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Gilberto Freyre
O Brasil sob outro olhar

No ano em que se comemora o centenário de nascimento de Gilberto Freyre, nascido em 15 de março, os intérpretes de sua obra e biografia padecem para apresentá-las a contento ao público. Tal sofrimento deve-se a um motivo simples: tanto seu legado intelectual quanto sua vida pessoal são objetos de intensa polêmica e controvérsias. Não há nenhum lance da vastíssima produção do mestre pernambucano que não receba comentários discrepantes. Por quê? Comecemos do princípio.
Nascido no Recife, Gilberto de Mello Freyre era descendente legítimo da aristocracia rural em seus últimos suspiros. Então menino, no início do século 20, brincava com os descendentes dos escravos recém-alforriados. Assumia involuntariamente, nesse período, a condição de meninote de engenho, de brancura tradicional.
Avançando a idade, recebeu educação formal no Collegio Americano Baptista de Recife, onde aprendeu sob os auspícios do protestantismo que orientava a pedagogia do liceu. Foi na idade escolar que o jovem Gilberto, então com 17 anos, enredou sua vocação para a análise sócio-antropológica de um país em transição. Já aos 22, defendeu a tese "A Vida Social no Brasil em Meados do Século 19" e recebeu título de mestre em ciências jurídicas, políticas e sociais pela Universidade de Columbia (EUA).
Nos cinco anos despendidos em solo americano, Gilberto Freyre recebeu influências de diversos mestres da sociologia americana. Por meio dos contatos freqüentes com Franz Boas e Oliveira Lima, sociólogo brasileiro, Freyre pôde erigir a base do raciocínio que empregaria doravante em sua análise da realidade brasileira. E ele trabalhou com uma voracidade rara. O resultado de sua bibliografia de mais de 60 livros e centenas de artigos reverbera múltiplos significados.
Entre os poucos consensos na análise da obra de Gilberto Freyre está a sua intenção original de escrever a espinha dorsal da história da sociedade patriarcal no Brasil. Casa Grande & Senzala (1933), Sobrados e Mucambos (1936) e Ordem e Progresso (1956) ficaram órfãos de Jazigos e Covas Rasas, interrompido com a morte do autor.
Desde o primeiro momento, a discórdia se instaurou e a interpretação da obra de Freyre assumiu contornos pontuais e ideológicos. Casa Grande & Senzala, quando lançado, despertou reações antagônicas. O núcleo do livro estava na discussão do papel desempenhado pelos negros e índios no processo de formação de uma suposta identidade brasileira. Instalou-se renhido debate sobre o benefício ou prejuízo da miscigenação na constituição do país. As teses prevalentes até então, a maioria elaborada no século anterior, davam conta que a mistura era um elemento prejudicial, pois maculava a força européia. Teorizava-se que o negro e o índio - por sua condição étnica - formavam uma raça inferior. Em Casa Grande & Senzala, o escritor subverte o ideário corrente. A partir de idéias assimiladas nos trabalhos já em andamento nos Estados Unidos nas primeiras décadas do século 20, principalmente escudando-se no artigo Transacional America, cujo autor, Randolph Bourne, afirma pela primeira vez que a superioridade americana sobre a Europa estava calcada no encontro racial, Gilberto Freyre inverte as rédeas do discurso racial. Afastando os ideais deterministas, que atestavam a supremacia do branco, ele introduz o conceito de cultura (e não de raça) como fator determinante na formação do Brasil.
E, para alcançar seu objetivo, Freyre inovou a linguagem histórico-analítica. Desce do pedestal e escreve Casa Grande como se redigisse um romance. Espolia as fontes usuais para buscar informações na intimidade dos objetos de sua pesquisa. Vai xeretar os hábitos alimentares, remexer as relações familiares, reavivar o cotidiano dos escravos e, pasmava-se, tornar pública a vida sexual de brancos e negros, inclusive revelando segredos acobertados pela moral e pelos bons costumes e, até então, conjurados da biografia das famílias de bem.
Nobre mestiçagem
Casa Grande & Senzala foi um marco na ciência social brasileira. À época do seu lançamento causou estardalhaço. Se Guimarães Rosa e João Cabral de Mello Neto o receberam com loas, o autor foi tachado por parte da crítica e da elite de comunista, subversivo e até pornográfico. A Comunidade Mariana de Pernambuco exortou o povo a queimar o livro em praça pública.
Muito dessa polêmica vem do fato de a obra incluir entre os protagonistas da cultura nacional negros, mulheres e crianças rivalizando com a figura chave do patriarca autoritário.
Atualmente, as releituras de Casa Grande alimentam outras controvérsias quanto à extensão da influência de mulheres, crianças e principalmente negros na formação da identidade brasileira. Alguns intérpretes sustentam que Freyre enxerga nos africanos o elemento preponderante. A partir da intromissão dos hábitos e costumes dos negros, os portugueses amansaram o continente inóspito e lograram adaptar-se à terra estranha.
Ademais, influíram na higiene, na alimentação, na saúde e na maneira de falar. A evolução dessa análise culminou no surgimento do conceito de "democracia racial". Apesar de não empregar o termo em nenhum momento deste ou de livros posteriores, alguns estudiosos sugeriram que o autor disseminava a tese de que a relação entre o senhor e o escravo teria sido idílica e harmônica, reduzindo os conflitos e admitindo a índole benevolente dos patriarcas. O hibridismo cultural, afirmam, responderia pela propensão conciliatória do brasileiro ou, em outras palavras, fomentaria o "equilíbrio de antagonismos", imprescindível para a paz social.
Outra parcela da crítica identifica na obra passagens que intrinsecamente derrubariam tal afirmação. Para Freyre, em certos momentos, o português seria desastrado e brutal, estúpido e melancólico. Porém, o apanágio revolucionário de Casa Grande & Senzala alimentaria o fogo da próxima cizânia entre seus intérpretes. Mesmo embrenhando-se em metodologias inovadoras e guinando a visão corrente sobre o papel do patriarca e da mestiçagem, durante anos a obra de Freyre, principalmente Casa Grande & Senzala, foi proscrita do círculo universitário sulista. Notadamente a USP virou-lhe o nariz. Afirmava-se que o mestre de Apipucos exacerbou na candura com que descreveu as relações senhor-escravo. Tido como comunista e subversivo nos anos de 1930 e 1940, as esquerdas das décadas seguintes vestiram-lhe roupagem conservadora. Foi considerado aristocrata e reacionário.
Releitura do Brasil
É sinuosa sua biografia como é labiríntica sua produção. Nos livros seguintes à Casa Grande & Senzala, o sociólogo-antropólogo, como o próprio autor se assumia, deu continuidade à saga do patriarcado no Brasil. Em Sobrados e Mucambos descreveu a decadência do sistema patriarcal e sua adaptação à vida urbana. Mostrou como dentro da família tradicional, unidade básica da sociedade em Freyre, havia contradições: mulheres fortes que assumiam a direção econômica e política com vigor; a descendência dos senhores de engenho e chefes de sobrados que assumiu posições adversas às dos seus ancestrais, emolindo, anos depois, o pendor revolucionário contra a estrutura da qual eram egressos.
De livro em livro, o escritor se envolveu em polêmicas e aventou teorias. Foi um opositor ferrenho do Modernismo de 22. Acreditava-o raso e europeizante, destituído de traços genuinamente nacionais. Em contraposição, criou um movimento regionalista que concatenou escritores e intelectuais nordestinos. A partir do Manifesto Regionalista, valorizou a participação do negro e do indígena na formação brasileira. Da mesma época é o Congresso Regionalista, quando Freyre caracterizou a existência de uma região nordestina, distinta da do Norte. Como deputado federal pela UDN, criou o Instituto Joaquim Nabuco e dirigiu a Coleção de Documentos Brasileiros.
A evolução do pensamento do escritor levou-o a formular o conceito da cultura luso-brasileira, relevando para isso a questão da identidade nacional. Para Freyre haveria uma unidade cultural que unia Brasil, Portugal e as outras colônias africanas, bem como os enclaves de Gôa, Macau e Timor. A teoria luso-tropicalista informava que os portugueses, por viverem em um país de clima tropical, serem ligados à África e influenciados pelos mouros, teriam mais facilidade de adaptação nos rincões tropicais. Em um primeiro momento, a análise não foi bem aceita pelo governo português que passava por apuros para manter o controle sobre suas colônias africanas e o rompimento dos laços distintivos poderia ser prejudicial. Depois, após a independência, a unidade luso-tropical foi apropriada pelo discurso oficial português como medida para manter cativos os países recém-libertos.
Desse exemplo, filtra-se a maleabilidade que assume a obra de Gilberto Freyre. Seus preceitos foram usurpados por várias doutrinas, de acordo com os interesses de plantão. Por isso, a exemplo da sociologia alemã, o mestre de Apipucos tentou lançar mão de teorias isentas de tinturas ideológicas na composição de sua obra. Afinal, passou de comunista a reacionário em duas décadas (o próprio considerava-se um "anarquista construtivo").
Acima de tudo, era um escritor de mão cheia, senhor do ofício. Depois de cem anos, é preciso debruçar-se sobre sua obra com o espírito descarregado, sem preguiça e segundas intenções. Nesse momento de efemérides, em que se rediscute nosso país, a leitura de Freyre é ponto de honra. Pois, mesmo entre tanta controvérsia, é unanimidade, até no meio dos detratores, que Gilberto Freyre inaugurou um estilo próprio, levantou teses candentes, introduziu temas novos (por exemplo, foi o primeiro a abordar a questão ecológica), desbaratou tabus, enfim, trouxe as ciências humanas para perto da gente comum.
A metrópole que imita Freyre
O Sesc Interlagos realiza até 30 de abril o evento Casa Grande & Senzala, Um Olhar Sobre a Metrópole, cujo objetivo é levar ao público os elementos presentes na principal obra de Gilberto Freyre. Por meio de uma grande exposição fotográfica, que traz 60 imagens de São Paulo, a mostra apresenta os diversos universos que convivem num grande centro urbano. A maioria das fotos foi realizada na zona sul da cidade por Eron Silva e retrata a vida cotidiana da capital, bem como seu perfil arquitetônico. O fotógrafo buscou nos contrastes entre riqueza e pobreza o gancho para revelar o conflito que faz de São Paulo um espelho da obra de Gilberto Freyre. Em Casa Grande & Senzala, o mestre de Apipucos é pioneiro no Brasil ao trazer à tona o cotidiano íntimo da convivência entre escravos e senhores de engenho. Transposto para a metrópole, o contato entre os extremos produz uma miscelânea de hábitos, costumes e valores.
Além da exposição, o evento promove atividades para crianças que vivem nas regiões menos favorecidas de São Paulo, como a construção de maquetes a partir da sucata, oficinas de fotografia e a apresentação do vídeo Leituras do Brasil: Casa Grande & Senzala.
Já o seminário Casa Grande & Senzala, o Mundo Mix da Metrópole pretende mostrar a troca de influências que acontece no dia-a-dia paulistano: a ascensão da música negra (o rap) entre classes sociais mais altas e o uso de roupas de grife entre jovens mais pobres, por exemplo.