Postado em
Mulher
O belo sexo
O título acima foi originalmente dado a um jornal criado no início do século, editado por escritoras, políticas e artistas brasileiras. Um indício de que, ao contrário do se pensa, a mulher é parte ativa da história muito antes da célebre revolução feminina da década de 60. Mas isso não significa dizer que o preconceito e a discriminação terminaram
"Ei-nos, pois, em campanha; o estandarte da ilustração ondula gracioso à brisa perfumada dos trópicos: acolhei-vos ele, todas as que possuem uma faísca de inteligência, vinde!"
Essa citação conclama as mulheres a se unirem em busca da libertação. Trata-se de um trecho do editorial do primeiro número do Jornal das Senhoras, lançado no Brasil em 1852, e aberto a todas que exigiam mais do que a sociedade estava disposta a lhes dar. O conteúdo dessa publicação, e de outras que surgiram a partir dela, revelava, por meio de crônicas, críticas ou simples cartas, que a mulher queria falar mais, rir mais, optar e, acima de tudo, ser respeitada pelo que era e não viver eternamente tentando se encaixar na rubrica que a história lhes confinou.
Segundo as escritoras Heloísa Buarque de Hollanda e Lúcia Nascimento Araújo, autoras do livro Ensaístas Brasileiras, "um espaço definitivo para o desenvolvimento da expressão feminina foi a imprensa dirigida e editada por mulheres". Um movimento que se iniciou em meados do século 19 e seguiu até a primeira década do século 20. O princípio repousava no despertar de um raciocínio feminista e nas campanhas para a educação da mulher. Esses periódicos comprovam que, muito antes dos mundialmente conhecidos movimentos feministas americano e europeu (1960 e 1970), as mulheres já se incomodavam com a passividade à qual eram submetidas. Não importava em que extremo estava o pêndulo da história, o fato é que elas ansiavam por controlar seus movimentos e oscilações.
E não é que elas foram?
A professora de Literatura Portuguesa da USP e crítica literária, Nelly Novaes Coelho, está em processo de finalização de uma pesquisa que resultará numa espécie de dicionário de autoras brasileiras. O volume do material recebido a impressionou. "Quando tive a idéia de fazer esse dicionário, em 1988, comuniquei-me com grupos em todos os estados brasileiros e num instante consegui pessoas que se encarregaram de divulgar meu projeto em arquivos e bibliotecas. Desde então, tenho recebido, e continuo recebendo, um fartíssimo material de escritoras e netas de escritoras que já faleceram." Nelly espera que seu livro seja um marco na história da produção literária da mulher. Uma história que, segundo ela, já começa a ser contada. "Há muitas pesquisas em curso, principalmente sobre as mulheres que viveram nos séculos 18 e 19." A professora explica que a literatura feminina atual vem desvendando os inúmeros caminhos que a mulher tenta abrir. "É preciso que alguém registre esse movimento", ressalta.
Segundo Nelly, a produção literária feminina está "absolutamente sintonizada com todos os valores e exigências do nosso século e suas mutações. Não há temática que apareça na literatura dos homens e que as mulheres não abordem". Seu conhecimento revela que ambos os sexos atingiram um alto nível de excelência em suas produções. Isso se estende, também, às autoras estrangeiras.
Durante o processo de pesquisa de seu livro, Nelly descobriu que as mulheres já deram muito o que falar. Um dos casos emblemáticos é o lançamento, em 1972, da obra As Novas Cartas Portuguesas, escrita por Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa e Maria Isabel Barreno. Um livro que causou tremendo furor em Portugal ao exigir liberdade sexual para as mulheres. Considerando o conteúdo do livro uma ameaça, o governo português acionou a censura, apreendeu toda a edição e a destruiu. "Na verdade, o governo tinha razão", diverte-se Nelly. "Ao tirar a mulher do lugar que a sociedade tradicional a colocou, todo o resto sai do lugar. Ela é o eixo. Enquanto ela ficou quietinha dentro de casa estava tudo bem. Ela era a rainha do lar e os homens estavam tranqüilos porque tinham o seu ponto de apoio: a reprodutora estava sob o controle da sociedade. No momento em que ela começa a sair dos limites do lar para entrar no mercado de trabalho, começa a confusão."
E a "confusão" data de mais de um século. "Há um conjunto de trabalhos e estudos que provam que ao longo dos séculos as mulheres não foram tão passivas e nem tão submissas. Mais que excluídas, elas estiveram ocultadas da história", esclarece a historiadora Maria Izilda S. de Matos, coordenadora do Núcleo de Estudos da Mulher, da PUC de São Paulo. Maria Izilda participou de um evento organizado pelo Sesc Itaquera, que, em março, discutiu, entre outros tópicos, a transformação da mulher e sua incursão no mercado de trabalho. "Quando se fala 'nós, trabalhadores do Brasil' ou 'eles fizeram a revolução' - a Revolução Francesa, por exemplo - esses pronomes ocultam que ali atuaram homens e mulheres. Muitas vezes ambos os sexos participaram juntos, porém de forma diferenciada." Abordar a posição feminina nos marcos da história, analisando a crescente participação das mulheres no mundo do trabalho, hoje fato inegável, é explicitar o quanto isso fez, e faz, estremecerem as placas tectônicas sobre as quais a sociedade se firmou, produzindo um terremoto de mudanças. "Hoje, em alguns setores do mercado de trabalho as mulheres são maioria", continua a historiadora. "Na perspectiva do novo milênio, o trabalho não é mais aquela atividade masculina fabril, exercida pelo homem provedor. Se analisarmos setores como a odontologia, verifica-se que são áreas que se feminilizaram assustadoramente. Hoje, as mulheres dentistas ainda não chegam a 50% do mercado, mas estima-se que, em quatro anos, a porcentagem ultrapasse esse número." Maria Izilda explica que o processo se dá pela demanda de profissionais que possuem o chamado controle motor fino, ou seja, uma habilidade inerente às mãos femininas. Esse processo se reproduz também em áreas como dermatologia e oftalmologia, além de setores paramédicos como ortopedia e fisioterapia.
Homens em crise
A maciça entrada da mulher no mercado de trabalho alterou o perfil feminino criado pela sociedade, porém, não apenas isso. "O que se vê de forma muito marcante nesse final de século é o que se denomina de crise da masculinidade", retoma Maria Izilda. "Os homens perderam a referência." O Núcleo de Estudos da Mulher analisa a reação que essa nova mulher causa no homem ao "invadir" seu, até então, sólido universo. A historiadora se debruça sobre a questão para escrever um livro sobre a crise da masculinidade e o alcoolismo. Ela explica que, ao contrário do que se pensa, a história se constrói do presente para o passado. Ou seja, o fato da mulher contemporânea desestruturar tanto o homem, forçando-o a adaptar-se a ela, pode ser explicado se olharmos para os modelos masculino e feminino criados séculos atrás. "Em geral, tem-se, em uma larga duração, uma certa dicotomia do feminino", começa. "A mulher era Maria ou Eva. Ou seja, o padrão imposto era o da mulher passiva, contida e recatada e, antes do casamento, virgem. Em oposição a esse modelo de mulher ideal, constrói-se o perfil de Eva, a mulher da sexualidade desmedida, e também o do homem forte, provedor, trabalhador, honesto e honrado." Estava estabelecida a ordem do côncavo e do convexo. "Se a mulher é submissa, o homem é dominador; se ele é provedor, ela é provida; se ele é pai, ela é mãe; e assim os papéis foram sendo identificados", conclui Maria Izilda.
Nem tudo são rosas
Porém, apesar de todo o avanço da mulher no mercado de trabalho, e conseqüentemente em outros setores da sociedade, a resistência ainda existe. Os salários são diferenciados. Em alguns casos a diferença é de até 50%, e as possibilidades de ascensão profissional não são as mesmas.
O Núcleo de Estudos da Mulher revela que uma pesquisa feita pela USP identificou uma feminilização muito grande do quadro de seus professores em diferentes setores, mas quando os cargos começam a se aproximar dos cursos de pós-graduação, hierarquicamente mais importantes, a presença feminina escasseia. "Além disso", retoma a historiadora, "para o mesmo cargo, sempre se cobra da mulher uma capacitação superior à do homem. É como se ela tivesse de estar o tempo todo provando sua competência. Se para um cargo executivo é necessária uma faculdade, a mulher que ocupá-lo, com certeza, já estará na pós-graduação".
Outra questão ainda presente e que revela o resistente sexismo de nossa sociedade é o assédio sexual. O motivo não poderia ser mais medieval: a mulher que trabalha ainda é considerada uma mulher exposta e, por isso, especialmente aberta a essa abordagem. "Temos também a questão da dupla jornada de trabalho", continua Maria Izilda. "A sociedade transformou-se bastante no que se refere às relações da mulher e do trabalho, porém as relações familiares ainda não alcançaram essa transformação." Pesquisas apontam que a maior parte das funções dentro de casa ainda recaem sobre a mulher, o que a obriga a arcar com as responsabilidades domésticas e ainda com a vida profissional. Outro empecilho que ronda e ameaça a imagem da mulher é a mídia. Mais especificamente a tevê e a propaganda. Para Nelly Novaes Coelho, a televisão interceptou esse processo de transição da mulher e a transformou num produto. "Algumas dessas mulheres que hoje invadem a tevê são vendáveis, porém descartáveis", analisa a professora. Já para Maria Izilda, a relação mulher/mídia é caracterizada por uma ambigüidade: "Por um lado, a mídia cria estereótipos da mulher-objeto. Mas, por outro, também são mostrados outros perfis: o da mãe, o da avó, o da executiva e o da mulher que procura seu espaço".
De acordo com a historiadora, não é possível atribuir à mídia um caráter totalmente depreciativo. Em primeiro lugar, porque a figura da mulher-objeto não é invenção da tevê. "É só nos lembrarmos das vamps do cinema mudo", provoca. E em segundo lugar, porque a tevê já mostrou produções como Malu Mulher, seriado exibido no início dos anos de 1980, que apresentava a atriz Regina Duarte interpretando uma mulher divorciada que trabalhava e criava, sozinha, seus filhos. "Se a questão dá retorno de audiência, vira tema", defende Maria Izilda. "Trata-se de um projeto ligado aos interlocutores do veículo, ou seja, os telespectadores."
O Sesc e a mulher
Os eventos realizados pelo Sesc no mês passado, quando se comemorou o Dia Internacional da Mulher, estenderam-se por várias unidades. Entre as mais importantes estão aquelas realizadas pelo Sesc Itaquera, Santo Amaro e Santos.
Na unidade do litoral, de 9 a 12 de março, shows musicais, teatro, debates, minipalestras e demais atividades constituíram a terceira edição do Projeto Mulher, que vem reforçando o objetivo de ressaltar a presença feminina na sociedade. Em caráter comunitário, o projeto envolveu aproximadamente vinte entidades, entre elas o Fórum de Mulheres de Santos. Destaque para o Espaço Mulher, em que temas como saúde, cidadania e trabalho estiveram presentes na Área de Convivência da unidade em estandes montados pelas instituições envolvidas. A programação foi gratuita para o público feminino.
Em Santo Amaro, o ponto forte foi a exposição Sexo Frágil?, que retratou um pouco a luta das mulheres para superar tabus e preconceitos. O esporte foi escolhido como tema para contar essa história. O objetivo da mostra foi demonstrar que atividades esportivas tidas como exclusivamente masculinas também podem ser praticadas por mulheres sem comprometer sua feminilidade. Afora a exposição, foi realizada uma palestra sobre beleza, saúde e comportamento, além de um bate-papo acerca da questão da sexualidade e das doenças sexualmente transmissíveis (DST).
Já em Itaquera, além da presença da doutora em história Maria Izilda S. de Matos, a vereadora Aldaíza Sposatti foi convidada a dar seu parecer sobre a presença da mulher na política e na mídia. Suas reivindicações recaíram sobre o fato de que 68 anos após a abertura política, que permitiu a participação feminina das decisões do país, as políticas públicas ainda são pensadas genericamente, sem levar em conta a questão de gênero. Quanto à mídia, a vereadora salientou que, na tevê, a maioria dos jornalistas é composta por mulheres e mesmo assim sua presença nos cargos de chefia é reduzida.