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Os dois brasis

A realidade é uma só, mas a magia dos números pode levar a retratos bem diversos

OSWALDO RIBAS

Escolha o Brasil de sua preferência: o país dinâmico, emergente, potência comercial global com níveis de desemprego e inflação de Primeiro Mundo, ou a nação pobre, subnutrida, com uma das maiores taxas de desocupação mundial, a caminho da recessão e à beira da explosão social. Embora o país seja um só, a interpretação da realidade econômica e social nacional, a partir de dados estatísticos de entidades privadas e oficiais, pode mudar conforme o gosto do freguês.

Para a equipe econômica do governo, por exemplo, a melhor notícia é quando o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE, anuncia que a economia nacional está próxima do pleno emprego, com níveis de desocupação em torno de 6% da população economicamente ativa. Para sindicalistas e partidos de oposição, no entanto, o maior trunfo político é quando o Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Sócio-Econômicos (Dieese) divulga sua própria pesquisa sobre o mercado de trabalho e descobre que quase um quinto da população em idade ativa está sem emprego (ver texto abaixo). Em um e outro caso, os dados estatísticos contribuem para justificar políticas econômicas e sociais por parte do governo, ou estratégias da oposição interessada em assumir o poder. Se o pleno emprego é real, então a política econômica está no caminho certo e cumpre seus objetivos sociais. Por outro lado, se um quinto da população não encontra vagas no mercado de trabalho, então o governo ou tem de mudar radicalmente sua política, ou tem de ser substituído por outro.

Quem está com a razão? Para complicar um pouquinho mais as coisas, se pode dizer que tanto os números da oposição como os da situação podem estar corretos. A chave do mistério está na metodologia utilizada em cada pesquisa, no universo dos entrevistados, no período abrangido pelos questionários e, principalmente, na leitura das informações coletadas. Os dados podem estar absolutamente certos do ponto de vista quantitativo, mas ao ser generalizados dão margem a juízos de valor e vieses que muitas vezes podem distorcer o resultado da pesquisa.

"Quando a realidade não bate com os interesses, então o jeito mais fácil é retocar os fatos", diz José Tiacci Kirsten, professor da Faculdade de Economia da Universidade de São Paulo, membro do Conselho Curador da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) e presidente do Instituto Data Kirsten de Pesquisa, Projetos e Programas. Estudioso veterano da selva de números que tomou conta do Brasil, Kirsten - ele próprio produtor de cenários políticos e econômicos para os clientes de sua empresa - costuma dividir as manipulações estatísticas em dois grupos: as brancas e as negras. Por brancas, Kirsten entende "o jeitinho" de retocar o cenário que a pesquisa pretende fotografar.

Para ilustrar, ele contou o caso de uma pesquisa oficial que antes de medir o Índice de Preços ao Consumidor (IPC) no Rio de Janeiro, onde o feijão-preto tinha um peso de destaque, esperou chegar toneladas do produto trazidas do Rio Grande do Sul. Com a abundância de oferta, o preço do feijão desabou e, com ele, o IPC fluminense ficou bem menor. "Ou seja", diz Kirsten, "a pesquisa de preços estava correta, só ficou oculta a operação artificial que adulterou as forças do mercado."

Por manipulação negra, o especialista classifica o expurgo puro e simples dos dados. Neste caso - que ele diz ser menos freqüente, mas que muitas vezes ajudou governos a manter ou alterar planos econômicos - dois exemplos são citados: a célebre tungada da inflação de 1973, quando o então ministro da Fazenda era o deputado Delfim Netto. Nessa ocasião, desapareceram dez pontos percentuais do IPC. De 24%, a taxa caiu para 14%, provocando reajustes menores dos salários. Outro caso grotesco de manipulação, que contribuiu para difundir a idéia de que o Brasil "não era um país sério", veio pelas mãos da equipe econômica do então presidente José Sarney. A manipulação da balança comercial no segundo semestre de 1986 procurou ocultar da opinião pública o fato de que o Plano Cruzado naufragava.

O objetivo, claro, era garantir a reeleição para o partido do governo em eleições gerais para os governos estaduais.

"Manipulações de dados estatísticos com fins políticos sempre ocorreram no Brasil, pode-se dizer que desde que dom João VI por aqui aportou", ironiza Kirsten. "É tema até de tese de mestrado para algum estudante de Economia", brincou. Da mira de Kirsten também não escapou a mídia brasileira. Jornais, revistas, TVs e rádios foram considerados por ele "pouco críticos". Para o especialista, os noticiários diários engolem as histórias oficiais, que não raro também viram manchetes de edições dos grandes jornais, sem se preocupar, segundo ele, com a checagem dos fatos.

Menos histórico e mais contemporâneo, Newton Rosa, economista e coordenador técnico da MCM Consultores, empresa especializada em acompanhar dados macroeconômicos para clientes do mercado financeiro, lembra a confusão recente com dados da balança comercial brasileira. No episódio que emergiu em setembro passado e que foi chamado de "mal-entendido" pelo secretário da Receita Federal, Everardo Maciel, o país descobriu ter importado quase US$ 1 bilhão a menos do que o volume registrado pelo Sistema Integrado de Comércio Exterior (Siscomex), durante o primeiro semestre do ano. Em um período em que os números sobre a balança comercial brasileira tornaram-se o grande calcanhar-de-aquiles do Plano Real, a imprecisão de dados no setor, ainda mais dessa magnitude, é, segundo Rosa, "no mínimo inaceitável". Ele, contudo, vê com otimismo o futuro dos dados macroeconômicos nacionais: "Atualmente, diante do grande interesse internacional pelo Brasil, os órgãos oficiais são obrigados a divulgar estatísticas cada vez mais confiáveis e mais transparentes, o que dificulta transgressões".

Rosa, que acredita que o grau de desenvolvimento econômico ou social de um país pode ser medido pela rapidez e fidelidade com que são divulgados seus dados estatísticos, acha que o Brasil vive um período de transição onde há um esforço em direção à modernização. Ele, no entanto, critica o atraso da divulgação das contas nacionais, que ainda hoje obedecem a critérios muito lentos e imprecisos. "Estamos no final de 1997 e ainda não se sabe qual foi o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro de 1996", diz ele. "Empresas, investidores e o próprio governo são obrigados a realizar projeções grosseiras com base em dados ultrapassados, numa falha que também dá margem a vários tipos de interpretações equivocadas sobre a riqueza nacional como um todo e de cada um dos brasileiros."

Enquanto o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), órgão da Secretaria do Planejamento, prevê para 1997 um crescimento do PIB da ordem de 4%, e institutos privados de pesquisa, como a respeitada Fundação Getúlio Vargas (FGV), projetam avanços de 2% a 3%, a maioria dos economistas duvida da própria consistência desse indicador. "Para começar, a avaliação do ritmo de crescimento de áreas dinâmicas da economia, como a do setor financeiro, é feita a partir do número de empregados, quando se sabe que, graças à informática e às atuais agências virtuais, os bancos quase não precisam mais de funcionários", explica Rosa. "O fato de o setor bancário estar dispensando mão-de-obra e, ao mesmo tempo, estar multiplicando a eficiência e a produtividade de seus serviços mostra a falência do processo de medição do PIB em um componente tão importante como o dos bancos."

Enigma do PIB

Mas as dificuldades para entender e aceitar as contas nacionais não param aí. Por ser um país que passou por um longo período hiperinflacionário, ter mudado de moeda várias vezes - o cruzado em 1986, o cruzado novo em 1989, o cruzeiro em 1990 e o real em 1994 (precedido pela URV) -, o Brasil ostenta um PIB suspeito para os padrões internacionais. Os números mostram distorções violentas quando submetidos às conversões cambiais e levam à insegurança em relação a dados básicos para a compreensão do cenário econômico-social nacional, como, por exemplo, a renda per capita.

É pela renda per capita que a afluência ou pobreza de um país é medida por organismos multilaterais de crédito como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Bird (Banco Mundial). Dela dependem as condições com que as linhas de crédito dessas instituições são oferecidas: os privilégios nas taxas de juros e demais programas de incentivo ao desenvolvimento. Saber se o país é pobre, rico ou está em um estágio intermediário é, portanto, fundamental para a nação se entrosar na comunidade financeira internacional. E o Bird, em relatórios, já se queixou da dificuldade em medir a riqueza brasileira, até pela "exuberante economia informal", que passa ao largo das contas oficiais.

O Brasil conta sua riqueza usando dois métodos principais. Pelo critério do PIB em reais, expresso em preços correntes pelo IBGE, o PIB brasileiro em 1996 (numa versão preliminar) foi estimado em US$ 778,8 bilhões, ou US$ 4,94 mil per capita. Para 1997, se fosse mantida a expectativa de 4% do Ipea, o valor total de produtos e serviços da economia brasileira ascenderia para US$ 810 bilhões e o PIB por habitante passaria para US$ 5,13 mil. Esses dados, que aparentemente refletem uma dinâmica economia emergente, conflitam, no entanto, com os números divulgados, não por órgãos da iniciativa privada, mas pelo próprio Banco Central (BC). A metodologia usada pelo BC mede o PIB tendo por base o valor da moeda nacional em relação ao dólar de 1985, e não em preços correntes, como é a do IBGE. Esse "pequeno detalhe", num país de tumultuada história cambial, significa, na ponta do lápis, uma diferença para menos de 24,7%. Ou seja, guardadas as mesmas previsões de crescimento, o PIB do BC fecharia 1997 em torno de US$ 610 bilhões e a renda per capita nacional cairia para US$ 3,8 mil.

A recente crise dos mercados financeiros internacionais acabou provocando ainda mais contradições nas previsões do PIB. Enquanto bancos e consultorias internacionais, após o pacote fiscal do governo que elevou as taxas de juros e restringiu o consumo interno, já trabalham com indicadores recessivos da economia brasileira, principalmente para o primeiro trimestre de 1998, as agências governamentais apenas falam em "leve desaceleração". O secretário executivo do Ministério da Fazenda, Pedro Parente, chegou a admitir uma expansão menor do setor produtivo nacional, mas insistiu em afirmar que uma recessão "está fora de cogitação". Para os especialistas, a nova crise acabou trazendo mais elementos - desta vez relacionados à globalização dos mercados -, o que faz a metodologia das contas nacionais submergir ainda mais no labirinto de números.Para evitar esse tipo de confusão (e, ao mesmo tempo, criando mais polêmica), o Bird decidiu aplicar sua própria metodologia. É uma forma revolucionária de avaliar a riqueza das nações, mais complexa, que procura converter os dólares de curso internacional atribuídos a cada habitante em uma cesta de produtos e serviços básicos à disposição dos consumidores distintamente em cada país. Assim, se uma renda de US$ 2 mil em Nova York seria suficiente para uma família viver apertada em um pequeno apartamento, esses mesmos US$ 2 mil em Pequim poderiam, em tese, significar o luxo de morar em uma mansão. Ou seja, embora o dólar seja o mesmo em qualquer lugar, adquire poderes diferentes de compra em cada país. Por esse padrão, conhecido internacionalmente por Paridade do Poder de Compra (PPC), o Bird acredita estar mais próximo da "real riqueza de cada país". No caso brasileiro, o PIB assim projetado salta para mais de US$ 850 bilhões, e a previsão, para a virada do século, é de superar o primeiro trilhão de dólares. O Brasil, portanto, entra para o clube dos países mais ricos do mundo. O único senão desse raciocínio é a questão da distribuição efetiva da riqueza, que joga o Brasil, considerado o país com maior desajuste social do mundo, nas malhas do Terceiro Mundo.

"Dados de crescimento extraordinário da riqueza na verdade são usados pelo governo para mascarar a gravidade da realidade social", diz Alciney Cardoso Rodrigues, economista do Sindicato dos Bancários de São Paulo. No caso do desemprego, em relação ao qual são publicados dados tão díspares de uma mesma realidade, Rodrigues adverte para o risco de a sociedade estar sendo manipulada. "Com base nos dados oficiais do IBGE", diz ele, "o governo justifica sua opção por programas de melhoria da qualidade da mão-de-obra e relega a segundo plano projetos mais urgentes para criação de empregos." Segundo o economista, quando o mesmo mercado de trabalho é rastreado por entidades sindicais, como o Dieese, o resultado se altera da água para o vinho. "A verdade dos desempregados aparece", diz ele, "e, com ela, a mentira oficial."


Quem é desempregado?

A gigantesca divergência entre os indicadores de desemprego da Fundação Seade/Dieese e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que fornece os dados oficiais do país, deve-se às diferentes concepções e métodos de apuração. No caso do IBGE, a Pesquisa Mensal de Emprego (PME) aponta somente o desemprego aberto, com uma metodologia de extrema simplicidade, que obedece à recomendação da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A pergunta básica aos entrevistados é se estão trabalhando. Caso não estejam, se procuraram ocupação nos últimos sete dias. O número de pessoas que procuraram trabalho sem encontrar é dividido pelo número da população economicamente ativa (PEA), daí resultando o percentual de desemprego no mês.

O IBGE faz sua pesquisa nas regiões metropolitanas de Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre. O resultado da pesquisa nessas regiões é que dá a taxa média de desemprego no país. O IBGE considera como ocupado mesmo quem esteja fazendo trabalhos instáveis e muito informais. De acordo com a última PME, referente a setembro de 97, o desemprego médio nacional foi de 5,63% e o de São Paulo, 6,59%. Adicionalmente, a mesma pergunta também é feita tendo como referência um período de 30 dias, mas a diferença é pequena: em agosto, por exemplo, por esse critério o desemprego nacional foi de 6,42%. Já na Seade/Dieese, tudo muda. O desemprego total em setembro foi de 16,3%, e a sua Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED), iniciada em 1984, traz para começar uma grande inovação: a taxa de desemprego geral é produto de três outros indicadores:

  • A taxa de desemprego aberto: mede a quantidade de pessoas sem trabalho nos últimos sete dias e que efetivamente procuraram trabalho nos últimos 30 dias; ou seja, mesmo no caso do desemprego aberto ela é diferente do IBGE, porque o seu período de procura de emprego é de 30 dias. Em setembro, essa taxa foi de 10,5%.
  • A taxa de desemprego oculto pelo trabalho precário: diz quantas pessoas fizeram algum trabalho precário eventual ou não, remunerado ou não, nos últimos 30 dias, e que tentaram encontrar outra colocação nos últimos 12 meses. Em setembro, o índice registrado foi de 4,2%.
  • A taxa de desemprego oculto pelo desalento: mostra as pessoas sem trabalho, mas com necessidade de trabalhar, porém que não estão procurando efetivamente uma ocupação, embora tenham feito alguma busca ativa de trabalho por pelo menos 15 dias nos últimos 12 meses. Em setembro foi de 1,6%.

Uma diferença fundamental também se refere ao fluxo de questionário aplicado pelo IBGE e pela Seade/Dieese. A PED começa perguntando se a pessoa busca ou não um trabalho, enquanto o IBGE inicia sua pesquisa indagando se ela tem ou não um trabalho. "Na minha opinião, essa diferença de fluxo é fundamental para o andamento das informações seguintes prestadas pelo entrevistado", explicou o economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) Ricardo Paes de Barros. A PED é calculada nas regiões metropolitanas de São Paulo, Distrito Federal, Belo Horizonte, Curitiba, Porto Alegre e Salvador.

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