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Entrevista
Dietmar Kamper e Hans Ulrich Reck

A matéria principal da Revista E de março trouxe à tona o tema da violência. Reuniu estatísticas, dados e opiniões de vários especialistas na tentativa de esclarecer alguns pontos controversos. Uma das questões que desafiam as teorias está vinculada às causas desse fenômeno. Eventos de natureza socioeconômica lideram a lista dos culpados.
Porém, essa discussão é muito mais ampla, como provaram os debates travados por ocasião do seminário Imagem e Violência, realizado no Sesc Vila Mariana. As teses foram as mais variadas. Nesta entrevista exclusiva, o sociólogo alemão Dietmar Kamper, professor da Universidade Livre de Berlim, e o filósofo suíço Hans Ulrich Reck, professor da Universidade de Colônia, expõem seus pontos de vista sobre a origem da violência e seus efeitos sobre a sociedade. Eles defendem a idéia de que a violência é um fenômeno social que está vinculado à preponderância da visibilidade. Em última análise, Kamper e Reck, identificam que a essência do homem está desgastada, na medida em que a aparência vazia é privilegiada.
A violência é um fenômeno universal ou existem elementos locais que interferem no processo?
Kamper - Temos de mudar a nossa maneira de pensar. Durante muito tempo, pensamos que a violência fosse um fenômeno local, talvez da própria natureza humana. Acreditava-se, inclusive, que fosse possível eliminar aos poucos a violência por meio da civilização e do avanço da cultura. E para os teóricos da civilização é uma certa surpresa constatar que a violência não diminuiu, mas, ao contrário, tomou novas formas e se adaptou à nova situação. Então, partimos da hipótese de que o processo civilizatório criou uma outra forma de violência quase congênita. A evolução dessa nova forma de violência está ligada à visualização desse processo.
Reck - A nova pergunta é: por que constatamos que o processo civilizatório criou um produto que não estava inicialmente planejado? O processo civilizatório em si teria como objetivo eliminar a colocação de atos definitivos, que podem ser representados pela conquista ou pela guerra, por exemplo. Portanto, todo o processo civilizatório moderno, com sua razão prática, teria como finalidade evitar o ato definitivo. Essa seria a razão de ser da civilização moderna. No momento histórico atual, no qual abordamos essa temática sob um ponto de vista científico, procuramos analisar, e isso significa visualizar, os fatos e os acontecimentos. Não percebemos inicialmente que no olhar já se produz um novo ato de violência. Suponho que na análise científica do problema da violência já esteja embutida uma visão violenta da realidade. E atualmente estamos percebendo isso.
Se a idéia da civilização humana é acabar com os conflitos, em que momento aconteceu o equívoco?
Reck - Eu vejo que a violência mais profunda não é aquilo que normalmente entendemos como violência, como o imperialismo ou as demais intervenções políticas. Se bem que tudo isso existe. Parece-me que a violência está mais estruturalmente radicada dentro da visão que analisa a realidade, sobretudo a sua visão científica. A própria linguagem militar e política é utilizada, em certa medida, como uma maneira de descartar, de esconder a verdadeira violência: uma espécie de higienização. A origem disso tudo talvez esteja no século 14, com Francis Bacon, quando a Ciência aflora e tem-se a convicção de que essa visão científica é a verdadeira visão da realidade. Uma imagem um tanto ingênua e inocente de que o olhar é capaz de abranger a realidade como ela é. No fundo, existe o grande erro de se pensar que é possível abstrair a violência. De fato, acreditava-se que era possível entrar numa espécie de limbo através da Ciência e com isso abstrair a realidade. A razão pela qual não foi possível dar conta da violência está numa visão antropológica equivocada.
Kamper - A visão do filósofo, sobretudo Immanuel Kant, era uma das maiores expressões disso. Ele dizia que a paz seria trazida para dentro do mundo através de uma contínua civilização do ser humano, que perderia gradualmente sua parcela animalesca. À medida que desaparecesse sua faceta animal, seriam criadas as condições necessárias à paz universal. Segundo Kant, todas as crianças nascem como selvagens e precisam ser civilizadas aos poucos, tornadas homens. Como hoje todos esses pensadores já morreram e não viram no que deu a teoria deles, eu fico curioso em relação ao que eles diriam se vissem o resultado de seus pensamentos. O grande espanto deles provavelmente seria de que a natureza não consegue se livrar de si mesma e entra em guerra com o artefato, com a criação da civilização. As criações do espírito humano e da civilização entram em guerra com a natureza original. O filósofo francês Edgar Morin, há algum tempo, percebeu a incongruência entre aquilo que se esperava do processo de civilização e o resultado dele. Assim, ele procurou teorizar essa percepção. Para ele, o homem nunca foi um animal, mas estava dividido em Homo sapiens e Homo demens. O rosto humano nunca foi um rosto unívoco, sempre apresentou uma deformação. A problemática que se apresenta hoje em dia é nova: trata-se de perceber como esses dois lados do ser humano se unem dentro do mesmo ser. Em sua teoria, Morin tenta dar conta desses dois lados, aparentemente opostos, segundo a unidualidade da natureza humana. À medida que o homem age como teórico, ele também violenta sua natureza. É preciso ver as duas facetas: o homem e a teoria do homem.
O que me parece é que o cientificismo e a filosofia teriam destinado, no processo civilizatório, uma missão para o homem e ele falhou. Assim sendo, a violência seria indissociável da natureza humana? Ou melhor, podemos empenhar esperança no homem?
Reck - O objetivo previsto pelos teóricos não foi alcançado. Mas não se percebeu que no próprio objetivo já havia um "quê" de violência. Com a teoria de Morin, das duas faces no mesmo ser humano, chega-se à conclusão de que não existe alguma coisa fora do ser humano. Tudo está dentro dele, inclusive o seu aspecto demente. Eu, pessoalmente, não luto contra o processo civilizatório, pois essa atitude seria um paradoxo pouco interessante. É preciso lidar com a violência que está dentro da civilização. Para poder lidar com a realidade da violência não vejo necessidade de ligá-la ao ser humano, à essência do homem. Enxergo a violência mais como um fato que acompanha o processo da civilização. Não é uma questão de consciência, uma questão de moral individual ou uma confissão a favor da antropologia. O combate à violência passa pelo cuidado com as imagens, com a visibilidade. Como? Esse é um projeto a ser desenvolvido. É essa a questão que estamos levantando hoje. Nós não estamos aqui para apresentar uma teoria. Queremos elaborar uma nova maneira de abordar a questão toda. Não voltada para egoísmos e convicções e idéias individuais preconcebidas, mas, sim, nos afastar um pouco da própria visão das coisas e, juntamente com os outros, vislumbrarmos a realidade de uma outra maneira. Infelizmente, não existe uma receita pronta que possamos apresentar. É preciso sentarmos juntos e olharmos a possibilidade de sair do egocentrismo, da visão individualista das coisas e vermos um conjunto, um novo olhar sobre essa realidade.
Qual a relação entre a violência e a visibilidade? Como ela se manifesta?
Reck - Tendo em vista o meu campo de trabalho, arte e meios de comunicação, no século passado, as artes plásticas desenvolveram a idéia de que não é preciso mostrar a visibilidade das coisas. Tentava-se dissecar o olhar. Tendo em vista os meios de comunicação e a sua grande preponderância, poderíamos dizer que vivemos o auge da visibilização da realidade, sobretudo nos meios de comunicação que usam a imagem. O objetivo, no momento, parece ser dissolver todo esse processo dentro da comunicação, dentro da Internet. Mas isso é um grande auto-engano porque, no fundo, esse processo não significa informação, talvez sequer se trate de comunicação. No fundo, trata-se de organizar e administrar a violência de uma maneira imperceptível. O fato de termos uma eterna repetição, cansativa até, da violência nos meios de comunicação visuais não significa que estejamos realmente nos aproximando do fato gerador da violência. A grande esperança é que o domínio dos meios de comunicação seja quebrado através do novo processo da informática, que cria individualidades, singularidades pontuais capacitadas para romper a estrutura global desses meios de comunicação. Eu ainda nutro essa esperança, mas sei de pessoas que já se frustraram com ela.
Em termos práticos, onde a extensão radical da visibilidade mais prejudica a vida das pessoas?
Reck - A nossa sociedade aspira à visibilidade. Ela vê nisso seu maior ideal. As pessoas são obrigadas a se tornar visíveis, a aparecer, a possuir uma imagem. Esse fenômeno nos assola há vários séculos. Porém, a sociedade ainda não percebeu que isso produz um efeito negativo. De um lado há a imagem e, de outro, sua representação, ou seja, aquilo que ela parece ser. A própria pessoa assume uma imagem de si mesma à qual ela aspira. A saída talvez fosse as pessoas perceberem o mal que isso causa e, pela reflexão, perceberem que é melhor não chegar ao extremo da visibilidade. Com isso, talvez fosse possível ser mais feliz. Antigamente, era um escândalo reproduzir uma imagem abstrata, sem base no real. O escândalo hoje é que nos sentimos obrigados a nos transformarmos também em imagem. Mas essa imagem é uma abstração, ela é abstraída da realidade e, por isso, é uma violência. Só existem duas possibilidades: ou eu fico fora dessa obrigação da sociedade, daí eu morro de fome, ou, então, transformo-me na imagem que se exige e, com isso, também me destruo. A nossa esperança é que na realidade do dia-a-dia, na prática, possamos evitar as duas alternativas. Talvez exista um avanço quando se vê, hoje em dia, pessoas evitando participar da sociedade exposta, da high society.
Para manter as pessoas atreladas a essa conduta aparente existe um ente que as coaja?
Kamper - Parece que há um fantasma que nos atrai para essa realidade mentirosa, apesar de termos consciência de que quanto mais procurarmos ser famosos, fazer parte do círculo dos famosos, tanto mais perderemos nossa individualidade. De alguma maneira, o ser humano sente-se atraído por esse fantasma. É difícil imaginar que exista alguém com alguma força imaginativa que consiga se manter à margem desse processo. É um processo dificilmente perceptível que nos arrasta e quando nos damos conta é tarde, mas pode ser um recomeço, uma virada que nos faça ver as coisas com outros olhos. Isso pode até nos levar à conclusão de que devemos ser diferentes.
Em que medida a visibilidade está vinculada ao predomínio do sentido da visão? É possível minimizar os efeitos da violência desenvolvendo os outros sentidos?
Kamper - Estamos refletindo sobre a possibilidade de combater e neutralizar a preponderância do sentido da visão, do olhar. Analisamos a possibilidade da audição entrar como uma espécie de contrapeso. Talvez a audição tenha uma capacidade de percepção diferente da visão, talvez ela nos dê um novo aspecto da realidade. No dia-a-dia, os ouvidos são entupidos com poluição sonora. Quando o barulho é intenso, a audição deixa de ser um sentido, um instrumento. De qualquer maneira, achar um contrapeso para a visibilidade certamente já é um ponto positivo. Nessa hierarquização dos sentidos, que privilegia a visão, temos de analisar que não é apenas uma questão de vontade. Não dá para simplesmente inverter as coisas e dizer "bem, então vamos valorizar os outros sentidos que ficaram relegados durante muitos séculos e agora cultivar o olfato". Isso porque ter vontade de empreender essa mudança implica novamente uma imagem que estamos almejando. Seria novamente uma inversão das coisas. Partimos de uma imagem do que queremos e empenhamos a vontade de chegar lá. Certamente, não é com truques de psicologia e terapia que vamos mudar essa relação entre os sentidos.
As políticas públicas de contenção da violência seriam inócuas, já que o modelo geral é pernicioso. Posto isso, transpondo essa questão para a Europa, como os senhores analisam a escalada da intolerância, do neonazismo e da xenofobia?
Kamper - A violência da visibilidade é uma questão política. Podemos até afirmar que existe uma certa ditadura da visibilidade. Os meios de comunicação visual impõem o seu padrão. Quando se fala de xenofobia e neonazismo, eu creio que essas coisas não nascem da cultura. Elas são produto desse imperialismo da imagem, da visão. Eu soube que em certos atos de vandalismo neonazista, os manifestantes pararam de agir, de quebrar as coisas, de serem violentos, na medida em que se desligavam as câmeras de televisão. Eu diria mais: os próprios meios de comunicação, no fundo, são fascistas. Eles só querem a realidade de um corpo estendido no chão. É isso o que eles procuram. É difícil ver o que é a realidade, porque as pessoas se transformam quando as câmeras são ligadas. Então eu pergunto: o que é a realidade?
Mas, mesmo assim, traz reflexos muito negativos. Ou seja, por trás dessa imagem que a mídia produz, há conseqüências reais.
Kamper - Até que ponto os fantasmas dos políticos criam e impulsionam a realidade? Por isso a questão é extremamente política também. A vítima deve reagir contra essa visibilidade total. Então, eu me pergunto até que ponto a culpa é dos políticos que impulsionam essa visibilidade total, que gostam que ela seja assim, que trabalham nesse sentido? Veja um exemplo: o partido Conservador Alemão (CDU), que sofre acusações de corrupção, tem um plano concreto de instalar em todas as grandes praças de Berlim câmeras que vigiem a vida das pessoas. Isso com o pretexto de evitar a violência e o crime. Enquanto busca devassar o cotidiano dos cidadãos, os políticos do partido têm de se esforçar para que os próprios atos permaneçam invisíveis. Por aí, vemos que o tema da violência é realmente político.