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A caminho do colapso

Desacreditada pela população e afogada em sua própria ineficiência, a Justiça procura soluções

MARCOS FAERMAN

"O Judiciário vive no pior dos mundos." A afirmação é de José Eduardo Faria, professor da Universidade de São Paulo que tem estudado a situação da Justiça brasileira. A leitura de um de seus trabalhos, que subsidiou esta reportagem, confirma a frase. Faria mostra que o Judiciário serve a uma parcela cada vez menor da população.
Burocracia, formalismo excessivo, lentidão, legislação obsoleta, constantes mudanças das regras econômicas, insuficiência – e às vezes incompetência – de profissionais, conflitos com os outros poderes... A lista de problema parece não acabar.
Mas a paciência daqueles a quem o Judiciário deveria servir, essa, sim, tem limites. Que em muitos casos parecem já ter sido transpostos há tempos.
Premidas pela rapidez da economia globalizada, as empresas buscam – e agora começam a encontrar, na figura do juiz arbitral – alternativas mais ágeis para resolver seus conflitos. A Justiça oficial, com todas as suas deseconomias – Armando Castelar Pinheiro, do BNDES, estima que o PIB brasileiro aumentaria 13% sem os custos derivados da ineficiência judicial –, não serve mais ao empresariado.
Por outro lado, as classes menos favorecidas confiam muito pouco na instituição, que mantém grande distância da realidade miserável do país. Para essa – a maior – parcela da população, diz Faria, a lei que vale, e cada vez mais, é a do mais forte.

O taxista Ademir – foi assim que ele quis limitar sua identificação, com medo de piorar ainda mais sua situação – é um dos milhares de cidadãos brasileiros envolvidos em processos intermináveis. Um caminhão desgovernado voou sobre sua casa, num bairro da periferia paulistana. A residência sumiu, entre a poeira e os tijolos partidos. O Gol recém-comprado para o trabalho na praça se transformou num monte de ferro inútil. Isso aconteceu oito anos atrás. Desde então corre o processo na Justiça. Cada vez que o taxista acha que vai ser indenizado, a outra parte entra com um recurso. O advogado de Ademir não tem idéia de quando isso vai acabar.

Essa história foi colhida ao acaso nas idas e vindas das entrevistas desta reportagem. Não é uma situação extrema de lentidão da Justiça – há certamente casos muito piores. E está longe de ser um caso isolado. O advogado Fernando Pinheiro Pedro, ex-diretor da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), por exemplo, já viu, na Justiça trabalhista, clientes saírem chorando da audiência. Isso porque eles tinham a causa seguramente ganha. Terminaram a instrução (apresentação das provas de ambas as partes) vitoriosamente. Levaram testemunhas. Estava tudo certo. Mas então escutaram do juiz algo como: "O senhor não aceitou acordo, portanto vamos ao processo. A próxima audiência será em novembro do ano que vem".

"Hoje, o processo é um monstro burocrático, de tal maneira que ele é a grande punição", diz Pinheiro Pedro. E, segundo esse ponto de vista, não há vencedores. "Ele pune as partes indistintamente."

Talvez para escapar desse "monstro" que lembra o romance O processo, do tcheco Franz Kafka, a grande maioria dos brasileiros não recorre às vias judiciais. Segundo pesquisa divulgada em 1990 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 67% dos envolvidos em conflitos preferiram não buscar a Justiça.

Se em casos concretos a população evita o Judiciário, genericamente a confiança na instituição também é reduzida. Em 1993 o Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope) apurou que 43% da população não confia na Justiça. A pesquisa vai além: 87% dos entrevistados entendem que a Justiça é muito lenta; 86% consideram que no Brasil existe uma casta de intocáveis que, façam o que fizerem, jamais serão punidos pela Justiça; 80% pensam que a lei só existe para o mais pobre.

Esses números são citados no estudo "O Poder Judiciário no Brasil: paradoxos, desafios e alternativas", elaborado em 1996 por José Eduardo Faria, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), a pedido do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal. A partir da constatação de que grande parte da população não acredita na Justiça e resolve seus conflitos à margem do Judiciário, Faria tenta responder a uma pergunta assustadora: a instituição não poderia ser considerada "descartável" no país?

Peças de museu

No percurso que faz para responder a essa questão, o professor da USP traça um quadro corrosivo dos problemas do Judiciário.

Um ponto dramático, citado por ele e outros juristas entrevistados por Problemas Brasileiros, é a antiguidade da legislação. O Código Comercial é de 1850. O Código Civil é de 1917 (projeto para substituí-lo tramita no Congresso). O Código Penal é de 1940. E a Lei de Falências e Concordatas é de 1945.

"Ou seja", comenta Faria, "a legislação nasceu em uma sociedade agrário-exportadora e deve ser aplicada numa sociedade urbano-industrial, de massas. Há uma incompatibilidade entre a legislação e o perfil qualitativo dos conflitos que o juiz tem de julgar."

O professor esclarece alguns aspectos dessa inadequação. Segundo ele, a Justiça no Brasil foi inteiramente preparada para lidar com conflitos corriqueiros, entre partes situadas socialmente no mesmo patamar. "E o que se tem hoje são conflitos entre partes situadas em níveis sociais muito diferentes", diz.

Além disso, explica Faria, o perfil dos conflitos sociais mais importantes dos últimos tempos é de natureza coletiva – como os dos sem-terra, das mensalidades escolares, etc. –, enquanto o Judiciário foi organizado para resolver conflitos entre indivíduos.

Mas não é apenas a legislação anacrônica que está em descompasso com a sociedade. Para o desembargador José Osório de Azevedo Júnior, o problema também está nos próprios profissionais da Justiça. Num tempo em que os conflitos sociais cresceram em proporção gigantesca, ele acha inútil imaginar que a Justiça possa dar solução a todas essas situações. "Estão esperando muito de nós e imaginam que somos mais fortes do que acontece na realidade", diz o desembargador.

Azevedo Júnior busca uma explicação sociológica para essa situação. Segundo ele, como a grande maioria dos juízes são recrutados na classe média, eles "parecem ter mais facilidade para entender os problemas de tal setor da sociedade, como os temas ligados ao consumo, a condomínios, turismo, etc."

Pé atrás

Em contrapartida, o Judiciário teria uma tendência a "não perceber muito bem a situação dos excluídos", diz. De acordo com ele, o pobre sente uma dificuldade muito maior que os "abonados" para se aproximar da Justiça. A começar pelo primeiro passo: o contato com o advogado. "O pobre se aproxima com certo receio de ser enganado por uma pessoa que tem outra condição cultural." (A opinião de Azevedo Júnior confere com outro dado da pesquisa do Ibope de 1993. Entre os entrevistados, 53% acham que os advogados "enganam seus clientes".)

"Se o advogado não for uma pessoa generosa e direta, com sensibilidade para ouvir os outros, isso já cria muitos bloqueios nas pessoas pobres que o procuram", completa o desembargador.

Para Azevedo Júnior, muitas das deficiências de advogados e juízes têm sua origem na maneira com que o Direito é aprendido no Brasil. Ele vê no ensino e na prática da Justiça, em suas variadas manifestações, "muito formalismo, academicismo, muita preocupação em citar autores, valorizando excessivamente o argumento de autoridade, e não o argumento real, verdadeiro".

"Esse Direito que se estuda", continua, "é vazio de conteúdo social, ético, humano, emocional. Direito não é bem isso. O Direito verdadeiro é cercado de drama, de emoção. Cada processo tem uma tragédia por trás dele, e tudo isso precisa ser examinado." Mas muitas vezes tanto o juiz quanto o advogado tratariam o Direito como uma coisa fria, abstrata. "Esse normativismo é terrível no ambiente jurídico brasileiro", diz o desembargador.

Interrogatório virtual

Pinheiro Pedro também chama a atenção para a má formação do profissional da Justiça (ver texto abaixo sobre dificuldade de preenchimento de vagas em concursos promovidos pelo Judiciário). Ele faz questão de dizer, contudo, que esse não é um caso isolado, mas apenas "um reflexo dos problemas educacionais que existem em todas as áreas".

Mas, para Pinheiro Pedro, o caso do juiz é ainda mais difícil. "Ele deve ter a vocação para decidir, o que exige uma formação ainda mais sólida."

Para mostrar como o despreparo para essa função pode ter conseqüências trágicas, Pinheiro Pedro cita um caso que lhe chamou especialmente a atenção, ocorrido na região do ABC paulista.

Um juiz retirou a guarda da criança de uma mãe apenas pelo fato de ela ter um irmão portador do vírus HIV. "Destrói-se uma relação maternal por preconceito, numa decisão liminar, sem ouvir a outra parte. Imagine o trauma que se cria", diz.

Pinheiro Pedro cita também o caso de um comerciante mandado para a cadeia como estuprador. "Ele ficou entregue à sanha dos marginais, que lá estavam presos", diz o advogado. Mas, segundo ele, esse homem era inocente. "Não havia sequer um elemento de prova. Ele foi preso pelo simples fato de ter havido uma acusação, e mantido na cadeia por três meses, até que a verdade veio à tona no processo judiciário. Esse é o típico caso de um juiz que decidiu só olhando papéis. Nem ouviu as partes. Não trouxe o indivíduo à sua frente para vê-lo. Fez um interrogatório burocrático", diz Pinheiro Pedro.

O advogado acha que esse tipo de problema pode ser agravado se o Judiciário adotar a idéia do interrogatório virtual, defendida pelo juiz Luiz Flávio Gomez, de uma vara criminal de São Paulo. "Apesar de ser um profissional que respeito muito, ele está vendendo um equívoco para o Judiciário", diz. Pinheiro Pedro vê a idéia de interrogar um réu pelo computador não como uma forma de agilização do processo, mas como a "cristalização do distanciamento do juiz em relação à realidade social". "Uma alienação total", resume.

Escravos do trabalho

Mas não se pode exagerar a parcela de responsabilidade dos juízes e advogados nos problemas da Justiça brasileira. Assim como seria uma simplificação perigosa jogar toda a culpa nas leis empoeiradas que ainda estão em vigor. Infelizmente, o fato de uma legislação ser recente não garante sua qualidade. Muitas vezes, aliás, o que se verifica é o oposto.

A Constituição de 1988, por exemplo, é considerada pelo advogado Ives Gandra da Silva Martins uma das grandes fontes da atual crise do Judiciário. O jurista entende que as leis processuais decorrentes dessa Constituição estabeleceram "um excesso de instâncias". Hoje, segundo ele, pelo menos quatro delas são "quase que necessárias em todos os processos". Para Gandra, se não for reduzido o número de instâncias, processos e recursos, num prazo muito curto o Judiciário vai "entrar em colapso". "Será muito pior que hoje. Qualquer questão durará 20, 30 anos. Há uma necessidade de reforma urgente, e todos os ministros do Supremo Tribunal Federal têm reclamado isso. Eles sentem que não têm mais condições de trabalhar. São escravos do trabalho", diz o jurista.

Gandra cita um número assombroso: os 11 ministros do Supremo (a última instância possível) receberam 40 mil processos em 1997. "Na Itália, corte análoga, que tem 352 juízes, reclamou ao receber 27 mil processos", diz.

"Os juízes brasileiros trabalham muito", diz Azevedo Júnior, "mas grande parte do que fazem não é importante." Numa sociedade mais organizada, defende, muita coisa nem chegaria à segunda instância. "Por exemplo, um bate-boca de condôminos. Mas lá ficam os desembargadores, com suas becas, naquela solenidade toda, para resolver um assunto desses?"

Para evitar esse tipo de inadequação e resolver com agilidade questões de menor relevância, foram criados os juizados especiais, dentre os quais se destacam os de pequenas causas (ver texto abaixo sobre juizado especial do Amapá). Embora tenham sido saudados como uma solução para o Judiciário à época de sua implantação, em muitos distritos os juizados especiais hoje enfrentam acúmulo de processos. Segundo o juiz Alfredo Attié Júnior, a lei 9.099 – a que regula e pretendia aperfeiçoar os juizados especiais – "não melhorou nada em termos cíveis, e o atendimento piorou".

De qualquer forma, ainda cabe a pergunta: se os condôminos e similares têm a alternativa do juizado de pequenas causas e 67% da população envolvida em conflitos não recorre à Justiça, quem abarrota as estantes dos tribunais?

Maus perdedores

Gandra e Azevedo Júnior respondem sem hesitar: os governos, em todas as suas esferas – federal, estadual e municipal. De acordo com dados do próprio Judiciário divulgados pela "Folha de S. Paulo" em 15 de dezembro do ano passado, 65,2% dos 6,68 milhões de casos que tramitam na Justiça no estado de São Paulo se referiam à cobrança de tributos estaduais e municipais. "Mesmo quando perde", diz Gandra, "o poder público continua discutindo para não ter de pagar." Isso significa que a bola vai parar nos tribunais superiores, cujo quadro não é muito diferente. Cerca de 60% dos recursos que chegam às últimas instâncias, informa ainda a "Folha", são propostos por entidades governamentais.

Azevedo Júnior lembra uma situação bastante conhecida que serve como mais um ingrediente nessa grande confusão: a dos governadores e prefeitos que desapropriam bens particulares e mandam a conta para seus sucessores. E cita outros casos estranhos, como o do envolvimento da União na questão dos loteamentos clandestinos ou irregulares na capital paulista. Os proprietários não conseguem escritura definitiva e recorrem ao usucapião. "A situação é grave porque, por exemplo, na zona leste da cidade, tais ações podem envolver milhões de pessoas", diz. "No entanto, a União sistematicamente reage dizendo que as terras são suas porque ali teriam existido aldeamentos indígenas. Uma coisa completamente estapafúrdia", arremata Azevedo Júnior.

Segundo o desembargador essas questões geram discussões infindáveis entre a Justiça estadual e a federal. São processos que demoram anos. "Isso traz uma frustração muito grande à população, ao advogado e ao juiz", diz.

Para piorar ainda mais o quadro, há também as questões decorrentes dos planos econômicos, que afogaram a Justiça, particularmente os tribunais superiores e a Justiça federal. Além das infindáveis ações movidas por cidadãos e empresas que se consideram prejudicados por eles, esses planos têm como conseqüência sérios confrontos entre o Executivo e o Legislativo, explica o professor Faria.

Nesses conflitos – que envolvem, por exemplo, medidas provisórias, ações de inconstitucionalidade, etc. – às vezes há um impasse e o Judiciário é chamado a agir, seja pelo Executivo, seja pelo Legislativo. "Quando o Judiciário desempata a questão", diz Faria, "o poder derrotado imediatamente o acusa de ter invadido competência alheia, o que gera uma situação dramática." Ele lembra que o próprio presidente Fernando Henrique Cardoso "já jogou várias vezes a opinião pública contra o Judiciário, acusando-o de tribunalizar a vida política do país".

A Justiça, claro, não pode ser crucificada pelos atropelos em que se envolvem os outros poderes, uma clara transgressão do princípio da independência que deveria haver entre eles. "Mas essas coisas, normalmente, escapam dos críticos do Judiciário", queixa-se Azevedo Júnior. Para ele, os meios de comunicação deveriam mostrar esses aspectos, "que não são só os derivados da deficiência da máquina".

Seja como for, toda essa guerra de papéis na Justiça custa muito caro ao país. Isso é o que mostram cálculos inéditos do economista Armando Castelar Pinheiro, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), baseados em pesquisas realizadas em 1996 e 1997 pelo Instituto de Estudos Econômicos e Sociais de São Paulo (Idesp) junto a mais de 800 empresas. A conclusão é a seguinte: se o Judiciário brasileiro funcionasse como o do Primeiro Mundo (a pergunta era proposta mais ou menos assim) o nível de investimento seria 10,4% maior e o número de empregos aumentaria 9,4% . Não é só isso. O Produto Interno Bruto (PIB) seria 13% maior, o que representa nada menos que US$ 101 bilhões, usando como base o PIB de 1996 recentemente recalculado pelo IBGE.

Tempos desencontrados

Embora não possam ser tomados como algo exato – segundo Castelar Pinheiro, percebeu-se que as respostas na verdade baseavam-se num ideal de Justiça perfeita – esses números impressionam. E afugentam as empresas, que no mundo altamente competitivo da economia globalizada não podem perder dinheiro e tempo preciosos nos labirintos de um sistema judiciário ineficiente.

Faria destaca duas características fundamentais da globalização que colocam o Judiciário em xeque. A primeira diz respeito ao fato de que ela gera uma série de riscos. Utilizando o exemplo do impacto que a crise asiática gerou no Brasil, México e Argentina, o estudioso chama a atenção para a aceleração do processo decisório no atual quadro empresarial mundial. Segundo ele, a economia globalizada opera "em tempo real", enquanto o Judiciário foi concebido para atuar "no tempo da cronologia, etapa por etapa, em nome da segurança do processo, de um julgamento imparcial em que todos tenham o direito de defesa", diz o estudioso. No entanto, do ponto de vista econômico a lentidão de todo esse ritual acarreta riscos, perdas e o aumento do custo das transações.

A segunda característica é a incompatibilidade organizacional e processual entre a Justiça e a economia globalizada. "O Judiciário tem uma atuação circunscrita ao território da nação brasileira, e o que há na economia globalizada é um emaranhado que transcende os limites do território", diz Faria.

Mas uma alternativa para atenuar esse dilema começa a ganhar força no meio empresarial. Trata-se da arbitragem, uma possibilidade de as próprias partes constituírem, de comum acordo, mecanismos extrajudiciais de resolução dos conflitos. A figura do árbitro, na verdade, já estava prevista no antiqüíssimo Código Comercial de 1850. Mas foi sempre complicado aplicá-la. Agora, segundo o juiz Alfredo Attié Júnior, a lei 9.307, de setembro de 1996, tornou a implantação da arbitragem mais realizável.

Em outros países, os árbitros já ocupam largo espaço. Nos EUA e na França, câmaras de arbitragem funcionam há mais de 90 anos. A Associação Americana de Arbitragem, com 237 mil árbitros, opera em todo o país. A Universidade de Wisconsin mostrou, em várias pesquisas, que, desde os anos 60, empresas de médio porte, vinculadas à indústria automobilística, fogem do Judiciário e constituem seus próprios árbitros. Em Paris, está instalada a Câmara Internacional do Comércio, uma entidade privada que arbitra conflitos em 90 países, no valor econômico total de US$ 15 bilhões.

De acordo com Attié Júnior, com a nova lei, uma "cópia" da elaborada pela Comissão das Nações Unidas para o Comércio Internacional, órgão criado para harmonizar a regulamentação do comércio entre as nações, a arbitragem ganhará um impulso cada vez maior no Brasil, opinião compartilhada por todos os profissionais ouvidos pela reportagem de Problemas Brasileiros.

"O que se verificou", diz Faria, "é que, mal foi proclamada a lei do juiz arbitral no Brasil, imediatamente começou a existir a possibilidade de empresas, basicamente, escolherem seus árbitros dentro de uma perspectiva processual muito mais dinâmica e uma perspectiva jurídica mais flexível que o Judiciário. E tudo isso com muita rapidez e qualidade." Mas, para o professor Faria, tudo isso, longe de resolver a situação do Judiciário, demonstra que as grandes empresas tendem, cada vez mais, a escapar dos seus anéis. Por outro lado, analisa, "a população de baixa renda tem acesso cada vez menor à Justiça." Sem recursos para pagar advogados, essa população depende das defensorias públicas e assistências judiciárias, entidades estatais que dão assessoria jurídica gratuita. Mas, segundo Faria, essas instituições, cujo orçamento é vítima constante de cortes por parte do governo, são "geralmente degradadas".

"Isso tudo", diz Faria, "está levando, nos guetos miseráveis das metrópoles brasileiras, à emergência de uma Justiça paralela, baseada na lei do mais forte."

Diante desse quadro negro, Faria finalmente responde a pergunta a que se propõe no início de seu estudo. Para ele, o Judiciário está cada vez mais "perdendo o monopólio em sua área de atuação e vendo encerrada a época em que seus integrantes podiam decidir, livre e soberanamente, os destinos da instituição".


Justiça a bordo

Imagine um casamento realizado dentro de um barco, ao som da correnteza de um rio. Não, não se trata da excentricidade de algum milionário. É uma atividade rotineira do Juizado Itinerante Fluvial, uma iniciativa pioneira que funciona desde 1996 no estado do Amapá, situado numa região da Amazônia especialmente recortada por rios.

O juizado, que viaja a 40 comunidades isoladas do estado durante uma semana a cada dois meses, não faz apenas casamentos. Atende a todo tipo de demanda judicial. Nessas viagens, a equipe, composta de juiz, promotor, defensor público e serventuário da Justiça, é conferida de competência geral – pode tratar de casos de todas as especialidades jurídicas, como a Justiça Civil, Trabalhista, Criminal, etc.

Segundo a juíza Suely Pini, coordenadora do juizado, a atividade mais comum é emitir certidões de nascimento tardias, para maiores de 12 anos que "existiam de fato, mas não estavam nas estatísticas", situação corriqueira no país. Mas também são freqüentes demandas referentes à regularização da guarda de crianças e a pensões alimentícias.

Sem esse serviço, muitas questões dificilmente seriam resolvidas. "Na Amazônia, tudo é superlativo: os rios, as frutas e também as distâncias", diz Suely. "É muito difícil para um caboclo vir remando do interior para resolver uma questão em Macapá", completa.

Suely diz que o barco alcança comunidades muito isoladas. Em algumas delas, os habitantes ficaram encantados com a máquina de escrever manual que é usada no barco. "Nunca tinham visto uma", diz a juíza.

Nessas vilas, o trabalho jurídico não é muito intenso. "Praticamente não há litígios, a não ser uma ou outra questão de posse de terra." Entretanto, é comum o Juizado Itinerante fazer as vezes de outros serviços que faltam a essas comunidades. Suely relata o trabalho de um juiz que orienta os caboclos ribeirinhos sobre temas tão distantes do universo jurídico quanto a higiene bucal. Conta também um episódio impressionante. Ao chegar a uma ilha, os membros do juizado encontraram uma garota em estágio avançado de verminose. "Ela estava expelindo vermes pela boca", diz Suely. Eles não tiveram dúvidas. Cancelaram o restante da programação da viagem e levaram a menina para ser atendida em Macapá.

O Juizado Itinerante Fluvial não é a única atividade dos Juizados Especiais do Amapá. Além de um serviço semelhante prestado em um ônibus na periferia de Macapá e nos municípios vizinhos, há também o Juizado Volante, específico para questões relativas a acidentes de trânsito. Por telefone, uma viatura é acionada e lavra uma sentença imediatamente, no próprio local do acidente. Se possível, já formalizando um acordo entre as partes.

Segundo dados fornecidos pelo próprio tribunal, os Juizados Especiais representam atualmente mais do que o dobro da demanda da Justiça comum no estado do Amapá.


Vagas abertas

JORGE LEÃO TEIXEIRA

Os números são alarmantes: por falta de gente interessada ou – principalmente – habilitada para o exercício da magistratura, as estimativas apontam, com pequenas variações, de 2,5 mil a 2,7 mil vagas não preenchidas na Justiça brasileira, o que representa mais de 20% dos juízes em atividade no país. Um concurso realizado no Rio de Janeiro no segundo semestre de 1997, com cerca de mil candidatos inscritos, reduziu na prova eliminatória o número de candidatos a somente 70, dos quais apenas 30 foram aprovados. O número de vagas na magistratura era de 170, mas como 29 outras se abriram durante e após a realização do concurso, o déficit continua igual.

Outro concurso realizado também em meados do segundo semestre, para preencher 72 vagas de juiz do trabalho no Rio de Janeiro, atraiu 1.765 candidatos, dos quais oito conseguiram ser aprovados.

O Acre é o estado mais carente de juízes, mas no Rio de Janeiro e em São Paulo a situação é preocupante, principalmente ante a possibilidade de uma debandada de juízes e desembargadores inconformados com o fim das aposentadorias especiais, decidido pelo Congresso no final do ano passado.

Calcula-se que 2,4 mil dos cerca de 6 mil magistrados brasileiros possuam condições de se aposentar, pois contam com 30 anos de serviço, tempo que a lei atual exige para a concessão do benefício. Para escapar à extinção da integralidade prenuncia-se uma corrida às aposentadorias antes da entrada em vigor da nova legislação.

O período médio de trabalho da maioria dos juízes brasileiros é de 40 anos, coincidindo, muitas vezes, com os 70 anos de idade, quando chegam à aposentadoria compulsória. No passado, os juízes gozavam da ascensão promocional por ocasião da aposentadoria: um juiz estadual, por exemplo, aposentava-se com vencimento de desembargador, privilégio não mais em vigor mas que ainda beneficia muitos dos juízes aposentados.

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