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A busca da terra sem males

por Paulo Hebmüller

No ótimo Duas Vezes Junho, romance do argentino Martín Kohan publicado no Brasil em 2005, o narrador confessa sua ignorância quanto à origem do termo quilmes: sabia que havia uma localidade no sul do país com esse nome, e que além disso “era um time de futebol de camiseta branca e preta, e uma cerveja que a maioria das pessoas gostava mais do que da Bieckert”. Só depois descobriu que os quilmes eram índios do norte da Argentina que haviam sido trasladados, à força e a pé, para uma região em que o frio e a umidade dos invernos lhes eram desconhecidos, o que contribuiu para sua destruição. “Foi assim que pereceram, todos sem exceção, os índios quilmes. A cidade, porém, agora levava o nome deles, para que não se perdesse de todo sua memória, e esse nome passou da cidade para a cerveja e depois para o time de futebol, de maneira que ninguém podia ter deixado de ouvir falar deles pelo menos uma vez na vida”, conclui o personagem, um jovem recruta que serve ao exército durante a última e sangrenta ditadura militar do país vizinho.

Sigamos no sul, agora do Brasil: é lá que um jovem cacique de apenas 25 anos ecoa as palavras do romance. “Aqui tem hotel, restaurante, posto de gasolina, tudo isso usando o nome Guarani, mas não tem nenhum guarani que fale por nós”, diz Ariel Ortega. “Falam muito do passado. O guarani só tem valor na história, não na atualidade. Muitos vivem na beira da estrada, sem aldeia.” Séculos de contato com os brancos alteraram em muito o modo de vida desses índios, mas não redundaram em seu extermínio, como no caso dos quilmes. Ao menos no futebol, uma semelhança se manteve: vários times brasileiros usam o nome indígena – como o Guarani de Campinas (SP), de apelido Bugre. Há outros espalhados pela América do Sul.

Ortega se tornou cacique há pouco mais de dois anos da Aldeia Alvorecer, ou Tekoá Koenju, na língua mbyá-guarani. A aldeia fica a cerca de 30 quilômetros do centro do município de São Miguel das Missões, no noroeste do Rio Grande do Sul, perto da fronteira com a Argentina. A cidade abriga o sítio arqueológico da velha redução de São Miguel Arcanjo, fundada em 1687. As ruínas de sua monumental igreja, erguida entre 1735 e 1744, todos os dias atraem levas de turistas que fotografam incansavelmente o mais preservado e impressionante conjunto arquitetônico a testemunhar a grandiosa epopeia das missões jesuíticas dos séculos 17 e 18.

No auge, calcula-se que de 8 mil a 10 mil guaranis viviam na redução. Hoje, os poucos índios que circulam pelas ruínas concentram-se do lado de fora do pequeno museu que abriga peças remanescentes da refinada arte missioneira, como imagens talhadas em madeira e pias batismais e altares esculpidos em pedra. Na varanda, ao redor dos lençóis simples em que expõem para vender o artesanato produzido na aldeia, os descendentes dos habitantes que já ocupavam essas terras séculos antes da chegada dos europeus ouvem dos turistas perguntas como: “Vocês são daqui mesmo?”

Bichinhos que seduzem

Os guaranis, de fato, são daquele lugar, aonde chegaram após longas migrações – uma das características desse povo, como se verá adiante. E é de lá também que, utilizando tecnologia, estão falando com a própria voz, num esforço para diminuir o desconhecimento sobre sua cultura.

Esse é um dos objetivos dos filmes produzidos pelos mbyás-guaranis em parceria com a ONG Vídeo nas Aldeias (www.videonasaldeias.org.br), de Olinda (PE). Depois de participar de oficinas para aprender a filmar e editar, Ortega virou um realizador. Seu primeiro trabalho, Mokoi Tekoá Petei JeguatáDuas Aldeias, uma Caminhada, finalizado em 2008, mostra situações do cotidiano da Alvorecer e de uma aldeia em Porto Alegre.

Alguns trechos do filme apresentam moradores da Alvorecer caminhando pelas ruínas de São Miguel e comentando sua situação: “Por aqui andaram nossos parentes, mas os brancos tiraram tudo da gente e se apropriaram dessas ruínas”, diz um guarani. “Os brancos brigaram por causa disso. Se a gente tomasse de volta, certamente nos matariam de novo”, completa.

Noutra parte, uma velha índia comenta, enquanto faz cestos de palha, que “os deuses já sabiam que a gente ia precisar vender artesanato, que as matas iam se acabar. Então, por isso, os deuses nos deram essa habilidade de seduzir os brancos com bichinhos de madeira, que a gente vende, e não morre de fome”. A permissão para comercializar as peças é relativamente recente e não foi concedida sem luta. De acordo com Ortega, os guaranis dos sítios missioneiros na Argentina e no Paraguai ainda não conquistaram o mesmo direito. O artesanato, no qual praticamente toda a comunidade trabalha, é a principal fonte de renda da Alvorecer, mas os índios também ganham dinheiro cobrando, em alguns casos, pela visita à aldeia. Quem quiser conhecê-la precisa conversar primeiro com o grupo que estiver vendendo as peças.

Espiritualidade e reflexão

“Nossa religião é que nos mantém fortes. Temos mais de 500 anos de contato com os brancos e ainda não perdemos nossa cultura. Acho que a espiritualidade foi o principal para isso”, afirma o cacique. Uma imersão nessa espiritualidade é o tema do novo DVD Bicicletas de Nhanderu, de 48 minutos de duração, produzido por Ortega e sua esposa, Patrícia Ferreira Keretxu. O título faz referência ao deus Nhanderu, “o pai verdadeiro” na religiosidade guarani. A aldeia se esforça para preservar essa tradição. Neste ano foi inaugurada a nova opy, a casa de oração, onde são realizados rituais como a purificação de sementes e o batismo das crianças. Ortega conta que volta e meia aparecem pastores evangélicos querendo trabalhar na comunidade, o que não é permitido. “Isso está acontecendo muito com outras etnias, como entre os cuicuros do Alto Xingu. Quando a espiritualidade fica em dúvida, nunca mais volta”, afirma.

O cacique diz que os DVDs são uma ferramenta para mostrar a visão dos índios a respeito da própria realidade, em contraposição à postura de apenas assistir a documentários produzidos por brancos. “Mas também fazemos para nós. É um espelho para a gente refletir alguma coisa nossa”, explica. Na casa de cultura, construída em alvenaria em formato de um grande iglu, logo na entrada da aldeia, estão abrigados vários equipamentos, como câmeras e ilhas de edição, cedidos pela ONG à comunidade. É na varanda dessa casa que Ortega e Patrícia conversam com a reportagem, enquanto outros jovens da aldeia se divertem assistindo, em traquitanas tecnológicas como smartphones ou TVs digitais portáteis, a vídeos gravados com crianças guaranis. Pelo chão de terra, ciscam em incessante vaivém galinhas cercadas de pintinhos, e os cachorros se espalham preguiçosamente pelos cantos.

A evocação do passado glorioso e guerreiro – palavra à qual se relaciona, aliás, o significado do termo “guarani” – está presente em muitos elementos culturais e referências simbólicas na região missioneira. Basta dizer que qualquer pessoa que toma o frio tererê paraguaio ou o quente chimarrão no sul do continente está dando testemunho da herança guarani. Se inicialmente os jesuítas combateram o cultivo da erva-mate, associada a rituais religiosos indígenas malvistos pelos padres, mais tarde acabaram se dobrando ao gosto poderoso da erva e à sua vocação de ser tomada em grupo.

O reconhecimento da riqueza cultural da região vem crescendo desde que o conjunto arquitetônico de São Miguel foi declarado pela Unesco Patrimônio Cultural da Humanidade, em 1983. Índios mesmo, no entanto, são poucos os que se veem pelas ruas dos municípios missioneiros. Quando aparecem, exibem em sua maioria sinais evidentes de pobreza e de uma vida à margem.

O lugar de Nhanderu

Todo o caminho que separa a sede do município de São Miguel da Aldeia Alvorecer é percorrido numa estreita estrada de terra margeada por cercas de arame que delimitam grandes propriedades rurais. A soja é a cultura quase onipresente, e aqui e ali há pastagens onde o gado se alimenta tranquilamente. O contato maior da aldeia se dá com a vizinhança de pequenos agricultores de um assentamento de reforma agrária. Com os grandes fazendeiros, a relação é mais acidental e acidentada. As crianças, especialmente, cruzam as cercas para pegar frutas, mas essas “visitas” não são bem-vindas. “Tem conflito com os fazendeiros e capatazes que matam cachorro da aldeia”, conta Ortega. “O guarani é um povo que está sempre circulando, para ele não há essa limitação de cerca. Para os mais antigos isso não existia. Os jovens já a conhecem.”

De fato, a expansão dos grupos que viriam a se constituir como guaranis teria começado entre 2,5 mil e 2 mil anos atrás, partindo da Amazônia ocidental. Esse movimento muitas vezes se deu de forma belicosa, com expulsão ou submissão de outros grupos que ocupavam os mesmos territórios. Da região amazônica os deslocamentos chegaram até as bacias dos rios Paraguai e Paraná. A disposição para a itinerância e a migração pode ser associada ao mito da busca pela “Terra sem Males” (yvy marãeý), utopia sempre presente na cultura guarani. Mesmo ocorrendo por razões como o esgotamento da terra ou conflitos com outros grupos, os êxodos sugerem a procura de um novo local em que a vida voltasse a ser plena, abundante e pudesse ser celebrada em alegria por todos – “o lugar de Nhanderu, onde tudo é bom”, segundo a definição colhida por um antropólogo.

Nas últimas décadas, grupos têm cruzado fronteiras para se estabelecer em lugares em que as condições sociais e econômicas lhes sejam mais favoráveis. A Fundação Nacional de Saúde (Funasa) e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), ligado à Igreja Católica, estimam que hoje vivam cerca de 50 mil guaranis no Brasil, 80% deles em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Os principais grupos são os mbyás, os caiovás e os nhandevas.

Padres e bandeirantes

A saga jesuítico-guarani dos séculos 17 e 18 recebeu referências elogiosas de contemporâneos como Montesquieu e Voltaire. Nas últimas décadas, a disputa retórica e ideológica sobre seu legado vem alimentando um acirrado debate. Há correntes que defendem, na esteira da tese do abade suíço Clovis Lugon, que o projeto concretizou uma utopia “comunista-cristã”, enquanto para outros foi de fato o primeiro Estado teocrático da história. O francês Jean Lacouture, em seu caudaloso Os Jesuítas (L&PM, 1994), diz que os espanhóis fizeram “o remodelamento autoritário, em primeiro lugar, de uma paisagem, e por meio dele de um povo, finalmente, de uma visão de mundo”.

Segundo o historiador gaúcho Moacyr Flores, o empreendimento jesuíta fazia parte do projeto colonial da Coroa espanhola: o território pertencia ao rei e todos os índios eram seus vassalos, devendo inclusive pagar uma espécie de imposto ao tesouro real e prestar serviço de milícia contra os portugueses. Vale lembrar que boa parte do território hoje pertencente ao Brasil era espanhol na época, de acordo com o Tratado de Tordesilhas, assinado em 1494. Os discípulos de Inácio de Loyola nessas terras, portanto, eram ao mesmo tempo soldados de Cristo e servos do rei.

Uma das interpretações do termo espanhol reducir é “reagrupar”, e essa seria a origem da palavra “redução”, pois entre as funções dos povoados estava reunir e fixar os guaranis, tradicionalmente itinerantes. Logo nas primeiras décadas de colonização do continente, as ordens religiosas criaram redutos exclusivos para indígenas. Os padres eram contra o sistema então vigente de encomienda, pelo qual os colonos espanhóis impunham trabalhos forçados aos índios, e essa era uma das razões para reduzi-los. O esforço de conversão feito pelos religiosos favoreceu também uma nova forma de ocupação estratégica e a fundação de povoados nas colônias.

As primeiras reduções na então Província Jesuítica do Paraguai foram fundadas em 1609. Essa etapa teve seu fim com os ataques dos bandeirantes paulistas, como Raposo Tavares, que caçavam os guaranis para trabalhar como escravos principalmente nas regiões produtoras de açúcar. Os bandeirantes levavam em suas tropas índios tupis aliciados para lutar a seu lado. Na década de 1630, os guaranis remanescentes dos ataques das bandeiras se deslocaram para regiões da Argentina e do Paraguai. Um episódio épico dessa migração foi o êxodo coordenado pelo jesuíta Ruiz de Montoya, que levou cerca de 10 mil índios em 700 barcas e balsas a atravessar as corredeiras dos rios Paraná e Iguaçu, passando inclusive pelas Sete Quedas. Cerca de 2 mil índios morreram na travessia, e outros 4 mil preferiram dispersar-se pelas matas.

Em 1641, organizados e armados com a permissão dos jesuítas e da Coroa espanhola, os guaranis impuseram uma grande derrota aos bandeirantes na batalha de M’Bororé, no leito do rio Uruguai. A expulsão dos invasores contribuiu para criar as condições para a segunda fase das Missões, integrada por 30 reduções, incluindo os Sete Povos situados no Rio Grande do Sul.

E veio a guerra

O projeto missioneiro atingiria o auge nas 11 décadas seguintes, em que os índios reduzidos viveram sob uma rígida disciplina, uniforme em todos os assim chamados “povos”, do mesmo modo que seu projeto urbanístico: o desenho era uma espécie de tabuleiro, com ruas ocupadas pelas moradias coletivas dos índios. A igreja dominava o cenário, e à frente dela ficava uma praça aberta. O sino soava antes do nascer do sol e o dia se iniciava com a celebração da missa. Depois do desjejum, as crianças iam para a aula e os adultos trabalhavam em diversas oficinas nas quais produziam de pão e roupas a tijolos e instrumentos musicais; de canoas e ferramentas a artefatos de ferro fundido, como sinos para as igrejas. Também havia a lavoura coletiva, a tupambaé, e o cuidado do gado e dos cavalos. Depois do almoço, vinham as aulas de música e de latim e o trabalho na amambaé, a lavoura familiar.

A paz e o progresso econômico que o apogeu missioneiro conheceu ao longo de mais de um século foram quebrados com o Tratado de Madri, em 1750. O acordo determinava que Portugal entregaria a Colônia de Sacramento – fundada em 1680 às margens do rio da Prata, em território do atual Uruguai – em troca de áreas então de domínio espanhol e que incluíam a região dos Sete Povos. Os jesuítas e os guaranis foram intimados a se mudar em seis meses para a outra margem do rio Uruguai. A revolta dos índios, que se recusaram a fazer um novo êxodo, deixando para trás tudo o que haviam construído, além de suas lavouras e o gado, levou à Guerra Guaranítica. Estima-se que, na época, cerca de 30 mil guaranis estavam reduzidos nos Sete Povos.

Portugal e Espanha reuniram milhares de homens em suas tropas para, a partir de 1752, expulsar os índios e demarcar as novas fronteiras. Em fevereiro de 1756, Sepé Tiaraju, líder de São Miguel, foi morto e saiu da vida para se transformar em lenda. A frase “Esta terra tem dono”, que Sepé teria dito aos comandantes dos exércitos reais, virou lema gravado na memória missioneira. Os guaranis foram definitivamente derrotados em maio daquele ano, depois de massacres como o de Caiboaté, quando cerca de 1,5 mil índios morreram. Novos movimentos de colonização, pilhagens, destruição e esquecimento soterraram uma história que só em meados do século 20 voltou a ser valorizada e recontada.

Essa odisseia é retratada em filmes como A Missão, do inglês Roland Joffé (1986), e República Guarani, do catarinense Sylvio Back (1981). Na literatura, um dos nomes mais famosos a dar vida em seus escritos a personagens vindos das Missões foi Erico Verissimo. Uma redução é um dos cenários de O Continente, primeira parte da monumental trilogia O Tempo e o Vento. De lá parte o guarani Pedro Missioneiro, que terá um filho com Ana Terra – semente da linhagem central da trilogia, os Terra Cambará.

Integração

A Alvorecer é exemplar de uma característica da vida atual dos guaranis: a concentração em comunidades relativamente pequenas. Nos 236 hectares da aldeia vivem pouco mais de 40 famílias, ou cerca de 210 pessoas. A área foi comprada pelo governo do estado e cedida em 2001. As casas são simples, de madeira, erguidas pelos brancos – “mas foram mal construídas, as telhas caem, as portas não são boas”, diz Ortega. Os mais velhos, porém, preferem ficar nas habitações tradicionais, de taquara e barro. “Sempre que vem uma tempestade, eles ficam na moradia tradicional porque se sentem mais protegidos lá.”

Os cultivos de subsistência resistem em pequenas roças de mandioca, feijão, melancia e batata-doce. O milho, elemento importante da cultura guarani, também está presente. Os índios mantêm o costume de pescar e de caçar animais como capivara e tatu, mas não podem abrir mão de comprar alimentos industrializados. Sobre a caça, os arcos e flechas expostos para venda nas ruínas motivam outras perguntas, digamos, pitorescas dos turistas, que fazem pequenas pausas em sua faina fotográfica para questionar os guaranis: “Vocês caçam com flechas de verdade? Como se brinca com isso?”

Os núcleos familiares permanecem juntos, e todos – os irmãos maiores, os avós, os demais parentes e vizinhos – se responsabilizam pela criação dos pequenos. Nos primeiros anos de casamento, o jovem deve morar com a esposa na casa da sogra, e pode até permanecer por lá indefinidamente. É o “estágio” pelo qual passa Ortega, que vive há três anos com Patrícia Keretxu. Desde 2003 a jovem de 24 anos é professora bilíngue de português e guarani na escola indígena da aldeia, que funciona para as quatro séries iniciais e é mantida pela Secretaria de Educação do estado. Lecionar aos cerca de 40 alunos “é uma tarefa importante e difícil”, considera a jovem. A rotina escolar dos guaranis tem suas peculiaridades. No verão, há intervalos durante as aulas para as crianças se refrescarem na lagoa.

Além da escola, outro serviço público é mantido na Alvorecer pelo posto da Funasa – mas a “relação médico-paciente” também tem seus problemas. Os índios procuram primeiro o pajé e, quando acabam indo ao posto para fazer consultas e pegar remédios, não seguem exatamente as prescrições das receitas. Isso é fruto, em parte, de uma visão de mundo em que a acumulação não é um conceito valorizado, como entre os brancos. “O guarani acha que precisa consumir o que tem, então muitas vezes acontece o uso excessivo de medicamentos”, explica Ortega.

Esse é apenas um dos desencontros devidos ao fato de as culturas pouco se conhecerem, apesar dos mais de 500 anos de contato. “Em todas as áreas o governo e os brancos separam muito as coisas. Por exemplo: uma coisa é a saúde, outra é a educação, outra é o meio ambiente etc. Para nós não é separado, é tudo junto. Aí o governo vem, de forma muito assistencialista, mas não conhece nossa cultura e falta preparo”, diz o cacique.

Aos poucos, novos passos de integração vêm sendo dados. No último verão, servidores do Museu das Missões e do Escritório Técnico do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) passaram um dia na aldeia com suas famílias. Na programação, brincadeiras envolvendo as crianças guaranis e os filhos dos funcionários, além de jogos de futebol entre os servidores e os índios. Pequenas aproximações que, junto com o esforço de utilizar as ferramentas da tecnologia para difundir a cultura guarani, podem ajudar a evitar perguntas constrangedoras para os dois lados num dos cenários mais significativos para a história do encontro de diferentes mundos realizado no Brasil.


O difícil resgate do passado

Funcionário da Secretaria de Turismo de São Miguel das Missões desde 1990, Valter Braga, de 44 anos, trabalha ao lado do sítio arqueológico, mas sua grande motivação é o projeto ao qual vem se dedicando nos últimos anos: o recolhimento de peças da época em que a redução de São Miguel Arcanjo estava ativa.

“É um testemunho de nossa história que está sendo ocultado dos olhos da humanidade”, lamenta Braga, nascido e criado em São Miguel. Ainda guri, conta ele, acostumou-se a ver peças ligadas ao passado missioneiro nas residências das famílias de parentes e amigos – de pedras ou fragmentos de cerâmica a utensílios domésticos e artesanato.

Para poder juntar peças remanescentes e exibi-las na Exposição da Cultura Missioneira, ele criou um projeto de educação patrimonial ligado à secretaria onde trabalha e ao Iphan. As primeiras doações foram recebidas em 2004, mas, até que seu sonho se concretize (“nosso objetivo é que isso fique exposto para que se conheça quem fundou a comunidade”, diz), são vários os obstáculos. Um deles é que muitas famílias não querem doar as peças, alegando que são herança de gerações. Outras só aceitam vender o material – e aí faltam recursos ao abnegado Braga, que mesmo assim já fez algumas compras com dinheiro do próprio bolso.

A exposição por enquanto ocupa uma construção inacabada e improvisada, onde parte do acervo já pode ser vista. “Temos muitas peças não expostas, por questão de segurança”, explica o servidor. É por isso que a maior parte dos itens exibidos é mais representativa das peculiaridades da cultura da região missioneira – que mistura elementos do período jesuítico-guarani com outros do gauchismo e da posterior colonização europeia, em especial alemã e polonesa – do que propriamente do tempo das reduções. Buscar recursos para permitir a compra de peças e a conclusão da obra é um dos itens permanentes da agenda de Valter Braga.