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A primeira-dama dos palcos brasileiros

Trajetória da menina que queria ser bailarina e se tornou atriz de sucesso

CECÍLIA PRADA


Cacilda Becker na peça "Pega Fogo"
Foto: Acervo de Marina Becker

A tarde de 6 de maio de 1969 corria tranquila, sem prenúncios de drama, no Teatro Cacilda Becker, em São Paulo. A matinê, vendida para um público estudantil, ia a meio – os adolescentes vibravam com o personagem difícil, Estragon, criado por Samuel Beckett em Esperando Godot, interpretado por Cacilda Becker. Mais uma vez, em sua carreira de 28 anos, a atriz se desdobrava para dar vida a um personagem masculino – em 1950 encarnara um moleque na peça Pega Fogo, no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), e agora fazia um híbrido de clown e abstração filosófica dando a ele toda a paixão que abrigava no exíguo corpo de 47 quilos. Depois de cada ato tinha de trocar a camisa, suada a ponto de precisar torcê-la, e caía exausta sobre uma cadeira, no fundo do palco. Mas naquela tarde havia uma tensão diferente no cansaço da atriz. Ela se queixava de uma insuportável dor de cabeça, pedindo que lhe dessem uma Cafiaspirina e café. De repente começou a tombar e a vomitar – o intervalo entre os atos corria rápido, já se ouvia o primeiro sinal de campainha para que os espectadores retomassem seus assentos na plateia, mas Cacilda estava cada vez pior. Inquietação entre os funcionários do teatro e os outros atores – ela agora estava deitada com a cabeça no colo de Walmor Chagas, seu marido, com o qual contracenava. Ao segundo sinal, Cacilda exclamou: "Nossa Senhora me ajude, porque acho que estou tendo um derrame". Um dos atores, Líbero Ripoli Filho, correu ao proscênio para perguntar se havia na plateia um médico, que, logo encontrado, subiu ao palco para constatar a gravidade do estado de Cacilda, enquanto um funcionário solicitava uma ambulância a um hospital próximo. Líbero lembrou à atriz que para respirar melhor devia retirar o nariz de palhaço que conservava, e ela, num último gesto, tirou a pelota vermelha e passou-a a ele, pedindo: "Guarda para mim". Desmaiada, foi carregada para a ambulância e transportada para o Hospital São Luiz, onde morreria, sem recobrar a consciência, no dia 14 de junho.

Nasce uma bailarina

Cacilda Becker Yaconis (que tinha na família o apelido de Cidinha), nascida em Pirassununga (SP) a 6 de abril de 1921, era a primogênita do casal Alzira Becker e Edmundo Yaconis, ela professora primária, descendente de alemães protestantes, ele caixeiro-viajante, de pai grego e mãe italiana. Em anos sucessivos nasceram as três meninas, Cacilda, Dirce e Cleyde. Esta última se tornaria também atriz, com o nome de Cleyde Yaconis.

O casamento de Alzira e Edmundo nada teve de feliz, desde o início, devido à brutalidade e à absoluta irresponsabilidade do marido em relação à família. Conta um dos principais biógrafos de Cacilda, Luís André do Prado (Cacilda Becker – Fúria Santa, editora Geração 2002), que com quinze dias de casado Edmundo já dava uma surra de cinta na mulher. Gostava à sua maneira das filhas mas não hesitava em submetê-las também a maus-tratos. Alternava períodos de permanência com a família com outros, frequentes e longos, de ausência e viagens Brasil afora, a seu bel-prazer. As meninas ora eram bonequinhas bem-vestidas e alimentadas com guloseimas, mimadas, ora ficavam completamente abandonadas e na penúria. A mãe era obrigada até a mandá-las roubar hortaliças na casa dos vizinhos, para poderem sobreviver. Chegavam todas, mãe e filhas, a rezar para que "o desgraçado morresse".

Abandonada definitivamente por Edmundo em 1930, Alzira teve de voltar para Pirassununga com as filhas (moravam então na capital), para enfrentar vida das mais duras, marcada pela pobreza e pelo rigor da família materna, protestante – para a avó, dona Maria, mulher sem marido era mulher perdida. Anos depois, em seu diário, inédito até hoje mas citado por seus biógrafos, Cacilda falaria de sua infância: "Mamãe era linda e nos amava muito, como sempre amou. Meu pai... que dizer dele? Vivemos juntos muito pouco tempo... Sofríamos muito, todos os sofrimentos. Era uma vida cheia de mentiras que anteciparam o meu amadurecimento".

Mas Alzira, mulher animosa, imaginativa, conseguiu formar com suas meninas uma espécie de quarteto invencível – ao ser obrigada a voltar para a família puritana, disse que faria qualquer coisa, até se prostituir se necessário fosse, para a sobrevivência das filhas. Um desafio que não precisou ser cumprido, pois o magistério, que não chegara a exercer por ter casado aos 20 anos, foi sua defesa, com todos os percalços da profissão. Teve de aceitar um posto rural, em escola integrada de colonos japoneses, em uma fazenda que ficava em São Simão. Uma vida rude, em um meio sem recursos. As meninas viviam entre caboclos primitivos, tomavam banho no rio, andavam à solta – Cacilda levava sempre uma foice consigo, talvez para matar cobras. Cleyde Yaconis resume assim a fase na fazenda: "Nossa vida ali era piolho, bicho-de-pé e dor-d’olhos [conjuntivite]". E Cacilda diz em seu diário que em uma noite de chuva torrencial, com nove anos de idade, não podia dormir de tão angustiada com aquela vida sem perspectiva: "Na minha primeira insônia, decidi ser presidente da Standard Oil", pois dizia-se, na época, que ele era o verdadeiro dono do Brasil. Acordou a mãe e a fez prometer que se mudariam daquela fazenda de qualquer jeito. Alzira pediu e conseguiu transferência para uma escola de São Vicente – resolução acertada e que mudou o destino das filhas.

Instaladas em Santos, a 6 quilômetros de São Vicente, "as Yaconis" viveram até o final da adolescência vencendo todas as dificuldades, estudando e inserindo-se plenamente na cidade próspera e adiantada, que tinha uma tradição de vida boêmia, artística e cultural das mais estimulantes.

A pequena "Cidinha" – que, mais do que presidente da Standard Oil, na realidade queria mesmo era ser bailarina – desabrochou para a arte, estimulada que fora para a dança, desde muito pequena, pela mãe. Apesar dos lances de depressão aguda que atravessava pelas próprias circunstâncias de sua vida, e que a levariam várias vezes a cogitar e até mesmo a tentar o suicídio, Alzira tinha um temperamento luminoso, capaz de superar o sofrimento e incentivar nas meninas o que havia de mais criativo e autêntico. Contaria Cacilda: "Mamãe me transmitiu o primeiro desejo artístico, desde quando comecei a andar". A mãe a fazia dançar desde os dois anos de idade em cima de uma mesa, envolvendo-a com seu véu de noiva e ensinando-a a compor gestos, ao som de um gramofone a manivela. A estreia da bailarina-mirim em palco deu-se aos nove anos, em 1930, em Pirassununga, num festival cívico, em um bailado com mais duas meninas – A Morte da Borboleta, reconhecido pelo jornal da cidade como "de invenção própria".

Foi essa criatividade de menina superdotada, mas pobre e incapaz de estudar balé clássico como as meninas das famílias abastadas, que a fez abrir caminho em Santos com seu estilo original e "inventado" de dança – que só um pouco mais tarde, quando um professor de latim lhe deu um livro que fazia furor na época, a autobiografia da revolucionária bailarina americana Isadora Duncan (1877-1927), encaixou-se em um paradigma criador. A partir dali, Cidinha passaria mesmo a considerar-se a reencarnação de Duncan e a exibir-se sempre que podia, principalmente nas cerimônias de fim de ano das escolas de São Vicente e Santos. Em 1933, Alzira conseguiu instalar um piano, alugado, no chalezinho de assoalho meio esburacado da Rua do Sol, 98, para que os números de dança da filha pudessem ser trabalhados com mais facilidade. No mesmo ano Cacilda foi aprovada no teste de admissão para o ginásio do Colégio José Bonifácio, em Santos. No encerramento do ano de 1935 encantou de tal modo a plateia com sua coreografia-solo da Dança Ritual do Fogo que obteve da instituição, para si e para as irmãs, uma bolsa de estudos integral, até o final do ginásio.

Nasce uma atriz

"Eu quero plateias e mais plateias" – assim se expressava a mocinha que se formava no ginásio em 1937. Mas não cogitava ser atriz. Como diria mais tarde: "Foi nessa época que comecei a me dedicar inteiramente à dança. Dançava pelos rochedos, pela praia, pelo mar..." Comparando a vida que levara em Pirassununga com a de Santos, diria que na primeira experimentara "a pobreza com os vícios da pobreza", ao passo que em Santos "...era a pobreza com a desesperada e consciente luta pela sobrevivência e essencialmente ditada por uma imensa necessidade de alegria de viver. É claro que a descoberta do amor e da arte fazia parte dessa conjuntura".

No que se refere ao amor, Cidinha tinha seus namoricos de adolescente. Aos 17 anos ficou noiva de um homem 21 anos mais velho: o arquiteto e artista plástico Flávio de Carvalho, que se apaixonou por ela ao vê-la dançar. Flávio era na época conhecido como "aquele engenheiro maluco", porém ficaria famoso e passaria à posteridade não só pelas suas excentricidades mas como artista dos mais importantes, dramaturgo e escritor. Pertencia, no entanto, a tradicional e rica família fluminense, descendendo de vários nobres do Império, e não conseguiu, mesmo naquela idade, superar a desaprovação da mãe àquela noivinha tão plebeia e pobre. O noivado se desfez, sem grande pesar para a moça, que na realidade não se apaixonara. Cacilda teria uma vida amorosa discreta, mas com sua personalidade forte desafiou alguns tabus da época – não hesitaria em viver maritalmente cinco anos com o jornalista Tito Fleury, antes de casar-se com ele, em 1947. O casal se separaria em 1949, imediatamente após o nascimento do filho Luiz Carlos (Cuca). O motivo da separação foi a paixão avassaladora e plenamente correspondida da atriz pelo diretor italiano do TBC, Adolfo Celi – a quem ela conhecera durante a gravidez. O caso se tornou famoso na história do teatro, mas teve final não previsto: em 1951 o romântico italiano a deixaria, para viver com Tônia Carrero. Em 1956 Cacilda iniciaria um romance com um jovem ator gaúcho, dez anos mais moço, Walmor Chagas, com o qual viveu até 1968. O casal adotou em 1964 uma menina recém-nascida, Maria Clara, que hoje é a cantora Clara Becker.

A bailarina tão talentosa e tão ousada que escandalizava a sociedade santista por dançar de pernas nuas e túnicas transparentes não pôde, contudo, realizar sua vocação – mesmo porque eram quase inexistentes as escolas de dança no Brasil, limitadas à boa vontade de algumas ex-dançarinas russas extraviadas nos trópicos e que formavam seus "ratinhos" a partir dos seis anos. Cacilda, mesmo que tivesse posses, teria passado da idade... Foi o que lhe disse o amigo Miroel Silveira, que aos 24 anos já se achava empenhado, com outro jovem, Décio de Almeida Prado, na renovação do precaríssimo e atrasado quadro do teatro nacional. Em um passeio pela orla marítima, em janeiro de 1941, ele disse a Cacilda: "Você vai dançar sozinha o resto da vida. Para que alguém possa vê-la vai ter de descobrir o teatro".

O espanto da moça foi grande. Teatro? A verdade é que até aquela data – faria 20 anos em abril – Cacilda nunca tivera a oportunidade de assistir a um espetáculo teatral. E o que era de fato o teatro que se fazia até então no Brasil? O profissionalismo era praticamente inexistente. Em São Paulo, uma elite mínima se contentava com as raras companhias estrangeiras que nos visitavam. As poucas atrizes brasileiras eram cadastradas juntamente com as prostitutas, pela nossa polícia. A figura do diretor teatral era inexistente – o que havia eram meros "preparadores de atores". Mais inacreditável ainda: os atores não recebiam o texto completo das peças, nem sabiam do que se tratava. Apenas as partes marcadas com suas próprias falas, que, comandadas por um "ponto" que as assoprava em caso de falta de memória, sincronizavam-se com as "deixas" dos seus parceiros.

A moça bonita que sonhava ser a Duncan brasileira, e que além de tudo precisava ganhar a vida, deixou-se convencer por Miroel, que promoveu seu engajamento no grupo Teatro do Estudante do Brasil, do Rio de Janeiro – onde estreou no dia 12 de abril de 1941, em 3.200 Metros de Altitude, de Julien Luchaire, pecinha medíocre de autor insignificante. Após meses de exaustivos ensaios, o espetáculo se manteria em cartaz durante uma semana (esse era o normal da época).

Segundo Luís André do Prado, a estreia daquela que se tornaria reconhecidamente "a primeira-dama do teatro brasileiro", como a define Sábato Magaldi, seria notada apenas por um jornalista do periódico carioca "A Noite": "Uma jovem, lamento não lhe haver guardado o nome, que fez o papel mais coquete da peça, sobrepujou, pelo encanto físico e pelo desempenho que deu ao seu rôle, muitas das atrizes medalhadas que já vi desempenhando papéis semelhantes".

Nasce uma estrela

Nos sete anos seguintes, Cacilda lutou para se impor na profissão – segundo alguns críticos (inclusive Alfredo Mesquita, que depois se renderia a seu talento), tinha contra si dois fatores: o físico e a voz. Considerada mulher de fascínio irresistível desde mocinha, Cacilda era – para os padrões da época – magra demais. Fazia de tudo para manter o peso em ao menos 47 quilos, pois ele insistia na marca dos 45, fazendo-a perder para reconhecidas beldades como Maria della Costa e Tônia Carrero, mais "cheiinhas". Característica era também sua voz arfante, de fôlego curto. Foi ficando conhecida por uma série de papéis leves em comédias da Companhia Raul Roulien, do Rio de Janeiro, com extensas temporadas em São Paulo. A partir de 1943, porém, já estaria plenamente encaminhada no teatro "sério", ligando-se ao Grupo Universitário de Teatro (GUT), de Décio de Almeida Prado, à Companhia Bibi Ferreira e ao grupo Os Comediantes, onde teria papéis importantes, sob a direção de Ziembinski.

A fundação, em 1948, do TBC de São Paulo, pelo empresário Franco Zampari, é tida pelos historiadores como o marco divisório do teatro brasileiro – que enfim saía da improvisação e do amadorismo para impor padrões de profissionalismo. Ali Cacilda acharia o nicho que a tornou famosa. De 1948 a 1957, fez uma variedade de papéis, em 27 peças, entre as quais se destacam: Arsênico e Alfazema, Entre Quatro Paredes, A Importância de Ser Prudente, Pega Fogo, Seis Personagens à Procura de um Autor, A Dama das Camélias, Maria Stuart, Antígone, Gata em Teto de Zinco Quente, Adorável Júlia.

Em 1958 formaria, com Walmor Chagas e Ziembinski, a companhia Teatro Cacilda Becker (TCB), que apresentaria 26 peças até sua morte trágica, no palco. Além dos autores estrangeiros mais famosos, apresentava também brasileiros como Suassuna, Abílio Pereira de Almeida, Bráulio Pedroso, João Cabral de Melo Neto, Lauro César Muniz.

A "primeira-dama do teatro brasileiro" foi também uma grande lutadora pelos direitos dos artistas e, a partir de 1964, pela preservação da liberdade artística nos tempos da ditadura militar. Embora houvesse manifestado várias vezes sua discordância com a feição essencialmente ideológica de alguns grupos teatrais – como o Oficina – e colocado sempre a arte acima da política e seus enredamentos, em 4 de março de 1968 trocou o palco pela difícil e não-remunerada posição de presidente da Comissão Estadual de Teatro (CET). O cargo, transmitido como "verdadeiro presente de grego" pelo ocupante anterior, Décio de Almeida Prado, iria obrigá-la a se defrontar com a censura e a repressão policial da ditadura militar – principalmente em episódios que se tornaram históricos, como a invasão policial e prisão dos artistas do Teatro de Arena, onde se apresentava Roda Viva, de Chico Buarque, e o desafio à censura que foi a 1ª Feira Paulista de Opinião, de Ruth Escobar.

Foi incansável Cacilda na presidência da CET, no empenho para manter unida a classe teatral contra a ditadura e para libertar companheiros presos. Um esforço demasiado para sua frágil estrutura, e que certamente contribuiu, e muito, para seu fatídico estresse emocional e físico.

Entregou o cargo em 25 de fevereiro de 1969, dele saindo – no dizer de Décio de Almeida Prado – "maltratada e magoada, vítima de infundados questionamentos éticos". Foi nessas condições que aceitou o papel dificílimo do personagem Estragon – sob cujos trajes teve a ruptura de aneurisma que lhe seria fatal. Por uma dessas ironias do destino, foi esse o papel que alguns dos principais críticos teatrais definiram como sendo o seu "maior desempenho". Como diria seu grande admirador, o crítico paulista Sábato Magaldi: "A figura frágil, desajeitada, chapliniana, com a máscara clownesca, ilumina-se de uma vida interior e uma sabedoria que fazem de Estragon talvez o ponto mais alto da carreira de Cacilda e uma criação antológica em nosso palco".

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