrito pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (Iepha) em seu Livro dos Saberes, a pedido da associação dos produtores do Serro. Partiu do Iepha a solicitação que, seis anos depois, renderia ao artesanato do minas o título de patrimônio imaterial do Brasil, concedido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) com base em dossiê do historiador José Newton Coelho Meneses, da Escola de Veterinária da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Em 2002, quando o estado era governado pelo ex-presidente Itamar Franco, o artesanato do minas também ganhou sua primeira lei estadual, a 14.185. Além de fixar a identidade da iguaria, a lei estabeleceu normas sanitárias para sua fabricação nas áreas com tradição queijeira. A exemplo do Serro, foram reconhecidas como tal, pela Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Minas Gerais (Emater-MG), as regiões da Serra da Canastra, Alto Paranaíba, Cerrado e Campo das Vertentes. Antes, somente se privilegiavam da venda legalizada os queijos de leite pasteurizado, como o minas padrão e o frescal. Desde que tenham registro no SIF ou nos sistemas de inspeção estaduais (SIEs) e municipais (SIMs), esses dois tipos podem ser vendidos em todo o país.

As diferenças entre o minas artesanal e o minas convencional começam logo após a ordenha, com a dispensa da pasteurização – processo de aquecimento que elimina bactérias do leite e prolonga sua vida útil –, no caso do primeiro. O minas tradicional é feito com leite integral de vaca fresco e cru, retirado e beneficiado na propriedade, explica Ana Cristina Bahia Paiva, coordenadora do Programa Queijo Minas Artesanal, do Instituto Mineiro de Agropecuária (IMA). Ela diz que o típico queijo tem “consistência firme, cor e sabor próprios, massa uniforme, isenta de corantes e conservantes, com ou sem olhaduras mecânicas”.

Outro ponto de honra para o minas artesanal, assinala Ana Cristina, é a fermentação do leite com o pingo, soro drenado do queijo da véspera e composto pelo acervo de bactérias lácticas de cada produtor. O paladar distintivo de cada região deriva da ação exercida por essa cultura de microrganismos, influenciada por fatores ambientais como altitude, relevo, umidade e temperatura. Mais: o produtor deve começar a fazer o queijo em até 90 minutos após a ordenha, dando partida a um processo que inclui coagulação, corte da coalhada, mexedura, dessoragem, enformagem, prensagem manual, salga seca e, finalmente, maturação.

A criação do Programa Queijo Minas Artesanal deu tradução prática à lei estadual de 2002. O programa, nascido na Emater-MG, difundiu padrões sanitários para as queijarias e o produto final, criou o cadastro de fabricantes e incentivou sua organização. Um dos objetivos da mobilização era a conquista, no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi), da certificação de procedência do minas artesanal para cada uma das cinco regiões já caracterizadas como produtoras tradicionais, as quais reúnem 10 mil fabricantes, correspondentes a um terço do total do estado. As primeiras indicações geográficas do minas, fundamentadas em estudos agrogeológicos e climáticos, foram obtidas para as regiões do Serro e da Serra da Canastra no fim de 2011.

O registro de indicação geográfica, que distingue nichos como a produção de vinho no Vale dos Vinhedos, no Rio Grande do Sul, e a cafeicultura no Cerrado Mineiro, atesta que um produto é típico de seu lugar de origem e se diferencia por ter qualidades exclusivas. As certificações dos queijos do Serro e da Serra da Canastra foram concedidas por indicação de procedência, tendo como detentoras as associações dos produtores. Na Apaqs, o empresário Simões festeja: “Precisávamos de um instrumento de proteção contra a pirataria, pois produzem queijo em outros lugares e dizem que é do Serro”.

Origem portuguesa

O queijo minas artesanal, ensina o historiador Coelho Meneses no dossiê apresentado ao Iphan, descende de uma tradição trazida da fria Serra da Estrela, região central de Portugal, pelos colonizadores lusitanos. O “serra”, como o produto da Estrela ficaria famoso, continua sendo produzido de forma artesanal com leite cru de ovelha, mão de obra feminina e coagulador feito com essência do espinhento cardo, típico das montanhas locais. Desembarcado no Brasil, o modo serrano de fazer queijo seguiu continente adentro com os imigrantes lusitanos e se aclimatou em Minas, reforçando a dieta alimentar nas fazendas e na mineração. Nos tempos da Colônia, o leite de vaca era coagulado em pedaços do estômago de bezerros ou de cabritos.

Os mais antigos registros sobre o queijo em Minas Gerais dão conta de que ele era saboreado na região no fim dos anos 1600. No século seguinte, na época áurea da mineração, o minas já era fabricado e vendido em escala digna de nota. A progressiva incorporação do produto à vida da população é atestada em relatos de vários estrangeiros que perambularam pelo Brasil no século 19. Embora não tenha retratado vendedores de queijo artesanal, o pintor francês Jean-Baptiste Debret, que viveu no país entre 1816 e 1831, escreveu sobre a presença marcante do produto nas mesas mineiras. No livro Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, Debret observou que Minas Gerais é “mais feliz” que Goiás e Mato Grosso porque, sabendo melhor operar a natureza, “dedica-se à criação de aves e animais, abastece de queijo o Rio de Janeiro e possui fábricas de tecidos, chapéus e roupas-brancas”.

Se por um lado o modo tradicional de fazer o queijo minas resistiu às inovações do século 20, por outro se expandiu graças às conquistas da modernidade, que incluíram o advento de novos materiais, o incremento do transporte e a difusão de métodos sanitários no manejo do gado e na produção de alimentos. Grande parte dos proprietários rurais vem melhorando a higiene dos estábulos (locais de ordenha), instalações e apetrechos da chamada fatura do queijo. Nas queijarias das fazendas, a madeira das bancadas e fôrmas cede lugar à ardósia e ao plástico, de fácil limpeza. E os quartos de queijo, onde o produto é maturado, passaram a receber cuidados de manutenção e higienização.

“A presença do queijo em Minas Gerais é fator agregador e gerador de identificação dentro do estado e no plano nacional”, observa a cientista social Corina Moreira, da superintendência estadual do Iphan. “O produto é reconhecido em todo o país, e o mineiro é visto como aquele que o coloca em tudo o que come. O modo de fazer queijo em Minas sintetiza o conjunto de experiências, símbolos e significados que definem a identidade do mineiro reconhecida por todos os brasileiros.” Ela diz que o queijo é um desses produtos do saber-fazer que une gerações e identifica a população de um território, imprimindo-lhe uma diferença diante dos habitantes de outros locais do país.

Como predicado da mineiridade, o minas artesanal virou até protagonista de filme em 2011. No documentário O Mineiro e o Queijo, com trilha sonora de Tavinho Moura, o cineasta Helvécio Ratton percorreu as regiões do Serro, Serra da Canastra e Alto Paranaíba e deu voz a produtores, comerciantes, pesquisadores e atravessadores. Ratton mostra no filme, de 72 minutos, que o minas típico vive um paradoxo: é tradicionalíssimo e, no entanto, proibido fora das fronteiras mineiras.

Desafios da legalização

Quase uma década depois do despertar para o minas, uma nova lei estadual, a 19.492, de janeiro de 2011, estendeu a agricultores de todo o estado a legitimidade para fabricar o queijo artesanal. O produto deixou de ser exclusividade das cinco regiões tradicionais listadas a partir de 2002 e passou a ter seu reconhecimento condicionado somente à origem, devendo ser confeccionado em propriedade rural onde também é produzido e retirado o leite cru. A possibilidade de obter o status legal de produtor do minas artesanal passou, assim, a estar disponível aos 30 mil agricultores familiares que fabricam o produto, em vez de ficar limitada aos queijeiros dos pouco mais de 60 municípios das regiões tradicionais.

A abrangência da legislação não teve correspondência, porém, na adesão dos produtores ao Programa Queijo Minas Artesanal, como forma de regularizar no IMA sua atuação como fabricantes. As atribuições do instituto em relação aos registrados incluem vistorias às queijarias, fiscalização do fabrico e realização de análises físico-químicas e microbiológicas ligadas ao processamento do produto, além de monitoramento da sanidade dos rebanhos. O gado deve ser vacinado contra febre aftosa e brucelose e submetido a exames anuais para detectar zoonoses como a tuberculose. Não chega a 200, contudo, o número de produtores inscritos no programa.

A grande dificuldade dos queijeiros para ir do mercado informal ao legal é de ordem financeira. “As exigências não custam barato e 80% dos produtores são familiares. Se tiram para investir em instalações, falta depois para o sustento de sua casa. No caso do gado, o atestado relativo a brucelose e tuberculose sai por R$ 15 a R$ 20 por cabeça. E se aparece um animal com uma dessas doenças, é preciso examinar todos de novo”, diz Simões, da Apaqs. Nos 11 municípios da região do Serro, apenas 95 dos 1,1 mil fabricantes estão filiados à associação. “Infelizmente, muitos produtores encontram dificuldades para obter a aprovação do IMA”, lastima.

Para conseguir a regularização estadual, que requer adaptação de instalações, exames no rebanho e análises do produto, os gastos de um queijeiro podem chegar a R$ 25 mil, segundo estimativa de Albany Arcega, coordenador técnico de pecuária da regional mineira da Emater, em Belo Horizonte. “O problema do queijo minas artesanal é complexo: apesar das paixões da tradição, há uma questão de saúde pública. Mas o custo alto não atesta nada se o produtor não tiver consciência”, diz, esclarecendo que a maioria dos fabricantes não tem como arcar com a despesa. “O produtor é marginalizado, tem fabricação pequena, está longe do mercado. E, às vezes, é obrigado a fazer queijo porque ninguém quer comprar o leite”, explica Arcega, que também já dirigiu o Programa Queijo Minas Artesanal.

Como as exigências da instrução normativa 57 são semelhantes às da legislação mineira, as dificuldades pecuniárias dos produtores levam à crença de que ainda haverá muita estrada pela frente quando o Mapa, finalmente, reduzir o tempo de maturação. O novo prazo, que não deverá ultrapassar 21 dias, valerá somente nas regiões tradicionais, e assim mesmo para fazendas livres de brucelose e tuberculose bovina. Mas não é apenas isso: para ganhar o Brasil, os produtores do minas artesanal precisam superar um velho adversário arraigado na vida rural: a desunião. “A grande dificuldade, mesmo, é juntar essas pessoas a fim de que obtenham volume, solucionem problemas comuns e ganhem poder de barganha frente às redes de supermercados”, afirma Arcega, com a vivência de quem conhece de perto os obstáculos socioculturais inerentes ao associativismo.