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Jogo limpo

A indústria dos games, atualmente, é um dos segmentos culturais mais lucrativos e influentes do mundo. Esses aparatos eletrônicos são cada vez mais utilizados nos campos das artes e da educação e podem estimular o jogador a desenvolver a memória e o raciocínio.

No entanto, alguns estudos ressaltam que suas imagens podem incitar os jovens à violência. Para desmistificar o assunto, o professor e doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Sergio Nesteriuk e a professora da Universidade Estadual da Bahia (Uneb), doutora em Educação e Comunicação, Lynn Alves discorrem, em artigos inéditos, sobre o lado lúdico dos jogos.


Gatilho virtual, a questão dos games e da violência
por Sergio Nesteriuk

Os games constituem um fenômeno de dupla importância na sociedade contemporânea, seja no âmbito econômico ou no cultural. No primeiro caso, estão entre as maiores indústrias, constituindo a maior de todas no ramo específico do entretenimento, superando, em faturamento, o cinema e a música.

Inserem-se, assim, no contexto da “Economia Criativa” e da “Economia Nova”, apresentando novos e desafiadores paradigmas na sua forma de se relacionar com o mundo dos negócios. Constituem, também, um dos principais produtos culturais de nossa era, fazendo parte do cotidiano e do imaginário de milhões e milhões de pessoas ao redor de todo o planeta.

Além disso, os games representam um fenômeno altamente interdisciplinar e complexo, incorporando disciplinas e saberes de áreas aparentemente díspares, como computação, artes, design, psicologia, narrativa e comunicação, entre outras.

É preciso considerar, portanto, que ao utilizarmos o termo games não estamos nos referindo apenas aos jogos em si; da mesma forma quando abordamos outros produtos culturais, como a música, por exemplo, não nos referimos apenas às suas gravações. Assim, ao falarmos do assunto, sinalizamos para todo o seu universo – um intrincado conjunto de relações que se disseminam pela cultura, envolvendo questões formais, retóricas, comportamentais etc.

Apesar de sua relevância, os games só começaram a ser devidamente estudados há pouco tempo. Livros, pesquisas, artigos e grupos de estudos sobre os mais diversos aspectos relacionados aos games tornam-se cada vez mais comuns. Entretanto, por mais que se avance nessas discussões, frequentemente retornamos e restringimos toda a riqueza e diversidade proporcionada por esses estudos a uma única questão: a violência. 

Como jogador, pesquisador e pai, fui compelido a tecer uma opinião própria sobre essa questão. Estudos e pesquisas sobre a violência nas mídias e seus possíveis efeitos, sobretudo em crianças e jovens, não são novos: consta, por exemplo, que Platão já havia manifestado essa mesma preocupação em relação às peças de teatro na Grécia Antiga. 

Tais estudos (conhecidos internacionalmente como media violence) dividem-se, grosso modo, em duas linhas ou visões: uma acusatória – normalmente amparada por pesquisas quantitativas –, pela qual a mídia possui a capacidade de incitar a violência em seu público; e outra relativista – normalmente amparada por pesquisas qualitativas –, que afirma não ser possível estabelecer cientificamente uma ligação conclusiva sobre essa relação. 

Uma das coisas que me chamam a atenção é como a questão da violência nos games (e, acredito, fora deles também) costuma ser tratada pelos veículos de comunicação e por boa parte da sociedade: de maneira ingênua, superficial e passional, quando não sensacionalista.

Por trás disso, parece haver o que pesquisadores, como David Gauntlett, chamam de “pânico moral”: ciclos nos quais crenças ou hipóteses predeterminadas sobre os impactos da violência na mídia emergem da própria sociedade e são confirmadas (mais do que efetivamente estudadas e analisadas) por tais estudos acusatórios.

Linguagens e mídias novas e de grande penetração são “eleitas” como uma espécie de “bode expiatório” para explicar a violência e alertar a própria sociedade sobre os efeitos perniciosos propagados por tais formas de expressão.

Após algum tempo, que pode variar entre anos ou mesmo décadas, essa discussão costuma se deslocar de uma determinada mídia para outra, mais nova e em maior evidência. Basta pensarmos que o que ocorre hoje com os games já aconteceu com áreas como a literatura, o cinema, a animação e a televisão, só para citar alguns exemplos. 

Nesse ponto, talvez, toquemos em uma questão geracional. Um adulto que cresceu lendo quadrinhos, ouvindo rock n’ roll, assistindo a desenhos animados e, portanto, construiu sua identidade em contato com tais manifestações culturais provavelmente terá uma visão diferente daquela que o pai dele teve no passado.

Assim, a tendência é que esse indivíduo, ao se tornar pai, estabeleça um comportamento diferente com seu filho em relação àquelas formas de diversão que fizeram parte de sua infância. Todavia, se seu filho se relacionar com uma nova forma de expressão, como os games, é possível que este adulto repita o mesmo ciclo iniciado por seu progenitor, mudando apenas o foco – em vez de condenar os quadrinhos, o rock e os desenhos, verá com desconfiança os games.

Diante do desconhecido, da incapacidade de estabelecer relações além de sua “zona de conforto”, é comum que muitas pessoas adotem uma postura receosa.  Sabemos que a violência é um elemento inerente à espécie humana e que a própria história da humanidade – incluindo aí suas conquistas, suas revoluções tecnológicas, seus grandes impérios e civilizações – pode ser considerada, em grande parte, como a própria história da violência.

Atos extremamente violentos já eram praticados pelo homem muito antes da criação dos games – ainda que em alguns casos, dependendo do contexto social (como no caso de alguns ritos de passagem tribais), não fossem reconhecidos dessa maneira. 

Ao falarmos em violência, é preciso ponderar que esta se manifesta de diferentes formas, não se restringindo a seu aspecto físico, mas atingindo também outros níveis que podem se combinar, como o cultural, o psicológico, entre outros.

Em adição a isso, devemos considerar que a manifestação da violência é considerada resultado de uma série de fatores socioambientais, tais como a desigualdade social, a negligência e a corrupção estatal, a exposição a ambientes hostis, os baixos índices de educação e de oportunidades, entre outros. Se não fosse assim, os índices de violência entre diferentes regiões nas quais os games são populares seriam idênticos.

No entanto, esses números em países como Suécia, Noruega, Dinamarca e Canadá são bem menores do que em países como Brasil, México, Colômbia e Estados Unidos. Alguém poderia argumentar que, nos países considerados desenvolvidos, são cada vez mais comuns os casos que mostram uma triste conjunção entre jovens introspectivos, muitas vezes aficionados por computadores e jogos eletrônicos, cometendo atos de violência contra seus colegas.

Mas esses casos são exceções que se manifestam em situações-limite, envolvendo sujeitos portadores de patologias graves. Ou podemos afirmar que um adolescente “padrão” não sabe a diferença entre apertar “um gatilho virtual” para matar zumbis e apontar uma arma real para um amigo? Acusar os games como os principais responsáveis por uma dessensibilização geral em relação à violência é, no mínimo, uma simplificação grosseira.

Considerando a percentagem cada vez mais alta de crianças, jovens e adultos que jogam games, não estaríamos constantemente expostos a potenciais assassinos em todos os ambientes que frequentamos? Se concordarmos que vivemos uma infantilização generalizada dos adultos, uma dificuldade em impor limites às crianças e um hiperconsumismo na faixa etária dos adolescentes, seriam esses os efeitos do contato com “maus jogos” ou os games seriam produzidos – assim como muitas canções, filmes, brinquedos, livros, programas de televisão – em uma relação dialética com o nosso tempo histórico, influenciando-o e sendo por ele influenciados?

Ao se deslocar a discussão sobre violência para os possíveis efeitos da mídia e ao se generalizar todos os games como violentos, também se restringe a visão acerca de suas características e potencialidades. Assim como o que ocorre com os demais produtos culturais, é possível, sem dúvida, encontrar “vida inteligente” dentro dos games.

Explorando essa outra abordagem, podemos notar sua utilização, cada vez mais fértil e frequente, em campos como as artes e a educação.  Mesmo os games que oferecem o “simples” entretenimento são capazes de estimular o raciocínio, o pensamento lógico, o desenvolvimento da memória, a criação de estratégias, a resposta a estímulos visuais e o aprimoramento de qualidades como a paciência, a disciplina, o (auto)controle, a perseverança, a cooperação e a coordenação fina, entre tantas outras.

Ah, e não nos esqueçamos do principal motivo pelo qual os games fazem tanto sucesso: uma atividade lúdica, na maioria das vezes desinteressada, não obrigatória, capaz de proporcionar diversão para pessoas de diferentes faixas etárias e dos mais diversos perfis. 

 
“Uma das coisas que me chamam a atenção é como a questão da violência nos games (e, acredito, fora deles também) costuma ser tratada pelos veículos de comunicação e por boa parte da sociedade: de maneira ingênua, superficial e passional, quando não sensacionalista”

Sergio Nesteriuk é professor universitário e doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Pesquisa as mais diversas questões relacionadas ao universo dos games e das chamadas “novas mídias” desde 1996

 

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Jogos eletrônicos e violência, um olhar diferenciado desta relação
por Lynn Alves

Os jogos violentos como GTA, Counter-Strike, Carmageddon, Quake, Doom, entre outros enfatizados pela mídia, transformam-se em objetos adorados e odiados pela população. Da mesma forma ocorreu no passado, com brinquedos como o boneco Fofão, criado na década de 1980, que invadiu as casas das crianças de classe média e alta e, logo depois, desapareceu, devido ao boato de que possuía uma carga satânica. As pessoas foram induzidas a jogar fora a cabeça do tal boneco, livrando-se, assim, dos efeitos maléficos que este poderia produzir.

Esse medo de o boneco ganhar vida e se tornar uma forma de ameaça aparece também em filmes como Chuck, o Brinquedo Assassino (1988). Mas seria a violência um fenômeno tão simples de ser analisado? A interação com imagens violentas pode levar os sujeitos a reproduzirem essas cenas no seu cotidiano?

Hoje esse discurso foi atualizado para os jogos eletrônicos considerados violentos, que aparecem na mídia como responsáveis por comportamentos hediondos cometidos por jovens que, supostamente, são influenciados pelo ambiente dos jogos para matar pessoas próximas ou desconhecidas.

Cito o exemplo do massacre que ocorreu em 7 de abril de 2011, na Escola Municipal Tasso da Silveira, localizada no bairro de Realengo, na cidade do Rio de Janeiro. Wellington Menezes de Oliveira, de 23 anos, invadiu a escola armado com dois revólveres e começou a disparar contra os alunos presentes, matando doze deles, com idade entre 12 e 14 anos.

Os jogos digitais e a internet foram considerados pela mídia como possíveis causadores do comportamento hediondo de Wellington Oliveira. A década de 1990 foi marcada por vários massacres, dentre eles, o que ocorreu na escola de ensino médio Columbine, em Littleton, Colorado, em 1999, nos Estados Unidos, onde os adolescentes Eric Harris e Dylan Klebold, hipoteticamente inspirados no Doom (um dos jogos, na época, considerados como mais violentos, tendo sua vendagem inclusive proibida), entram na sua High School e saem atirando friamente nos colegas com quem conviviam diariamente.

Os dois estudantes matam doze colegas e um professor e, depois, cometem suicídio.  Outro caso de atos violentos provocados por adolescentes foi o morticínio na cidade de Jonesboro, no Arkansas, em 1998, quando dois meninos de 11 e 13 anos mataram quatro colegas e uma professora, e, mais recentemente, na escola de ensino médio Gutenberg, com cerca de 700 alunos entre 10 e 19 anos, na cidade de Erfurt – Alemanha, onde um estudante, de 19 anos, mata 18 pessoas (em 26 de abril de 2002) e, depois, também se suicida.

Essas conclusões se mostram muito reducionistas, na medida em que a violência não pode ser compreendida mediante recortes que são convenientes a um ou a determinados grupos.  A análise de fatos como esses, muitas vezes, reduz as causas de uma suposta influência da mídia ou a responsabilidade dos pais que incentivam a utilização de armas de fogo pelos adolescentes. A violência se constitui em um fenômeno complexo que envolve, ao mesmo tempo, questões sociais, econômicas, culturais, políticas e afetivas.

No que se refere à violência na nova geração dos jogos eletrônicos, Levis (1997) pontuou que os games simulam lutas e combates que põem em questão o suposto caráter simbólico da violência nos videogames. O autor também indicou um outro aspecto que não pode ser esquecido: a violência vende. Atualmente, o mercado dos videogames é controlado por grandes empresas e apresentam um significativo crescimento econômico, constituindo-se no maior faturamento na área de entretenimento.

A violência vende por favorecer um efeito terapêutico, que possibilita aos sujeitos uma catarse, na medida em que canalizam os seus medos, desejos e frustrações no outro, identificando-se com o vencedor ou o perdedor das batalhas.  Os adolescentes se tornam consumidores em potencial das imagens de violência e são constantemente seduzidos pelas grandes empresas – que investem em um marketing pesado – a comprar versões diferenciadas dos jogos considerados violentos.

O acesso a esses jogos e a participação neles se constituem em senhas de reconhecimento de grupos dos quais fazem parte. Como afirmou o diretor-gerente da Sega-Ozisoft (distribuidora australiana da Sega), em maio de 1993: O rápido crescimento tecnológico nos últimos cinco anos significou uma melhoria marcante na representação da violência em videogames a ponto de os produtos de lançamento mais recente utilizarem os atores ao vivo para representar papéis dentro de um ambiente de videogame.

Essas tecnologias continuarão a ser produzidas, proporcionando aos produtores e criadores desses jogos maiores possibilidades de lançar produtos que trazem a experiência da fantasia de um videogame para mais perto da realidade (BERMEISTER apud PROVENZO, 2001, p. 169). Essa declaração pode ser lida de duas formas. A primeira confirma que as imagens violentas apresentadas pelos videogames podem potencializar comportamentos violentos.

A segunda leitura pode sinalizar que a violência social, em movimento crescente, repercute nos produtos de entretenimento, na medida em que tais atos permeiam o imaginário e o cotidiano do consumidor/jogador. As duas leituras são reducionistas e acríticas, uma vez que não contextualizam o fenômeno da violência, limitando-se a visões fragmentadas.

Para compreender por que os jogos eletrônicos, os filmes e as imagens violentas atraem os consumidores que buscam cada vez mais viver experiências realistas, é fundamental compreender a violência como um fenômeno que, segundo Minayo (1990 e 1999), resulta de três causas: da violência estrutural, também denominada de violência branca, da delinquência e da violência revolucionária ou de resistência.

No que se refere à questão da violência presente nas diferentes mídias, e em especial nos jogos eletrônicos, ressalto a necessidade de desvelá-la, contextualizando, assim, esse fenômeno que não pode ser compreendido de forma reducionista, mas à luz de diversos campos de saberes.

Lynn Alves, doutora em Educação e Comunicação, é professora titular da Universidade Estadual da Bahia (Uneb) – Campus I – e da Faculdade de Tecnologia Senai Cimatec



"A violência vende por favorecer um efeito terapêutico que possibilita aos sujeitos uma catarse, na medida em que canaliza os seus medos, desejos e frustrações no outro, identificando-se com o vencedor ou o perdedor de batalhas"

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