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Casal de cineastas paulistas percorre o país exibindo em praça pública curtas-metragens nacionais

MILU LEITE

Notícias sobre grupos de teatro ou circos que chegam às cidades todo mundo tem. Mas se trocarmos o palco por uma tela, a lona por um projetor, estaremos diante de um acontecimento bem menos comum: uma sessão de cinema em praça pública. Principalmente se a sessão for gratuita.

Não há como negar um talento circense natural no casal Laís Bodansky e Luiz Bolognesi, que, com o Cine Mambembe, foi responsável até o início deste ano pelo entretenimento de mais de 10 mil pessoas em diversos pontos do país. Que ninguém imagine, entretanto, uma equipe de ajudantes por trás de resultados tão grandiosos. Laís e Luiz trabalharam sozinhos. Depois de receber o apoio de alguns órgãos e empresas para reunir o equipamento necessário, rodaram cerca de 13 mil quilômetros pelo Brasil com a proposta de levar o cinema de curta metragem a lugares onde esse formato era praticamente desconhecido. Aliás, quase tão desconhecido quanto o cinema, de que quase todo mundo já tinha ouvido falar sem nunca ter assistido.A idéia do Cine Mambembe surgiu no início de 1995, quando Laís sentiu na pele as dificuldades para exibir seu curta-metragem Cartão vermelho, finalizado um ano antes. "Eu também estava fazendo o meu filme, Pedro e o senhor, e a gente foi movido pela angústia do realizador. Por causa dela, desse desespero de realizar um filme e depois não conseguir mostrá-lo, é que surgiu o Cine Mambembe", conta Luiz, sem demagogia. "A satisfação de exibidor veio depois", conclui.

No início de 96 eles deram partida às sessões, restritas então à Grande São Paulo. A mídia começou a divulgar o projeto, surgiram os pedidos de algumas escolas, e as intervenções nos espaços públicos tornaram-se mais constantes. E mais cheias. Uma sessão realizada na Praça da Sé conseguiu reunir cerca de 200 pessoas em poucos minutos.

Laís aponta pelo menos duas razões para isso: os títulos selecionados agradam e o formato é democrático. "Temos uma seleção de filmes para cada espaço", diz ela. Luiz complementa: "E o curta-metragem é legal porque as pessoas podem sair e voltar entre um filme e outro".

Para escolher os filmes a dupla segue, inicialmente, uma regra baseada no bom senso. Optaram por curtas que têm uma linguagem acessível ao público. Fazem parte dessa lista os excelentes A velha a fiar, de Humberto Mauro, Viver a vida, de Tata Amaral, e Novela, uma animação de Otto Guerra, entre outros. Os filmes são cedidos pela Cinemateca Brasileira, pelo MIS (Museu da Imagem e do Som) e pela Funarte.

Segundo Luiz, o primeiro lote de curtas agradou. Essa avaliação eles costumam fazer não só observando o comportamento dos espectadores durante a sessão, mas também ao final de cada uma delas, quando acontecem os debates com o público. As perguntas giram em torno do próprio filme ou acabam se ampliando para temas mais abrangentes. Laís conta que se surpreendeu com uma observação feita por um rapaz numa sessão realizada em Caraíva (Bahia), após a exibição do filme de Luiz. "O cara disse que tinha achado muito interessante a história porque eram dois filmes em um só e que depois eles se encontravam. Ele acabava de descobrir que existia uma trama paralela. Foi demais."

Mas dos debates à chegada do Cine Mambembe aos locais de exibição existe um espaço que é preenchido com muito esforço. Principalmente quando a dupla passou a rodar pelo país com a Saveiro atulhada de rolos, projetor, aparelhagem de som, gerador e tela (material obtido com a ajuda da Kodak, da Villares e do laboratório Curt&Alex).

Mania de novela

Ao narrar a chegada do cine às cidadezinhas, Laís enfatiza o trabalho de divulgação que tinham de fazer para chamar a atenção dos moradores. Espalhavam cartazes pela cidade, faziam da Saveiro um carro-propaganda e divulgavam como podiam a notícia da sessão. Paralelamente, negociavam com a prefeitura estadia e, em alguns casos, alimentação. Remuneração? Nenhuma.

No entanto, nem tudo saía como o planejado. A experiência lhes mostrou que às vezes se superestima o poder do cinema. "Um dia montamos tudo no horário da novela e não veio quase ninguém", conta Luiz. Obviamente, aprenderam logo que teriam que se curvar diante dessa mania popular.

Afora outros pequenos incidentes, as sessões em espaço aberto ficavam bem cheias. "Nas abertas sempre vai muita gente. Houve sessões com mais de 500 pessoas", diz Luiz, traído pela memória modesta.Na verdade, algumas sessões reuniram muito mais do que isso. No assentamento Macaxeira do MST, no Pará, por exemplo, 800 pessoas foram conferir o que a tela de Laís e Luiz tinha a lhes mostrar. Na cidade de Lençóis, na Bahia, a primeira apresentação do Cine Mambembe juntou 700 pessoas na praça. Esse resultado animou tanto a dupla, que eles resolveram realizar outra sessão três dias depois. O que se viu, entretanto, foi um único rapaz sentado à espera dos filmes. "Não dava para entender o que tinha acontecido. Na sessão anterior o pessoal pareceu tão animado!", relata Laís. Aos poucos foram chegando outros espectadores, mas nada que se equiparasse ao outro dia. Só depois Laís e Luiz entenderam a razão do fiasco. Naquele dia estava acontecendo uma festa nas redondezas e o pessoal não tinha achado interessante abandonar a cerveja, a dança, etc.Muitas vezes a participação dos moradores não se restringiu aos debates. Laís conta que numa cidadezinha perto de Piranhas, na região do rio São Francisco, um grupo de meninas resolveu varrer a quadra da escola onde ocorreria a exibição que reuniu 120 pessoas (a primeira contou com 400 moradores).

Laís e Luiz podem listar numa tarde uma infinidade de casos curiosos ou engraçados que vivenciaram nos meses que antecederam a volta a São Paulo, em agosto passado. Falam com um sabor especial de dois deles. O primeiro soa como uma história felliniana e diz respeito a uma invasão de espectadores mirins vestidos de anjos durante uma sessão. Recém-saído de uma festa na igreja, um grupo de meninas aladas surgiu e roubou não a atenção dos moradores, mas a dos projecionistas, pouco habituados com a visão.

O segundo caso também tem sua poesia. Numa noite chuvosa, Laís e Luiz tiveram de prender a tela de cinema a uma árvore e abrigar sob um guarda-chuva o projetor. A imagem é essa mesmo, como num desenho de poucos traços: a chuva, a árvore com a tela lá adiante, no extremo oposto o projetor sob o guarda-chuva e, ao lado dele, duas pessoas que até pouco tempo atrás só existiam em filmes. Até pouco tempo.

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