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O cinema do sol nascente


Entre o fim da década de 50 e meados dos anos 60, a cidade de São Paulo possuía um grande público aficionado por filmes japoneses, que lotava as salas da Liberdade. Resgatando o clima e de olho na formação de novas platéias, o CineSesc realiza uma mostra da mais recente produção cinematográfica japonesa.
Nem é preciso dizer o quanto a década de 1960 foi determinante para o século 20. Depois daqueles anos nada ficou no lugar. Entusiasmada, a juventude da época bateu o pé pelo direito à liberdade de expressão. A contracultura, os engajados movimentos estudantis, a pílula anticoncepcional e a revolução sexual foram algumas das novidades que acenaram para a mudança do comportamento juvenil.
Não demorou para que o eco dessa revolução ressoasse nas artes e, sobretudo, no cinema. O mundo assistiu, então, ao nascimento de uma nova produção cinematográfica. No Brasil, essa fase chamou-se Cinema Novo e seu expoente máximo foi Terra em Transe, de Glauber Rocha, cineasta que lançou, por aqui, o conceito de "uma câmera na mão e uma idéia na cabeça". Na França, o novo cinema foi chamado de nouvelle vague (nova onda) e dessa leva surgiram cineastas como Jean-Luc Godard, François Truffaut, Claude Chabrol, entre outros, que transpunham para a tela a materialização da liberdade de expressão. Essa geração de artistas foi aclamada pela crítica e adorada por jovens sedentos por mudanças.
Da Europa, o movimento se espalhou como rastilho de pólvora. Não poupou nem as culturas mais tradicionais do Oriente, normalmente avessas às inovações de além-mar. O exemplo principal da revolucionária cinematografia foi o Japão, cenário para uma das mais proeminentes produções mundiais. Adaptada para nuberu bagu (nouvelle vague), os filmes realizados no final da década de 1950 e começo dos anos de 1960 começaram a questionar os valores da sociedade japonesa. Ao contrário das fitas de gênero (ao estilo dos faroestes americanos), que restauravam a tradição japonesa, como a sabedoria dos samurais e o altruísmo feminino, a nuberu bagu lançou mão de um Japão abalado pela Segunda Guerra Mundial: "A nouvelle vague japonesa foi a consumação cinematográfica de uma grande transformação, cuja origem remontava ao final da guerra e à ocupação americana. Depois de séculos de contato formal com o Ocidente, o Japão, derrotado na guerra, teve de se render às forças aliadas e adotar maciçamente os costumes ocidentais. Pelo menos no início, isso foi feito de bom grado, pois com os americanos chegavam os atraentes conceitos de 'democracia' e de 'individualismo', inéditos para os japoneses, até então submetidos ao militarismo e ao coletivismo. Foi com euforia que os jovens abraçaram a nova liberdade oferecida pelos invasores, os vestidos curtos, os carros-esporte, o jazz, o rock, as festas, o sexo sem compromisso", escreveu a crítica Lucia Nagib no texto Um Outro Japão, publicado pela Fundação Japão.
Segundo Lucia, um dos principais precursores da nouvelle vague japonesa é o filme Paixão Juvenil, dirigido em 1956 por Ko Nakahira. A trama é recheada de ingredientes americanos que, até pouco tempo antes, eram completamente estranhos à juventude japonesa. No estilo sexo, drogas e rock'n roll, os protagonistas se divertem num mundo de prazeres. "Alguns chegam a encontrar ecos de Paixão Juvenil no marco da nouvelle vague francesa, o filme Os Incompreendidos, de François Truffaut, lançado em 1959", prossegue.
O fim da década de 1950 até meados dos anos de 1960 marcou o apogeu do cinema japonês. Nesse período, chegaram a ser realizados, em média, 400 filmes por ano. Para se ter uma idéia do que isso significa, basta dizer que os estúdios hollywoodianos fazem, atualmente, pouco mais de 100 filmes por ano. A volumosa produção era garantida por quatro grandes estúdios: o Shochiku, o Nikatsu, o Daei e o Toei. Juntos, eles filmavam todos os tipos de gêneros: musicais, dramas, comédias, filmes de capa-e-espada. Com a consagração da nuberu bagu, os estúdios perceberam a força do movimento e, como medida de sobrevivência, passaram a investir em jovens cineastas. Foi assim que o novo cinema japonês ganhou fôlego e se tornou um dos mais importantes do mundo nessa época.
Enquanto as nouvelles vagues mundo afora eram realizadas via produção independente, no Japão, a nuberu bagu acontecia dentro dos grandes estúdios. A Shochiku, por exemplo, a maior produtora cinematográfica do Japão, resistiu um pouco às transformações, hesitando em deixar de lado as produções tradicionais. Percebendo que não resistiria ao mercado se não se adaptasse à nova realidade, a Shochiku contratou o jovem Nagisa Oshima, cineasta que, anos mais tarde, despontou como um dos grandes nomes da nouvelle vague japonesa. Em 1960, junto com Yoshishige Yoshida e Masahiro Shinoda, ele dirigiu cerca de três filmes por ano. São dessa época Conto Cruel da Juventude e Túmulo do Sol. Na maioria deles, o cineasta retratava a sociedade e a juventude japonesas. Dezesseis anos mais tarde, quando já tinha sua própria produtora independente, a Shozosha, Oshima dirigiu aquele que seria considerado um dos mais conhecidos filmes japoneses do mundo e, por muitos, considerado o mais erótico da história do cinema, o polêmico Império dos Sentidos.

Nuberu na Liberdade
A cinematografia japonesa demorou a ser conhecida pelo grande público. Na verdade, ela só chamou a atenção dos críticos quando Akira Kurosawa ganhou o Leão de Ouro do Festival de Veneza com o filme Rashomon, em 1952. Só que, em São Paulo, bem antes do reconhecimento mundial, os filmes japoneses já faziam sucesso, tinham público cativo e salas exclusivas. Com uma grande colônia vivendo na cidade, os estúdios cinematográficos do Japão encontraram na capital paulista um grande mercado consumidor, o maior da América Latina.
Entre as décadas de 1950 e 1960, existiam quatro salas na cidade. O Cine Jóia exibia os filmes da Toho; o Niterói, da Toei; o Nikatsu, da Nikatsu; o Nipon, da Shochiku ou Shoshimo. "A média de lançamento em São Paulo era de um filme por semana. Considerando que havia quatro salas, eram praticamente quatro lançamentos por semana. O mais interessante é que os filmes que chegavam aqui eram cópias únicas, não passavam pelo processo de duplicação em laboratório. A imagem era perfeita, de uma qualidade impressionante", conta Jô Takahashi, diretor cultural da Fundação Japão e assíduo freqüentador dessas salas na década de 1960.
A maior parte do público que assistia às produções japonesas era formada por pessoas da própria colônia. Porém, muita gente que hoje trabalha com cinema e com divulgação cultural fazia fila na porta dos cinemas da Liberdade. "Mais tarde, soube que personalidades culturais brasileiras, como Décio Pignatari, Haroldo de Campos, Walter Hugo Khouri, freqüentaram essas salas. A divulgação corria boca a boca, mas a proximidade com o Largo São Francisco, de onde brotavam nomes importantes da intelectualidade, contribuía para que muitos estudantes fossem aos filmes", conta Takahashi.
Além do boca a boca, no Estadão o crítico Rubem Biáfora era completamente fascinado pelo cinema do Japão e não media elogios. Segundo o crítico de cinema Jairo Ferreira, que na época trabalhava no jornal São Paulo Shimbun, da colônia japonesa, seus artigos eram uma verdadeira publicidade: "Interessei-me pelo cinema japonês de tanto que o Rubem falava. Enquanto aqui já conhecíamos a cinematografia japonesa, a França, que naquela época tinha os melhores críticos, ainda não tinha conhecimento. O Wim Wenders conheceu o Ozu agora, enquanto nós já conhecemos sua obra há trinta anos".
O cineasta Carlos Reichenbach, diretor de Dois Córregos, era um dos habitués das salas da Liberdade e continua apaixonado pelo cinema japonês: "Assistia a uma média de dois, três filmes japoneses por semana, era uma obsessão. O primeiro impacto que tive com esse cinema foi quando assisti o Intendente Sansho, de Misogushi. Era uma cópia sem legenda, mas mesmo assim fiquei absolutamente fascinado. Quando assisti Contos da Lua Vaga, pensei: é isso que quero fazer no cinema", conta.
Reichenbach também encontrou na nouvelle vague japonesa ingredientes que, mais tarde, exploraria em seus filmes: "De alguma forma, os filmes que realizei na década de 1970 têm um vínculo muito grande com essa geração. Os assuntos estavam muito próximos do que queria tratar nos meus filmes. Interessava-me muito a maneira como algumas das produções dessa época tratavam a mulher, como um personagem em permanente revolução. Lilian M foi totalmente sugestionado por dois filmes: A Mulher Inseto e Segredo de Uma Esposa, ambos de Shohei Imamura. Em seus filmes, os personagens femininos aparecem sempre quebrando tabus, tentando libertar-se das amarras da sociedade japonesa. Esses temas definem também outro filme meu, o Amor, Palavra Prostituta". O poeta Claudio Willer também era assíduo no circuito do cinema japonês na época de estudante: "Certa vez, estava cabulando aula do cursinho onde eu estudava na Aclimação e passei em frente ao Cine Niterói, na Galvão Bueno. Naquele dia estavam sendo exibidos os filmes da série Espada Diabólica, de Tomu Uchida, provavelmente o mais complexo cineasta do gênero samurai. Foi uma experiência de absoluto deslumbramento, o suficiente para não perder mais nenhum. Mesmo a produção mais comercial era bonita. Levei amigos e ajudei a transformar a Liberdade em uma região freqüentada. Restaurantes de sushi e sashimi eram, na época, alternativa barata, preço de cantina", relembra.
Em 1965, a produção cinematográfica japonesa começou a entrar em crise devido à concorrência com a televisão. Os estúdios foram sendo fechados aos poucos e a produção atual não passa de trinta filmes por ano. Conseqüentemente, as salas em São Paulo foram deixando de apresentar aquela programação intensa e diversificada dos tempos áureos. O último cinema a fechar foi o Cine Niterói, em 1987.
Jairo Ferreira lembra-se com saudosismo da época: "Atualmente há uma crise de talentos. Faz trinta anos que o cinema japonês está em crise. Não há ninguém à altura daqueles diretores. Mas, essa é uma crise mundial que atingiu não só o cinema japonês, mas também o italiano e o francês. Sou muito ligado no chamado 'cinema de invenção' e acho que, até hoje, quem continua fazendo isso é o Shohei Imamura".
De volta à Liberdade
Resgatando o ambiente cinéfilo da Liberdade, o CineSesc, em parceria com a Fundação Japão, realiza em abril uma mostra da recente produção cinematográfica japonesa com a exibição de dez longas-metragens inéditos no Brasil. Prepare a pipoca e confira no roteiro:
17/04
16h Nodo-Jiman - Kazuyuki Izutsu - 112 min - 1998 (foto)
l8h30 Botequim Mal Assombrado - Takayoshi Watanabe - 113 min - 1996
21h Torres de Alta Tensão - Naoki Nagao - 115 min - 1997
18/04
17h Recanto Secreto - Shinobu Yaguchi - 83 min - 1997
19h Escola Mal Assombrada - Hideyuki Hirayama - 100 min - 1995
21h Escola II - Yoji Yamada - 122 min - 1996
19/04
17h30 Abraçando o Sorriso - Iwao Seto - 100 min - 1996
19h30 Sequestro - Takao Okawara - 109 min - 1997
21h30 Kids Return - Takeshi Kitano - 108 min - 1996
20/04
16h30 Ferrovia das Galáxias - Kazuki Omori - 111 min - 1996
19h Escola II - Yoji Yamada - 122 min - 1996
21h30 Kids Return - Takeshi Kitano - 108 min - 1996