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Mania de índio

Na obra de Moacyr Scliar, a vida de Noel Nutels, o inimigo da burocracia que se dedicou à saúde das populações indígenas

MARCOS FAERMAN

Em 1973, um câncer invencível venceu o herói Noel Nutels, médico sanitarista que se enfiava nas selvas e sertões brasileiros para defender as populações indígenas e caboclas contra a malária, a leishmaniose, a tuberculose. E sabe-se lá quantas doenças tropicais.

Noel, cuja memória é evocada por Moacyr Scliar no livro A majestade do Xingu (Companhia das Letras, 210 páginas), definiu-se assim numa entrevista ao extinto semanário carioca "O Pasquim": "Noel Nutels, médico de saúde pública, eu não clinico, não tenho consultório. Fazia malária e agora faço tuberculose. Mania principal: índio".

No começo dos anos 50, quando o Brasil estava em plena marcha para o oeste, conduzida pelo marechal Cândido Rondon, com as figuras míticas dos irmãos Villas-Boas, Noel criou o Serviço de Unidades Sanitárias Aéreas (Susa) para socorrer sertanejos e índios roídos de endemias e assolados por epidemias.

Tanto Darcy Ribeiro como Orlando Villas-Boas descrevem o Susa como algo profundamente distante da modorra dos burocratas brasileiros. O Susa era a cara de Noel. Ele não tinha medo de cobra, lagarto, buraco perdido no mundão de Deus. Os aviões da Força Aérea Brasileira (FAB), dirigidos por rapazes que hoje são militares de alta patente, como o brigadeiro Pavan, já reformado, voavam para levar a medicina às vilas perdidas do país.

O entusiasmo e a inteligência de Noel Nutels apaixonavam os que dele se aproximavam, fossem jovens militares, freqüentadores dos corredores da burocracia, os próprios indigenistas, como os Villas-Boas, Rondon, ou o ministro João Alberto. Ou tantos intelectuais e artistas, como Vinícius de Morais, Carlos Drummond de Andrade, Marques Rebelo, Carybé, Jorge Amado, Ariano Suassuna... todos amavam Noel. E "todos" quer dizer não só essas figuras luminosas da arte, das letras e da cultura, mas também jovens escritores, estudantes e sonhadores que acompanhavam suas histórias a distância. Um desses anônimos era um estudante de medicina gaúcho, chamado Moacyr Scliar.

Exemplo

Moacyr, como Somerset Maugham, A. J. Cronin, Guimarães Rosa e tantos outros mais, era apaixonado por medicina e literatura. Cursando a Faculdade de Medicina da Universidade do Rio Grande do Sul, Moacyr absorveu os dramas sociais e políticos, culturais e humanos do Brasil do começo dos anos 60.

Ora, nesse tempo, como nos anos seguintes, o herói de estudantes de medicina que não pensavam apenas em ter um consultório e ganhar dinheiro era aquele judeu russo criado no nordeste brasileiro, chamado Noel Nutels. Moacyr teve alguns encontros meio a distância com ele, em congressos de medicina. Ele lembra o homem corpulento, de cabelos enormes, falando com ênfase, uma força quase mística, que "tinha uma imagem radiosa". À medida que o tempo passava, Noel foi ganhando, aos olhos de Moacyr, a dimensão de um "personagem mitológico". O arquétipo de um idealista em um tempo em que os valores éticos, a própria paixão, naufragavam irreparavelmente, ao lado das idéias "da juventude" dos contemporâneos de Moacyr. Para ele, escrever a história de Noel Nutels passou a ser um ajuste de contas com sua própria história. Com um guri chamado Moacyr Scliar, filho de judeus russos, morador no gueto judaico do Bom Fim, em Porto Alegre.

Mas o livro de Moacyr não é biografia. Nem romance. A história é contada por um personagem fictício, cúmplice imaginário de Noel Nutels e cúmplice real do escritor. Moacyr escolhe entre seus próprios fantasmas judaicos esse personagem, que talvez exacerbe a condição de judeu de Noel Nutels.

A majestade do Xingu é um dos melhores livros de Scliar. Não existem vazios entre o literário e o não literário. Mas isso não significa que o leitor tenha diante dos olhos um perfil de Noel. Aliás, essa não era a intenção de Moacyr.

De batina

Há mais de Noel Nutels numa reunião de textos publicada pela editora José Olympio em 1974, com o nome Noel Nutels – Memórias e depoimentos. Assinam os textos celebridades como Darcy Ribeiro, Ariano Suassuna, os irmãos Villas-Boas, Hélio Pelegrino e outros.

O livro traz histórias deliciosas. Orlando Villas-Boas, por exemplo, conta a passagem de Noel por lugarejos nordestinos em que havia reunião de devotos do padre Cícero. Ele chegava e já ia armando o circo médico (parece cena de faroeste, com aqueles charlatães vendendo remédios miraculosos). E lá estendia uma faixa em enormes letras vermelhas: "Raios X – Vacinas – Extração de dentes – Tudo de graça".

O diabo é que em alguns povoados ele era recebido friamente. Até que alguém lhe sussurrou que o povo só falaria com ele se usasse também colares do padre Cícero. Claro que Noel, seus auxiliares e a turma da FAB logo se paramentaram como a moda local exigia.

Outra vez o presidente Getúlio Vargas chamou o ministro João Alberto e auxiliares para contar o que estava acontecendo no sertão. Getúlio recebeu a todos de pé, com o charutão aceso, sisudo; uma cena e tanto. Naquele tempo, com suas unidades sanitárias, apoiadas no Ministério da Saúde e da Aeronáutica, Noel estava se tornando figura de lenda. A palavra foi passada a ele.

"Excelentíssimo senhor doutor Getúlio Dornelles Vargas, presidente da República Federativa do Brasil..." Assim, com seu vozeirão, Noel começou seu discurso. Subitamente, ele parou. E soltou esta: "Olhe, doutor Getúlio, eu vou mudar o tratamento para senhor porque se eu continuar com esse Vossa Excelência logo, logo, vou errar na concordância". Era o tempo do Estado Novo, mas não pensem que Vargas era um tipo mal-humorado. Ele soltou uma gargalhada daquelas e mandou todo mundo sentar, nas vetustas poltronas do histórico Palácio das Laranjeiras. Ficou interessadíssimo nas histórias de Noel. Claro.

Numa crise do Serviço de Proteção aos Índios, Noel tinha ficado no cargo um mês que seja. Apareceu um índio no Rio de Janeiro, vindo de Pernambuco. E pediu ajuda para os seus, que estavam morrendo de fome. Noel muitas vezes tinha até empenhado jóias da esposa para pagar alguma viagem de emergência de seu avião, em que carregava remédios, aparelho de abreugrafia, que valia por um ministério inteiro. Explicou que dentro de algum tempo teria dinheiro, sim. O índio ficou desconsolado.

"Quer saber de uma coisa, doutor? Vou largar dessa ilusão de ser índio!"

O livro de Moacyr é um lindo caminho no meio da floresta da indiferença e do esquecimento do Brasil pelos brasileiros para se lembrar que existiu um Noel, um Vinícius, um Tom. Um Drummond, que escreveu sobre Noel um poema no "Jornal do Brasil", em fevereiro de 73 (ver abaixo).

E assim, é preciso agradecer a Moacyr Scliar ou aos fantasmas de sua juventude pela redescoberta de um dos mais belos personagens da civilização brasileira.


Valeu a pena?

"Em VILA ROSALI Noel Nutels repousa
do desamor alheio aos índios
e de seu próprio amor maior aos índios.
Como se os bastos bigodes perguntassem:
Valeu a pena?
Valeu a pena gritar em várias línguas
e conferências e entrevistas e países
que a civilização às vezes é assassina?
Valeu, valeu a pena
criar unidades sanitárias aéreas
para salvar os remanescentes
das vítimas de posseiros, madeireiros,
traficantes,
burocratas et reliqua,
que tiram a felicidade aos simples
e em troca lhes atiram de presente
o samburá de espelhos, canivetes,
tuberculose e sífilis?"

(Trecho do poema Entre Noel e os índios, de Carlos Drummond de Andrade, extraído do livro Noel Nutels – Memórias e depoimentos)


Comida de pensão

Noel Nutels chegou ao Brasil, com a mãe e uma tia, em 1922. Ele tinha nascido na Rússia em abril de 1914, e nesses poucos anos de vida, quanta coisa tinha acontecido. Em 1917, revolucionários esquerdistas tinham tomado o poder. Muitos judeus, como os familiares de Noel, até ficaram aliviados, porque nos seculares tempos do czarismo os judeus eram perseguidos, espancados e assassinados nos chamados pogroms. Quem sabe a vida podia melhorar?

De qualquer maneira, o pai, antes da revolução, cansado da miséria torpe em que viviam os seus, já havia partido para uma misteriosa "Zudamérica", mais precisamente o sertão nordestino, indo se estabelecer num lugarejo de mil habitantes, se tanto, chamado Laje do Canhoto. Lá, tinha conseguido ter seu próprio negócio, a orgulhosa Loja da Moda, único sobrado do lugarejo. "Vendia de tudo", contou Noel, num ensaio de autobiografia. "Até penico." Noel adorava aquela infância de menino do nordeste, com um rio gostoso e frutas mais gostosas ainda. Mas o pai Salomão morreu e a mãe o levou à cidade grande, que ele também adorou, Recife. A mãe terminou abrindo uma pensão, onde foram parar figuras como os escritores Rubem Braga e Ariano Suassuna e o compositor Capiba. A comida judaica de sua mãe, com direito a borsht (sopa de beterraba), misturada com mil moquecas e muito carinho, enlouquecia a rapaziada.

Noel estudava medicina e era o arquétipo do brasileirão. Dançava frevo louca e divinamente. Quem diria que era um russo de verdade, que nem o czar? E era um contador de piadas, fazedor de alvoroço.

Dona Elisa, esposa apaixonada de Noel, com quem teve a filha Berta, recebeu com muito carinho o livro de Moacyr. Ela morreu no ano passado, em Teresópolis, quando se preparava para vir a São Paulo, mais uma vez visitar Orlando Villas-Boas. Tinha com ele uma disputa muito engraçada: quem conhecia mais a vida de Noel, mais detalhes, mais histórias, mais anedotas. Quem?

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