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O papel do Ministério Público

Em busca de autocrítica


Medina Osório / Foto: Nicola Labate

Fábio Medina Osório é doutor em direito administrativo pela Universidade de Madri, tendo sido orientado pelo catedrático Eduardo García de Enterría. É mestre em direito público pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde é professor colaborador nos cursos de especialização, mestrado e doutorado, e consultor da Universidade Federal de Minas Gerais.
É também professor colaborador em escolas da magistratura e no Ministério Público do Rio Grande do Sul, instituição da qual foi membro de 1991 a janeiro de 2006. Foi promotor de justiça da Promotoria Especializada do Meio Ambiente em Porto Alegre de 2001 a 2003 e diretor da Associação Brasileira do Ministério Público de Meio Ambiente de 2002 a 2005.
É titular e fundador do escritório Medina Osório Advogados e presidente do Instituto Internacional de Estudos de Direito do Estado (Iiede).
Esta palestra de Fábio Medina Osório, com o tema "Ministério Público – Competências e limites de atuação", foi proferida no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio, Sesc e Senac de São Paulo no dia 14 de agosto de 2008.

Pretendo fazer uma breve explanação sobre a estrutura do Ministério Público e explicitar quais são suas atribuições para mostrar a abrangência atual, ainda que de forma genérica, daquilo que se designa como competências, mas que na verdade tratamos como atribuições. Falarei depois sobre os limites de sua atuação e a crise do Ministério Público ou de seus paradigmas frente à sociedade brasileira, bem como as eventuais soluções.

Embora falemos de Ministério Público brasileiro, na verdade temos mais de um, e são vários no país. Sob esse rótulo há uma primeira grande divisão: Ministério Público da União e Ministério Público dos estados. Podemos dizer que há também subdivisões muito importantes, como o Ministério Público do Trabalho, o Militar, o do Distrito Federal, e dentro dos estados há também muita diversidade, de tal modo que o Ministério Público brasileiro é extremamente fragmentado. O destaque, em termos de poder de mídia, tem sido dado ao Ministério Público Federal, cujas atribuições realmente são muito abrangentes.

Então a ideia de um Ministério Público brasileiro, embora se possa conceber no plano ideal e até como princípio constitucional, é uma utopia, pois o que existe é um imenso conjunto de ministérios públicos espalhados de forma bastante fragmentada. Há ainda uma prevalência do isolacionismo nas atuações, em detrimento de uma visão de conjunto.

Do ponto de vista das atribuições, elas estão plasmadas tanto na Constituição Federal quanto na normativa infraconstitucional de uma maneira bastante difusa e abrangente, por força de um conjunto de fatores históricos, desde a Constituição de 1988.

O Ministério Público sempre teve representantes seus nos parlamentos, inclusive no Congresso Nacional, que defenderam seus interesses com uma política expansionista em relação às atribuições. A ideia mestra era: quanto mais atribuições, melhor para o Ministério Público. Isso significou um alargamento contínuo das atribuições, muitas vezes desprovido de critérios. Nesse sentido, o Ministério Público teve um êxito notável – é difícil conceber uma área onde não tenha entrado: mercado financeiro, de capitais, ordem econômica, meio ambiente, infância e juventude, direitos dos consumidores, interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, e até mesmo a ordem tributária.

O Ministério Público cresceu e se expandiu, em decorrência sobretudo de seu trabalho comunitário, da qualificação intelectual e dos projetos inovadores e transformacionais que apresentou à sociedade.

É fundamental a atuação do Ministério Público Federal na área criminal, comandando operações em conjunto com a Polícia Federal. O Ministério Público é o titular privativo da ação penal pública e detém poder investigatório na área criminal, além de exercer o controle externo da atividade policial, embora isso se dê de modo mais burocrático do que efetivo, por falta de estrutura, de meios e de conhecimento.

O Ministério Público brasileiro, em seu formato teórico, é herdeiro de influências portuguesas, francesas, escandinavas e americanas, o que o torna uma figura enigmática, híbrida e, por vezes, incompreensível. O sistema constitucional brasileiro é muito complexo e eclético desde a Constituição de 1891. Rui Barbosa já apontava essa característica – um ordenamento jurídico que recebia influências americanas e, ao mesmo tempo, romano-germânicas.

A questão a saber é: o Ministério Público vive ou não uma crise? Qual questionamento deve ser formulado em relação a ele? E que construção a sociedade deve efetivamente propor para ele? Em primeiro lugar, uma crise existe a partir do momento em que se constata uma disfunção. A sociedade brasileira, sobretudo o grande empresariado nacional, o setor produtivo, parece ostentar importantes reclamações em relação à agenda do Ministério Público. Essas reclamações não têm sido ouvidas por boa parcela da instituição, sob o pretexto de que se trata de segmentos fiscalizados. No entanto, a autocrítica é necessária.

A disfunção que se constata no Ministério Público brasileiro decorre de alguns fatores importantes. Excessos e desvios existem, assim como falta de critérios na atuação, e a insegurança jurídica tem prevalecido em numerosas situações. Nada disso afasta os aspectos extremamente positivos da atividade da instituição na sociedade brasileira, mas reclama uma abordagem crítica.

O primeiro sintoma da disfunção é que o Ministério Público está inserido dentro do setor público – seria ilusão imaginar que pudesse passar incólume pela grave crise de ineficiência do Estado brasileiro. Mais do que de financiamento, trata-se de uma crise de gestão. O Judiciário e o Ministério Público também sentem essa crise. Um dos tópicos que afligem essas instituições ditas fiscalizadoras é que elas não medem suas ações, seus resultados. O próprio Ministério Público não tem indicadores científicos idôneos de suas ações, não consegue aferir sua qualidade.

Hoje, um dos principais indicadores e medidores de meritocracia no Ministério Público, lamentavelmente, são os holofotes que, direta ou indiretamente, representam um grau motivacional para os agentes públicos. É a motivação mais autêntica que alguém pode ter para atuar na instituição, pois atinge o ego, na busca pelo reconhecimento social e político. O holofote é uma ferramenta socialmente legítima, é um reconhecimento, porque não há outra ferramenta consistente. Esse é um sintoma de disfunção que acaba revelando justamente a patologia interna da ausência de meritocracia, que não tem sido trabalhada interna corporis nem no Judiciário nem no Ministério Público.

Não se consegue trabalhar a falta de meritocracia porque as instituições acreditam que não é necessário, pois para elas as pessoas estão ali apenas por puro idealismo. As instituições acreditam que as pessoas, com o sistema remuneratório rígido pelo qual todos ganham de forma idêntica, embora trabalhando de modo distinto, vão funcionar com incentivos no longo prazo, sem um horizonte claro de premiações. Parece-me, portanto, que a base do problema está no regime meritocrático absolutamente precário que reina nas instituições.

Claro que estou apontando simplesmente uma parte dessa sintomatologia, que deve ser aprofundada. A outra parte, não menos importante que essa, diz respeito aos controles, que sofrem de uma lacuna histórica.

Quando foram instituídos o Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional do Ministério Público sem nenhum pudor corporativista, houve uma forte resistência. Muitas vozes se levantaram contra a criação dos órgãos externos de controle, que acabaram não se tornando tão externos assim. Hoje fica cada vez mais escancarada a lacuna no que se refere aos controles internos e externos, necessários para que haja proteção à cidadania.

O que se observa é que há um aumento da atuação do Estado policial sobre o indivíduo, talvez fruto da expansão da influência americana sobre o mundo. Mas também se verifica a necessidade de ampliar o princípio da responsabilidade das instituições fiscalizadoras para que haja maior eficiência no ato fiscalizatório e para que os limites de atuação do Ministério Público, vale dizer, os princípios da legalidade, impessoalidade e unidade institucional, se exerçam sobre a independência funcional e atuem conjuntamente com o dever de probidade administrativa.

Responsabilidades pessoais

O dever de probidade administrativa preside a atuação do Ministério Público, conformando o agir investigatório e fiscalizatório como um todo. O desencadeamento de investigações e de ações civis públicas ou punitivas pode ocasionar prejuízos reais ou potenciais aos destinatários, como danos morais, materiais, prejuízos irreversíveis, quebras de contratos, rompimentos de negócios jurídicos. Tudo isso deve ser cada vez mais equacionado do ponto de vista do princípio da responsabilidade pessoal dos agentes públicos, e não apenas da responsabilidade do Estado, que, no fundo, é a responsabilidade anônima de todos nós. Obviamente, os agentes públicos fiscalizadores podem errar, mas dentro de certos limites toleráveis. Deve-se estimular responsabilidades pessoais por erros intoleráveis.

Recordo uma pesquisa comparativa da década de 1950, que trata da teoria da improbidade administrativa na Itália e na Inglaterra.

Na Inglaterra estava muito mal desenvolvida a teoria da responsabilidade do Estado e muito bem desenvolvida a da responsabilidade pessoal dos agentes públicos. Na Itália, ocorria o contrário. Curiosamente, os ingleses tinham uma menor quantidade de ocorrências contra o Estado, porque havia um fator inibitório mais forte, uma vez que as responsabilidades tinham endereço certo. Na Itália, em tese, o acesso para o cidadão estava mais facilitado, porque o endereço era genérico, direcionado ao Estado, mas a quantidade de ocorrências aumentava. Isso acabava prejudicando indiretamente a cidadania.

No Brasil, esse prejuízo é duplo, sobretudo no caso dos precatórios, porque muitas vezes o cidadão ou demora para receber ou nada recebe, ou seja, nem a garantia genérica da responsabilidade do Estado serve.

Defendo a ideia de ampliar as responsabilidades dos membros das instituições fiscalizadoras. Isso é importante para fortalecer o princípio republicano que se assenta na base do princípio da responsabilidade, que deve fomentar um novo modelo pelo qual o próprio Ministério Público, em um primeiro momento, deve procurar uma atuação mais responsável, focada, prudente, baseada em resultados, e não no espetáculo do processo como meio de produzir efeitos.

Essa responsabilidade maior pode ser do tipo cível, administrativo ou criminal e pode ser buscada incidental ou paralelamente às questões que vierem a ser debatidas na via que tenha sido acionada pela instituição na origem.

A crise se revela também dentro do contexto de um Ministério Público excessivamente fragmentado. Há quem diga que ele se compõe de mais de 12 mil ministérios públicos, porque cada membro da instituição seria um Ministério Publico autônomo. Tal distorção decorreria da indevida exacerbação da independência funcional, a tal ponto que ninguém controlaria a consciência jurídica de um agente ministerial, que agiria ou deixaria de agir com irrestrita falta de vinculação a qualquer tipo de ordem, comando e controle externo. Pode-se dizer que o Ministério Público é uma instituição só de "caciques".

Nesse contexto, teríamos milhares de ministérios independentes e sem controle, com atribuições amplas, irrestritas e poderosas, gerando insegurança jurídica, pois os critérios mudam de acordo com a cabeça de cada um. Esse cenário ocasionaria a erosão da confiança dos grandes investidores e do empresariado nacional, além da crise da segurança jurídica, que é tão importante para os investimentos e para o crescimento do país.

Nova juridicidade

No caso da agenda ambiental, qual é a segurança que se tem para obter um licenciamento? Mergulhamos dentro de novos paradigmas de juridicidade. O Ministério Público passou a ser o substituto do Poder Executivo para determinados atos, é uma nova gestão compartilhada. Consegue-se o ato do Poder Executivo, mas muitas vezes é melhor levar a questão ao Ministério Público, fazer um termo de ajustamento de conduta (TAC) e seguir com a questão, pois nesse caso o empresário tem mais segurança jurídica do que com um instrumento formalizado pelo Executivo, que pode ser atacado por uma ação civil pública.

Essa realidade não vai mudar do dia para a noite, mas paulatinamente, e temos de pensar em que medida. Se chegamos a esse estágio, isso se deve também à crise do Poder Executivo, que é o mais ineficiente segmento do Estado, também contaminado pela ineficiência endêmica. A mudança paulatina pode ser feita por uma gestão dos assuntos através de instrumentos consensuais. O principal deles, não há duvida, é o TAC, um instrumento legítimo, com amparo legal, importante e valioso e eficiente para a sociedade. O empresariado que utilizar esse instrumento talvez consiga reduzir a insegurança jurídica de seus negócios frente a uma realidade que ficou mais insegura com o Ministério Público excessivamente fragmentado.

De um lado, portanto, temos de reduzir a fragmentação do Ministério Público e a ausência de critérios uniformes e, de outro, fortalecer o TAC como instrumento de gestão. É importante articular essa nova realidade, saber dialogar para encarar o novo tipo de gestão compartilhada entre Poder Executivo e Ministério Público, tanto nas grandes questões, que comportam o TAC, como em outras, em esferas litigiosas, que têm igualmente absorvido a chamada interdependência das instâncias.

Finalizo lembrando que os nossos tempos efetivamente lembram Fernando Pessoa, quando diz que "viver é perigoso". Na verdade, Eduardo García de Enterría, meu mestre e orientador de doutorado, acredita na submissão à lógica da lei. Efetivamente, a lei ainda tem uma lógica importante no regime democrático, mas ela já não representa mais a lei que conhecemos na Revolução Francesa. Ela é construída a partir da interpretação que esses outros atores estão fazendo.

A lei tem dois momentos: o do legislador e depois o dos atores, dos operadores jurídicos, que vão dizer qual é o conteúdo da lei. Um ator é o advogado, o outro é o juiz ou a jurisprudência. O mais importante é a jurisprudência. Mas agora temos um novo ator importante que é o Ministério Público, e precisamos também saber o que diz essa instituição para poder fechar um acordo ou fazer um TAC, mas principalmente para resolver a questão e não levá-la ao Judiciário. Porque, em relação ao Judiciário, o cenário é pior ainda em termos de insegurança jurídica.

Debate

NEY FIGUEIREDO – O senhor colocou o procurador geral da República como o todo-poderoso hoje, no Brasil, mas não ouvi nenhuma palavra a respeito do procurador federal, que integra a Advocacia Geral da União. Qual é sua atribuição exata? Ele pertence ao Ministério Público?
Foi afirmado também que o Ministério Público Federal teria o poder de fiscalizar a Polícia Federal e controlá-la. Há uma declaração do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso segundo a qual a Polícia Federal é incontrolável. Em sua opinião, o Ministério Público tem esse controle?

MEDINA OSÓRIO – A Procuradoria Federal é da Advocacia Geral da União. A Advocacia Geral da União não integra o Ministério Público brasileiro, nem da União nem dos estados, mas a carreira da advocacia da União. O mesmo vale para os procuradores federais, que não são procuradores da República, defendem a União.
No caso do controle da Polícia Federal pelo Ministério Público, penso que é muito difícil do ponto de vista prático. A atribuição teoricamente existe, mas não há estrutura. Acho até o contrário: é a Polícia Federal que controla o Ministério Público federal. Eles têm tecnologia e estrutura para isso.

ISAAC JARDANOVSKI – Não entendi bem como se movimenta o Ministério Público, já que, pelo que ouvi, não há uma hierarquia funcional. Geralmente quem aparece sob os holofotes é a Polícia Federal, é o delegado. Como o Ministério Público entra nisso?

NEY PRADO – Nós todos conhecemos o CIEE [Centro de Integração Empresa-Escola], dizem que é a maior instituição do Terceiro Setor na América Latina. Tem 40 anos de existência, já promoveu mais de 6 milhões de estágios e tem uma estrutura física e financeira sólida. Não obstante tudo isso, um promotor, membro do Ministério Público de Presidente Prudente, recebendo uma denúncia de um cidadão de que o estágio estava sendo desvirtuado na sua real finalidade, simplesmente propôs sua extinção. Esse processo está correndo. Então a competência do Ministério Público é individualizada. Quer dizer, a decisão do procurador é abrangente, vale para o Brasil todo. No fundo, o Ministério Público hoje tem mais poder do que os três poderes tidos como soberanos no país. É um excesso de poder.

ISAAC – Então o Ministério Público somente se movimenta se acionado por uma denúncia? Ou pode tomar a iniciativa?

MEDINA – Pode tomar a iniciativa, de ofício.

NEY PRADO – Os procuradores são tidos como salvacionistas. Como o conferencista disse, são uns meninos bem-intencionados que às vezes não conhecem as condições reais de um país tão diversificado. O ex-presidente Fernando Henrique, em conversa informal, afirmou ser vítima de 188 processos. Já vi inúmeras vezes, na TV Justiça, membros do Ministério Público declararem que suas ações não podem ter resultados no Judiciário, mas que querem marcar posições. A partir daí, a insegurança jurídica toma conta. Se não colocarmos um paradeiro nisso, o grande poder no Brasil será o Ministério Público mesmo.

JOSÉ ROBERTO FARIA LIMA – Foi dito que a Polícia Federal é incontrolável e que os meninos do Ministério Público são incapazes de enfrentá-la. Quem é que manda mais então, o Ministério Público ou a Polícia Federal?

MEDINA – Há um paradoxo aí. A Polícia Federal não tem as atribuições que o Ministério Público tem, nem o mesmo poder. Por exemplo, os membros da Polícia Federal podem ser removidos de seus postos pelo Executivo. Ela sofre controles internos e políticos a que o Ministério Público não está submetido. Os membros do Ministério Público são inamovíveis. Outra questão: a Polícia Federal investiga, não ajuíza uma ação. Ela pode se afastar no meio da investigação, mas o Ministério Público não pode. Então quando falamos de um poder, de controlabilidade etc., estamos nos referindo a um poder quase ilícito. A polícia tem um poder real, maior. Mas o poder normativo é do Ministério Público. É difícil controlar a polícia do ponto de vista prático.

NEY PRADO – Se me permite, é a diferença entre o poder da legalidade e o poder da força.

MEDINA – A Polícia Federal tem o poder da força, a polícia como um todo, e para controlar isso é necessário ter estrutura, muita estrutura, do contrário é pura retórica. É muito difícil o controle. É a mesma situação da Polícia Civil, no caso dos estados.

FARIA LIMA – Mas há o receio de que, ao se unir, tornem-se incontroláveis.

MEDINA – Por causa do poder investigatório hoje estão se unindo. Daqui a pouco o próprio procurador da República estará assistindo dentro da delegacia a situações de ilegalidade e compactuando com aquilo. Para investigar melhor, é preciso unir. Mas a união pode gerar paradoxos.

JOSUÉ MUSSALÉM – Vejo algumas coisas positivas também no Ministério Público, como no caso das ONGs que estão proliferando no Brasil, muitas das quais vetores de desvio de dinheiro público. Há fundações nas universidades, além de outras, com fraudes impressionantes. Nesses casos o Ministério Público está cumprindo um papel muito importante. É um lado positivo desse poder. A corrupção no Brasil atinge níveis de epidemia e é preciso que alguém se ocupe disso, não só o Ministério Público mas a imprensa. O Judiciário não tem a velocidade necessária.

MEDINA – Concordo com as observações que foram alinhavadas, porque o Ministério Público efetivamente é uma instituição essencial ao regime democrático, à função jurisdicional do Estado, e deve manter-se como tal. A crise do Ministério Público resulta da falta de unidade na atuação, da inexistência de estruturação de um regime meritocrático e da ausência de controles. O Ministério Público tem de combater a corrupção e o crime, defender os consumidores, o meio ambiente, todos aqueles valores e bens jurídicos que estão na Constituição e na legislação infraconstitucional. Mas tem de fazê-lo com critérios isonômicos e com base no princípio da unidade institucional, pelo qual deve velar de acordo com a norma constitucional. E ele não tem velado porque sua atuação tem sido extremamente dispersiva. A abordagem crítica é necessária. Nós a priorizamos em detrimento de outra que, digamos assim, privilegiasse os aspectos positivos, até porque estes são conhecidos de todos. O que falo sobre o Ministério Público é com o objetivo de fomentar o crescimento da instituição, superar a crise e fazer com que ela vença este momento difícil.

ZEVI GHIVELDER – A Constituição de 1988 beneficiou ou prejudicou as atividades dos diversos ministérios públicos que o senhor mencionou?

MEDINA – O Ministério Público foi beneficiado enormemente em termos de ampliação, do fortalecimento de suas garantias, de suas atribuições, enfim. A Constituição de 1988 foi um divisor de águas. Outro divisor foi a lei complementar de 1981. Antes disso, o Ministério Público era uma instituição menor, muito pequena. Na verdade, o Ministério Público como agente, como titular da possibilidade de investigação no inquérito civil, isso tudo já existia antes da Constituição de 1988. Na Carta de 1988 o Ministério Público ganhou constitucionalização. Essa constitucionalização é tão importante que temos hoje cerca de 300 projetos no Congresso Nacional tentando desconstitucionalizar atribuições do Ministério Público. Um deles propõe a desconstitucionalização por inteiro do Ministério Público, deixando-lhe apenas os poderes infraconstitucionais.

NEY PRADO – Permito-me relatar a origem do poder do Ministério Público. A Constituição de 1988 foi feita com forte preconceito em relação ao regime anterior, que era autoritário e concentrador. Uma forma de evitar abusos por parte do Estado foi criar, em nome da sociedade, um poder controlador. A origem do Ministério Público é exatamente essa. Só que uma sociedade que controla o Estado controla também as políticas públicas e tira do governo sua finalidade, que é produzir riquezas. Então é uma Constituição que se volta para o passado, esquecendo que não pode castrar o futuro. É o que estamos observando, o país está travado.

EDUARDO SILVA – Há alguns anos, fui presidente da Febem [Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor], em São Paulo. Uma tortura que sofri relacionou-se justamente aos promotores. Acabei por concluir que a tarefa deles era criar a crise e respondi a uma quantidade enorme de processos. Penso que o Ministério Público deve existir, tem tarefas importantes, mas sua estrutura necessita de avanços. Não quero tirar a liberdade deles, mas precisariam respeitar a lógica, a disponibilidade do administrador, porque a crise da administração pública é ruim para todo mundo. E a tarefa nossa, de todos os que têm cargos públicos, é o bem do povo. Penso que o promotor pode colaborar muito se entender um pouco mais cada caso. Não basta emitir uma opinião pessoal logo no começo da análise do problema.

MÁRIO AMATO – Hoje vemos que não há respeito dos filhos pelos pais e a mocidade pensa que é melhor ter do que ser. Não será por causa disso que os órgãos da Justiça têm tanta força mas não resolvem coisa nenhuma, postergando todas as soluções? O direito devia ser como um hospital, quem está doente vai lá e se cura.

MEDINA – Será que a crise de valores que vivemos é que desemboca em tudo isso? É bem possível. Mas terá solução? Acredito que sim, porque existem famílias e instituições boas. Não sou pessimista nesse aspecto. Está havendo um contrafluxo nas novas gerações. Alguém falou em liberdade irrestrita da mídia. Não sou a favor disso, acho que tem de haver alguns controles, multas e responsabilidade civil pesada. Caso contrário as pessoas de bem poderão ser prejudicadas.

NEY PRADO – Os behavioristas acreditam que o homem sempre foi o mesmo ao longo do tempo, e que onde houver dinheiro haverá sempre corrupção. A tecnologia é que vai impor ao homem certas restrições.

MEDINA – Quanto à corrupção, podemos reduzi-la a níveis aceitáveis. Existe uma correlação muito interessante entre corrupção e eficiência nas instituições. O que quero dizer é que Mário Amato suscitou uma reflexão sobre os valores básicos. Por mais que façam parte da natureza humana, existe a transgressão, que pode chegar à corrupção.

ZEVI – O senhor falou em controle da mídia, mas esse conceito é muito duvidoso e perigoso. A mídia pode ser facilmente controlada pelos tribunais através de leis já existentes. O que acontece é que as pessoas que se sentem prejudicadas geralmente se intimidam com a ideia de enfrentar a mídia nos tribunais.

MEDINA – Tribunais rápidos e multas mais pesadas, não é?

ZEVI – Não digo tribunais rápidos, digo a lei. Basta aplicar as leis agora existentes com relação à mídia.

MEDINA – Mas hoje temos a internet, novos mecanismos midiáticos. Acho que vale a pena uma reflexão sobre isso.

LUIZ GORNSTEIN – Eu queria que o senhor fizesse uma análise sobre a prisão preventiva, porque parece que ela, em vez de ajudar a investigação, a atrapalha e, em seguida, é rapidamente revogada por tribunais superiores.

MEDINA – O que tem acontecido com as prisões cautelares em geral – a preventiva é uma delas – é que entram em cena os holofotes da mídia. Muitas vezes, como a autoridade já sabe que será difícil obter resultado no processo, ela tenta um efeito aflitivo, gerar desgaste para alguma autoridade judiciária, geralmente do tribunal superior. E isso causa também um desgaste para a pessoa que foi presa. Simultaneamente, obtém-se um efeito meritocrático instantâneo para si próprio, graças aos holofotes. São benefícios imediatos, em contraposição aos incertos, de longo prazo, num processo que vai demorar quatro ou cinco anos. Depois desse tempo tão longo, todo mundo já esqueceu o processo e os holofotes vão para a sentença, para o juiz. Então pedem a preventiva por uma questão pragmática. E isso acontece por falta de meritocracia. Se o sistema oferecesse um benefício forte pelo resultado, talvez fosse diferente.

JANICE THEODORO – A questão que se coloca hoje seria a formação continuada dos integrantes do Ministério Público. Foi utilizada aqui a expressão "os meninos do Ministério Público", revelando pessoas que ainda não tiveram uma formação que lhes permita, diante da circunstância, encontrar o limite do justo. De alguma maneira a conduta teria de ser presidida por um processo de formação e de hierarquização dentro do Ministério Público. Tenho a sensação de que existe um lado pessimista, que são as dificuldades enfrentadas, mas também existe uma reflexão otimista, desde que sejam pessoas bem-formadas.

MEDINA – Com relação ao processo de hierarquização e à estruturação desse processo, esse é justamente o grande princípio da unidade institucional no Ministério Público, o que exige maior racionalização. Esse princípio é o que tem faltado. O problema é o excesso de subjetivização, a dispersão das moralidades individuais.

CARLOS ALBERTO LONGO – Nunca vai haver homogeneidade, o que existe é falta de jurisprudência.

MEDINA – Existe falta de jurisprudência e não se consegue fazer a construção de uma moral universal, hoje, com as 12 mil autoridades dispersas, soltas e soberanas no país.

JOSEF BARAT – A dúvida que me fica é a seguinte. Diante dos três poderes, onde se situa o Ministério Público? Antes, a Procuradoria Geral da República ou as dos estados faziam parte do Executivo e eram defensoras dos interesses do Estado. A Constituição introduziu o conceito da defesa da cidadania, do direito difuso etc. Os poderes, de alguma forma, têm controles. E o Ministério Público, que tipo de controle ele poderia ter?

MEDINA – Nominalmente ele não é poder de Estado, é uma instituição independente, mas tem autonomia e status de poder de Estado. Na verdade, tem sido tratado assim, com todas as honrarias inerentes a essa condição. Há quem diga, como o constitucionalista espanhol Lorenzo Martín-Retortillo, que não importa nominalmente se é poder de Estado ou não, mas averiguar, na teoria constitucional, onde se posiciona, seu status, sua importância. E o Ministério Público, sem dúvida nenhuma, ostenta hoje uma relevância tal no desenho constitucional brasileiro que não se pode negar que está ao lado dos poderes de Estado. Ocorre até um fenômeno muito curioso, que é o fato de juízes federais fazerem concurso para procurador da República, quando antigamente acontecia o contrário. É porque os procuradores ganham mais no início de carreira, têm status fantástico, muitos poderes e circulam por todo o território nacional, enquanto o juiz federal fica circunscrito a uma região.

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