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A cena viva

Dublin, capital da Irlanda, setembro de 1937. Um francês vaga pelas ruas, sem dinheiro e com dificuldades para se comunicar em inglês, idioma do país. Depois de um tumulto em praça pública que atraiu a polícia – quando esta inclusive lhe toma o único pertence, uma bengala que ele julgava ser sagrada e ter pertencido a São Patrício, padroeiro dos irlandeses –, o homem, tido como louco, é preso.

No mesmo mês, esse francês chega a cidade de Havre, na França, em camisa de força, e é entregue às autoridades locais, que o internam num hospital psiquiátrico. Na ficha, o nome: Antonin Marie Joseph Artaud, nascido em Marselha, em 4 de setembro de 1896. À época, a sociedade ocidental já o conhecia do teatro, do cinema – como roteirista, encenador, diretor e ator –, dos trabalhos sobre as artes dramáticas e das célebres conferências, como a que deu no México apenas um ano antes. 

Depois desse incidente na Irlanda, no entanto, Artaud iria conhecer outro tratamento oferecido pela sociedade ocidental, aquele das instituições psiquiátricas, em cada um dos muitos enclausuramentos aos quais seria submetido por nove anos a partir dali. No histórico: depressão, alucinações, dependência química.

“Ele precisava mesmo de tratamento”, observa o professor de sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) Alex Galeno, autor de Antonin Artaud – A Revolta de um Anjo Terrível (Sulina, 2005). “Tanto que sua dependência química o levou ao óbito. Embora, claro, nada justifique os eletrochoques.” O dramaturgo foi encontrando morto, em seu quarto, aos 52 anos, “caído aos pés da cama, segurando um sapato”, conforme descreve Galeno em seu livro.

O que também não se justifica é qualquer associação leviana entre os problemas mentais de Artaud e suas propostas artísticas. Sua “loucura” – para usar um termo ainda hoje corrente – nunca fez dele um “alienado” do mundo. Assim como sua concepção da arte, e especialmente do teatro, não nasce do espasmo. Talvez isso permaneça até hoje velado para quem conhece Artaud, mas tem dele referências superficiais. Mas, muito ao contrário, o homem e seus costumes, relações e sentimentos sempre foram alvo de profunda reflexão da parte do francês.

E seu pensamento foi sistematizado numa obra que soma mais de 30 volumes, entre ensaios, manifestos e roteiros – tanto no campo das artes cênicas quanto da filosofia, numa prova irrefutável de racionalidade. Provavelmente, não aquela em vigor na Europa que o viu escrever e palestrar e adoecer, mas “Artaud não pode, absolutamente, ser considerado irracional”, defende Galeno, ao mencionar as críticas feitas ao autor na época, disparadas, sobretudo, das trincheiras civilizadas dos cânones artísticos.

“Até hoje se vê, às vezes, uma concepção muito romantizada do Artaud, do rebelde pelo rebelde”, segue o professor da UFRN. “Eu contesto essa versão. Acho que ele, assim como Nietzsche [1844-1900, filósofo alemão] e outros ‘malditos’, tinha a ideia de uma outra civilização e de uma outra cultura.”

Primeiros anos em Paris

Artaud muda-se para Paris em 1920, quando a capital francesa começa a se transformar em uma festa, como iria declarar o escritor norte-americano Ernest Hemingway (1899-1961). Um ano depois, inicia-se como ator na trupe L’Atelier. Em 1922 conhece a atriz romena Génica Athanasiou e se apaixona por ela, para quem destinou diversas cartas, depois reunidas em livro e que recentemente se transformaram em uma peça de teatro apresentada no Sesc Belenzinho (veja boxe A Paixão de Artaud).

Em 1924, chega a integrar o movimento surrealista, por afinidade. “Na medida em que os surrealistas não estavam interessados em fazer uma arte institucional, mas colaborar com a transformação da sensibilidade coletiva”, define o professor de teoria teatral do curso de comunicação e artes do corpo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Cassiano Sydow Quilici, autor de Antonin Artaud – Teatro e Ritual (Annablume, 2004).

O convívio, no entanto, dura apenas dois anos, por razões filosóficas e também políticas. De um lado, conforme explica o filósofo, professor e autor de Antonin Artaud, Meu Próximo (Pazulin, 2007), André Queiroz, os surrealistas estavam por demais envolvidos com as descobertas da psicanálise, na época. “Com o inconsciente como campo alargado no qual o sujeito psicológico redefine os territórios de seu domínio”, teoriza o autor.

E, de outro, aproximaram-se do Partido Comunista Francês, decisão da qual Artaud também discordou e por isso acabou expulso do grupo. “Artaud rompeu com essa aliança porque achava que o marxismo trazia a ideia de transformação do homem, mas não da vida”, arremata Alex Galeno. Até o final da década de 1920, no entanto, Artaud segue em intensa e diversificada atividade.

Atua no teatro e no cinema, cria a revista literária Bilboquet, chega a prefaciar um livro para o jornalista e psiquiatra francês Édouard Toulouse (1865-1947), escreve poemas e até vê roteiros de cinema seus transportados para a tela grande – como é o caso de La Coquille et le Clergyman (A Concha e o Clérigo), dirigido pela cineasta francesa Germaine Dulac, em 1928.

Teatro da crueldade

A chegada de 1931 é especial para a trajetória de Artaud. Em julho daquele ano, o artista assiste, em Paris, a um espetáculo de dança balinesa que mudaria os rumos de suas ideias como autor e articulador das artes cênicas. Ele registra suas impressões em O Teatro e o seu Duplo, escrito no mesmo ano – mas publicado apenas em 1938 –, no qual explicita a influência da cultura oriental em seu trabalho. 

Mais que isso, Artaud também sente naquela experiência com os bailarinos vindos do outro lado do mundo surgir a semente de um dos seus maiores legados: o Teatro da Crueldade. Nele o autor expressa a rejeição às características do teatro tradicional e mesmo a toda a racionalidade da sociedade ocidental. Publicado em livro em 1932, o manifesto posteriormente seria reinterpretado por diversos grupos e diretores ao redor do mundo – especialmente a partir da década de 1960, e em trabalhos como os do inglês Peter Brook e do brasileiro José Celso Martinez Corrêa.

Segundo Cassiano Sydow Quilici, no núcleo do pensamento de Artaud – e algo que ele expressa em O Teatro da Crueldade – está um “sentimento de asfixia em relação a uma cultura que produz muitos sistemas de pensamento, mas que é incapaz de ‘reger’ a vida”, declara. Daí sua busca por construir um pensamento forjado numa “percepção sutil do corpo”. “Ele estava atrás de outros tipos de conhecimento e de uma outra noção de cultura”, analisa Quilici. 

O professor da PUC comenta também como esse pensamento se traduzia no trabalho de Artaud com o ator: uma encenação na qual a dramaturgia não se reduz ao texto, mas que se constrói também na expressão do corpo – sentimentos e gestos. “Um ponto que já está mais assimilado no teatro atual, pelo menos nos grupos mais experimentais”, diz. “[em Artaud] A força da palavra vai além dos significados que transmite.

Ela é também força vibratória que constrói o espaço teatral e afeta a sensibilidade profunda dos espectadores.” Por isso, exemplifica o estudioso, Artaud às vezes compunha “palavras” que eram, na verdade, organização de sílabas e sons sem um significado claro. “A palavra estava intimamente ligada ao trabalho com a respiração que Artaud tentou propor aos atores. Devemos lembrar também que Artaud era um escritor compulsivo. Sua obra escrita é imensa.”

O encenador Ivam Cabral, diretor da Companhia de Teatro Os Satyros – juntamente com Rodolfo García Vázquez –, acrescenta à análise do legado de Artaud o papel exercido pelo pensamento do francês na ampliação de possibilidades cênicas. “Os afetos são atingidos, tem toda a questão da identidade, que é modificada e reformulada, que ele coloca em xeque o tempo todo”, diz Cabral, ressaltando os elementos da contradição e da constante tensão na obra do francês. “E tudo isso para a gente é muito bacana porque sempre pensamos que na contradição a gente encontra a possibilidade da reflexão. E em Artaud isso acontece o tempo inteiro, ele se refaz, se reinventa, se contradiz toda hora.”

Política e ritual

Ainda que não de uma forma convencional – num sentido partidário ou ideológico –, havia também em Artaud um delineado aspecto político. Para Alex Galeno, esse traço se dá no sentido da constante experimentação que ele propunha ao sujeito.

“É algo mais ligado à arte mexendo, metafisicamente, nesse indivíduo”, analisa Galeno. “Por exemplo, em sua Carta aos Reitores, que é uma crítica radical à formação e que foi lida pelos estudantes em Paris durante manifestações etc., não vemos uma intenção política de transformação do mundo, mas tinha uma ideia de mudar a vida.”

O professor compara as orientações de Artaud às de Nietzsche e do poeta francês Arthur Rimbaud (1854-1891). “É a noção de que se mudava a vida muito mais por uma poética da existência – portanto, pela mudança de gestos e sentimentos – do que propriamente pela transformação material.”  É o que observa também Cassiano Sydow Quilici.

Para ele, embora muitos artistas contemporâneos ao francês estivessem comprometidos com o conceito de revolução, como o alemão Berthold Brecht (1898-1956), para Artaud, essa ânsia revolucionária não deveria se restringir a modificações na ordem econômica e política. “Ela teria de ser ‘orgânica e espiritual’, capaz de refazer a nossa própria humanidade”, acrescenta.

“E revolução ‘orgânica’ não se reduz aqui aos discursos sobre a ‘liberação do corpo’ e outros semelhantes. Mais do que isso, afirma a necessidade de recanalizar as energias e desejos, considerando também a nossa ‘fome’ do infinito.”  Ivam Cabral lembra outra marca do francês: a presença do elemento ritual na arte que ele propunha. “O ritual é o lugar da reconstrução do corpo”, analisa o encenador. “E falo de qualquer ritual, não só o teatral.

O católico, quando vai à missa, o seguidor do candomblé, quando vai ao terreiro, está reconstruindo o corpo. E, no teatro, essa reconstrução pode se dar também no público.”  Cabral lê como político o efeito que uma obra de arte pode exercer sobre o indivíduo – “porque você não sai da mesma forma que entrou quando assiste a uma obra de arte, seja no teatro, no cinema”, afirma. Por isso concorda que, nesse sentido, Artaud agia também nesse campo. “Acho que existe ali [na obra de Artaud] um trânsito físico que é perturbador”, enxerga. “E acho que Artaud é um cara que faz a gente pensar sobre isso, porque para ele a questão do ritual é importante.”
 
Vida e obra do artista

1896 – Nasceu em Marselha, em 4 de setembro, Antonin Marie Joseph Artaud.

1914 -1915 – Forte crise de depressão. Artaud chega a destruir seus escritos e dar seus livros de presente. Foi na mesma época a primeira internação num sanatório.

1920 – Muda-se para Paris.

1921 – Inicia suas participações como ator na companhia L’Atelier, do ator francês Charles Dullin (1885-1949).

1922 – Conhece a atriz romena Génica Athanasiou.

1928 – Lançamento do filme La Coquille et le Clergyman, baseado em um roteiro seu.

1931 – Assiste a um espetáculo de dança balinesa, em Paris, que o marca profundamente, e escreve O Teatro e o seu Duplo.

1932 – É publicado o primeiro manifesto do Teatro da Crueldade.

1935 – Dirige a montagem Os Cenci, onde também atua. A peça é profundamente criticada e lhe causa prejuízos financeiros.

1938 – É publicado O Teatro e o seu Duplo, uma de suas obras mais importantes e conhecidas, porém sem o conhecimento de Artaud, que estava internado no Hospital de Sainte-Anne, em Paris.  

1944 – Começa a desenhar.

1947 – Dá a famosa conferência Frente a Frente, no Vieux Colombier.

1948 – Em 4 de março, seu corpo é encontrado em seu quarto.

Fonte: Passagens tiradas do capítulo Rizomas..., parte do livro Antonin Artaud – A revolta de um Anjo Terrível (Sulina, 2005), de Alex Galeno.

 
A paixão de Artaud

Espetáculo leva ao palco cartas de amor escritas pelo dramaturgo francês 

Foi da própria atriz francesa Carole Bouquet (foto) a ideia de transformar num monólogo o conteúdo apaixonado das cartas que o ator, escritor e diretor francês Antonin Artaud escreveu para a atriz romena Génica Athanasiou, com quem manteve um relacionamento amoroso de 1922 a 1927. “Eu mesma selecionei as cartas, porque queria transmitir a beleza da escrita do Artaud, sua força, o quanto ele escreve bem sobre a dificuldade de viver, de amar”, afirmou Carole em texto de divulgação de Cartas a Génica, que a unidade Belenzinho apresentou de 3 a 6 de novembro. 

Segundo a atriz, não se trata, no entanto, de uma interpretação propriamente dita. “Na verdade eu me comunico com as pessoas”, conta, acrescentando que, com base no conteúdo das mensagens, ela partiu numa busca por criar uma intimidade entre os textos e o espectador. “Como se, afinal, eu lhe contasse [à plateia] diretamente uma história. Trata-se de uma relação muito íntima com o público”, diz a intérprete. 

Carole Bouquet é uma das mais requisitadas atrizes do cinema francês e atuou em filmes e peças realizados por grandes diretores – alguns ao lado de colegas de renome, como Gérard Depardieu, com quem atuou em Linda Demais Para Você (1989), de Bertrand Blier, e também viveu entre 1997 e 2005.

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