Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Os verdadeiros amigos da onça

por Francisco Luiz Noel

O dia amanhecia quando a onça-pintada Fujona, fêmea de 16 meses e 58 quilos, deixou para trás a caixa em que despertara pouco antes. Enquanto o felino sumia no verde do cerrado sul-mato-grossense, na bacia do rio Paraná, o sentimento do dever cumprido contagiava os biólogos do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e do Instituto de Meio Ambiente do Mato Grosso do Sul (Imasul), envolvidos desde a madrugada na operação de soltura, em 30 de agosto. Em vez de terminar, porém, a missão só começava: a onça, monitorada por GPS, protagoniza a primeira libertação controlada de uma pintada no Brasil, desbravando um novo horizonte para a conservação do maior felino das Américas.

A história pregressa de Fujona resume a situação de ameaça vivida por um incontável número de pintadas no país, sobretudo no Pantanal e nas regiões de cerrado, caatinga e mata atlântica. Encontrada aos dois meses numa fazenda, órfã de mãe – abatida por caçadores –, a onça havia sido acolhida em julho de 2010 ao Centro de Reabilitação de Animais Silvestres (Cras) do Imasul. Mais forte que as jaulas do local, no Parque do Prosa, em Campo Grande, o felino escapou duas vezes, deixando a cidade em polvorosa. As fugas lhe renderam não só o apelido, mas também, por conta de sua capacidade de viver livre, o direito de voltar de vez à natureza, no que pode vir a ser um caminho aberto a outras pintadas recolhidas em situações semelhantes.

O experimento de soltura de uma onça-pintada, rainha da fauna do Brasil e mito da cultura nacional, quebrou o tabu de que bichos mantidos em cativeiro perdem a capacidade de retornar à natureza. “Esse animal provou, nas duas vezes em que escapou, que era capaz de sobreviver”, atestou após a libertação o biólogo Peter Crawshaw, do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros (Cenap), do ICMBio. O cientista estuda a espécie desde os anos 1970, quando constatou que ela sofria ameaças na região do Parque Nacional do Iguaçu, no Paraná. Fujona, que numa escapulida viveu dois meses na mata em Campo Grande, foi solta em ambiente habitado por outras onças e por presas como tatus, capivaras e veados.

Libertada em lugar não divulgado, para sua segurança, a onça ganhou a mata portando um rádio-colar que emite sinais para um satélite. Graças à tecnologia GPS, seus passos são acompanhados pelos biólogos do Cenap, no município paulista de Atibaia. De seu PC, o coordenador do centro, Ronaldo Gonçalves Morato, monitora o vaivém de 30 pintadas em estudo nos biomas brasileiros, incluída a Amazônia. “Pelos movimentos, vemos o tipo de ambiente que preferem. Nossa prioridade é identificar áreas para a preservação da espécie, pelo papel ecológico que representa, no topo da cadeia alimentar”, explica. A pintada ocupa grandes espaços e, na prática, regula a vida de suas presas e de outras espécies.

Habitat sob pressão

Robusta e musculosa, conhecida em outros países como jaguar, a onça-pintada (Panthera onca) tem seu habitat em áreas cada vez menores, do norte da Argentina ao sul dos Estados Unidos. Metade dos espaços naturais propícios à existência do felino está no Brasil, de acordo com o Instituto Onça-Pintada, uma das organizações não governamentais devotadas à espécie. Adulta, a pintada mede de 1,7 metro a 2,4 metros, incluída a cauda, que mede um quarto de seu corpo. Os machos, mais avantajados, pesam até 130 quilos. Tamanho e peso também têm relação com o meio natural – as onças são menores nas florestas, como as da Amazônia, e maiores em biomas de campo aberto, como a caatinga, o cerrado e o Pantanal.

A pintada é uma das espécies do gênero Panthera, que inclui o leão, o tigre e o leopardo. Entre os outros gêneros da família dos felídeos, há mais sete espécies representadas no Brasil: onça-parda (ou suçuarana), jaguatirica, jaguarundi, gato-maracajá, gato-palheiro, gato-do-mato-grande e gato-do-mato-pequeno. Notívaga e solitária depois de se desgarrar da mãe, antes dos dois anos, a pintada é um bicho territorial, que delimita com fezes, urina e outros sinais a área sob seu domínio, que mede em torno de 50 quilômetros quadrados e pode ser três vezes maior no Pantanal. Os adultos da espécie só se relacionam para a reprodução, comunicando-se por sons intensos e graves, conhecidos como esturros. Da gestação, que dura em torno de cem dias, nascem em geral dois filhotes, com menos de 1 quilo.

Uma peculiaridade da pintada é o desenho da pelagem, com manchas em forma de rosetas sobre fundo que varia do amarelo ao castanho. Embora a maioria dos leigos não perceba, as pintas têm contorno e tons singulares em cada animal, da mesma maneira que cada pessoa possui uma impressão digital. Graças à diferenciação das manchas, os pesquisadores monitoram e contam onças no ambiente natural com dispositivos fotográficos de ativação automática – outra técnica para o estudo desses felinos. Por artes da natureza, nem todas as pintadas são pintadas, pois a Panthera onca tem sua variação melânica – a onça-preta, com pintas menos perceptíveis sobre cor de fundo negra.

Alvo de estudos

Oito anos após a onça-pintada ter aparecido como vulnerável na lista de animais ameaçados do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), o Brasil ainda tem muito a fazer em favor da conservação da espécie. O maior felino das Américas é alvo de cada vez mais estudos, indispensáveis às ações de preservação, mas o tamanho de sua população no país continua sendo uma incógnita, que gera controvérsia entre os cientistas e ambientalistas. De certo, só existe a constatação de que, desde o Descobrimento, as áreas naturais que favorecem a existência da pintada foram reduzidas à metade, por força do desmatamento e do avanço da agropecuária rumo ao interior do continente.

Um dos poucos estudos que arriscam algarismos, do Instituto Onça-Pintada, presidido pelo biólogo Leandro Silveira, calculou em 2008 que a espécie contaria com 55 mil indivíduos no país – 94% na Amazônia. Fora da ONG, não há quem assine embaixo nem falta quem considere os números superestimados. “Não há levantamento específico e nenhuma estimativa é confiável”, diz a ambientalista Cristina Gianni, da ONG Nex, que mantém um criadouro de onças em Goiás. No Cenap, Morato diz que o centro não se pauta por avaliações quantitativas. “Não fazemos estudos em função do número de animais, mas das características dos ambientes favoráveis à onça e das pressões que sofrem”, afirma o cientista, o primeiro a produzir em laboratório um embrião de onça-pintada, em 1998.

O Cenap alerta que a situação da pintada é mais do que crítica na mata atlântica, um dos biomas mais devastados desde a chegada de Pedro Álvares Cabral. No cerrado e na caatinga, a espécie está criticamente ameaçada. “Estimamos que a caatinga não possui mais de 400 animais”, observa Morato. No Pantanal, o felino ainda não está próximo da ameaça de extinção, mas, se nada for feito para preservá-lo, corre esse risco, devido ao surto de desmatamento para a instalação de projetos agropecuários e à caça predatória. A floresta amazônica conserva as melhores condições para a vida livre da onça no país, apesar das pressões sobre seus habitats em áreas como a fronteira agrícola no leste do Pará.

Margens de rios

Uma das conclusões das pesquisas sobre a espécie bate de frente com a proposta de alteração do Código Florestal, em tramitação no Congresso, na parte que reduz as áreas de proteção à beira dos cursos de água. “As onças-pintadas têm grande dependência desses espaços às margens dos rios”, afirma Morato. Outro resultado de estudos sobre a espécie, iniciados nos anos 1990, foi o projeto do Ministério do Meio Ambiente para a criação de uma unidade de conservação dedicada à pintada na caatinga, o Parque Nacional do Boqueirão da Onça, em Sento Sé e mais quatro municípios do norte da Bahia.

Entre as pesquisas acompanhadas pelo Cenap estão as de institutos como o Onça-Pintada e o Pró-Carnívoros. Com projetos nas regiões dos parques nacionais das Emas (cerrado), Serra da Capivara (caatinga) e Viruá (Amazônia), o Onça-Pintada atua também na primeira reserva particular de proteção natural (RPPN) voltada à espécie, na Fazenda Barranco Alto, em Miranda (MS). Outra frente de ação do instituto é a defesa, ao longo do rio Araguaia, de corredores verdes para a circulação das pintadas por unidades de conservação e outros remanescentes de mata nativa em Goiás, Mato Grosso, Tocantins e Pará.

Uma especialidade do Onça-Pintada, exclusiva no Brasil, é a criação de cães para rastreamento do felino, no município goiano de Mineiros. O plantel é de 20 animais. “Os cães, utilizados em capturas, são adestrados para farejar e trilhar onças, que geralmente se refugiam em árvores quando são acuadas. Temos também cães farejadores treinados para auxiliar na localização de fezes de onças-pintadas em campo”, diz Leandro Silveira. Travada em nome da conservação, para procedimentos como a colocação de rádios-colares, a peleja entre cachorros e onças às vezes produz baixas. “Já perdemos alguns cães nessas capturas”, diz Leandro.

Criando pintadas

Único criadouro científico de onças credenciado pelo Ibama, o Nex foi fundado por Cristina Gianni para proteger felinos que, apartados da natureza, não têm condições de seguir os passos da pintada Fujona rumo à vida livre. A ideia surgiu em 2000, quando Cristina saiu chocada do Jardim Zoológico de Brasília, depois de ver as condições precárias em que vivia um macho de onça-parda procedente da serra do Cachimbo, no Pará. Por excesso de bichos no zoo, o animal estava desde 1996 no setor extra – espaço dos zoológicos semelhante às reservas técnicas em que os museus guardam obras fora da vista do público. “Não andava nem saía dali para nada”, conta Cristina. O cativeiro deixou a parda obesa e hipertrofiou suas patas dianteiras.

“A onça fora da natureza é um animal-problema, pela dificuldade de abrigá-la. Os setores extras dos zoológicos e os centros de triagem de animais não estão preparados para receber grandes felinos, que acabam ficando nesses locais por falta de destinação”, observa Cristina Gianni. Quase sempre, os animais são entregues ao Ibama e às PMs ambientais por aventureiros que queriam criá-los para companhia ou venda ilegal. “O problema é que não dão conta de alimentá-los nem de conviver com eles. A onça-pintada, por exemplo, é um predador, seu instinto é perfeito. Não há como domesticá-la”, diz a ambientalista.

A parda que sofria no Zoológico de Brasília, batizada de Pacato, é uma das 20 onças abrigadas em grandes espaços verdes no Nex, onde também vivem pequenos felinos. Das 14 pintadas do plantel, as primeiras a chegar foram Sansão, Dalila e Carlota, com três meses, em julho de 2001, rejeitadas pela mãe no zoo brasiliense. No Nex, numa fazenda no município de Corumbá de Goiás, os animais vivem em espaçosos recintos telados, com árvores, água corrente e abrigos. Quando chegam, passam por tratamento veterinário e por atividades que amenizam traumas do encarceramento em espaços exíguos e de outros maus-tratos.

Sem poder ser solta, por falta de habilidades vitais para a sobrevivência, a maioria das onças do Nex ficará no criadouro até a velhice. “Em liberdade, a onça cuida do filhote por dois anos, preparando-o para viver sozinho. Quando não há esse aprendizado, é quase impossível ao felino sobreviver solto. A lei da selva é a do mais forte”, explica Cristina. “Os animais incapazes de passar por uma tentativa de soltura ficarão conosco até morrer, mas em paz, longe de caçadores.” Alguns poderão, porém, ir para zoos ou outros locais. Em 2009 e 2010, uma onça do Nex foi adotada pelo Jardim Zoológico de Uberlândia (MG) e outra pelo Instituto Onça-Pintada.

Algumas onças terminaram no Nex órfãs de mães mortas em propriedades rurais. Com o avanço da pecuária sobre seus habitats, sobretudo no centro-oeste, as pintadas acabam incluindo em sua dieta o gado, para prejuízo dos fazendeiros. “Recebemos filhotes tirados da barriga da mãe, morta em um momento de vulnerabilidade, como a hora do parto”, conta Cristina Gianni. “Uma de nossas onças-pintadas, Brutus, foi encontrada com o cordão umbilical pela polícia ambiental e entregue a um casal de Goiânia. A mulher tinha um bebê e não viu outra saída para a oncinha a não ser amamentá-la também no peito. Brutus ficou com uma sequela comportamental: diante de estranhos, mama na própria perna. Os humanos viraram uma referência maternal para ele.”

Experiência bem-sucedida para apaziguar em favor da conservação o conflito entre pintadas e pecuaristas foi desenvolvida pelo Instituto Onça-Pintada e pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) em 11 fazendas do Pantanal, de 2002 a 2004. Durante a campanha, denominada Onça-Social, cada boi abatido pelo felino foi pago, em troca do compromisso dos fazendeiros de não matar onças. Juntando educação ambiental com assistência médica e odontológica a 242 empregados das propriedades, o Onça-Social indenizou a morte de cem cabeças de gado. “Os resultados demonstram que é viável o manejo do conflito entre onças e pecuaristas em escala local”, diz o presidente do instituto, Leandro Silveira.

Desenhos rupestres

A onça-pintada exerce assombro e fascínio em terras americanas desde épocas remotas. “No Brasil, os mais antigos registros são de desenhos rupestres em cavernas e paredões, como os da serra da Capivara, no Piauí, que datam de pelo menos 10 mil anos”, assinala o pesquisador Evaristo Eduardo de Miranda, que lançou em 2010, com a jornalista Liana John, o livro Jaguar: O Rei das Américas (editora Metalivros). Além de apresentar a situação atual da pintada, eles usaram imagens de pinturas, objetos rituais e utilitários, esculturas e indumentárias para mostrar como o medo e a reverência diante do felino sempre se misturaram entre os indígenas.

A cultura popular também é farta em representações da pintada. No nordeste, ela é assídua nos versos da literatura de cordel, aparecendo como bicho ardiloso e feroz às voltas com o veado, o bode e caçadores destemidos, além de ser associada à figura feminina. Um dos sucessos de bandas de pífanos como a de Caruaru é A Briga do Cachorro com a Onça, em que os instrumentos reproduzem ganidos e rugidos da peleja imaginária entre os dois. Associada à mulher, a onça frequenta com destaque a literatura de autores nordestinos como o paraibano Ariano Suassuna, aparecendo em obras como o Romance d’A Pedra do Reino e O Rei Degolado nas Caatingas do Sertão: Ao Sol da Onça Caetana.

A representação da pintada no mundo dos escritores e poetas é destacada por Miranda. “Temos toda uma presença da onça na literatura, como nas Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, na Vila dos Confins, de Mário Palmério, e em escritores como Euclides da Cunha e Guimarães Rosa. Ela aparece em poemas de Carlos Drummond de Andrade e em músicas de compositores como Catulo da Paixão Cearense e Alceu Valença.” O felino figura ainda no título de disco do sanfoneiro Sivuca, Onça Caetana, que inclui a música de mesmo nome. A canção foi gravada também pela cantora nordestina Marinês.

Nas artes gráficas, a alusão ao felino marcou época na revista “O Cruzeiro”, que lançou em 1943 o Amigo da Onça, charge semanal do desenhista Péricles de Andrade Maranhão. Olhos grandes, casaca branca e gravata-borboleta, o personagem ficaria célebre por colocar os interlocutores em situações incômodas. Péricles se inspirara numa piada ouvida em Pernambuco sobre uma conversa entre caçadores. Um deles contava bravatas sobre como abateria uma onça e, quando o outro lhe indagou como faria se não tivesse arma, respondeu com uma pergunta: você é amigo meu ou da onça? Nos quadrinhos, o animal foi homenageado pelo desenhista Ziraldo na Turma do Pererê, integrada pela onça-pintada Galileu.

A pintada não tem levado a melhor, porém, na publicidade. Nos anos 1960, nos primórdios da televisão no Brasil, foi desdenhada como garota-propaganda de gasolina pela Esso, que importou a figura do tigre, gigante asiático também do gênero Panthera. Nos anos 1980, a onça apareceu na telinha sendo passada para trás por três sacis que estrelavam desenhos animados do Banco Econômico. Depois de levar uma corrida da pintada, o trio abriu uma caderneta de poupança, juntou dinheiro e construiu uma sólida moradia na grimpa do arvoredo. Fora do alcance do felino, os sacis passaram a provocá-lo de longe, gritando em coro: “Dona Onça!” Nos anos 1990, a imagem da onça ganhou circulação nacional nas cédulas de R$ 50, mas ela acabou suplantada pela garoupa, figurada nas notas de R$ 100.