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O interior ainda não atrai os médicos

Não faltam profissionais no país, mas poucos preferem as cidades pequenas

MIGUEL NÍTOLO


Arquivo PB

Em novembro do ano passado, o Brasil ficou sabendo que 455 de seus 5,56 mil municípios não têm médicos, numa estatística divulgada pelo Ministério da Saúde durante o encontro, em Ouro Preto, da Aliança Global para a Força de Trabalho em Saúde (GHWA, na sigla em inglês), organismo criado pelas Nações Unidas para monitorar a falta de profissionais de saúde no mundo e apontar soluções para o problema.

Quando se aborda a questão da má distribuição de médicos em território brasileiro, as pessoas logo pensam, mesmo que instintivamente, no interior do nordeste, região que tem cidades que penam com a falta de infraestrutura e são muitas vezes esquecidas. O levantamento apresentado em Ouro Preto, município mineiro que deu abrigo à reunião da GHWA, e que fora elaborado pela Universidade Federal de Minas Gerais com base em dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), desmente a crença de que a insegurança assistencial é exclusiva de regiões menos favorecidas. No sudeste o problema afeta 112 municípios e, no sul, 116. Mas a situação é, de fato, mais grave no nordeste, que responde pela maior parte das cidades da relação.

É certo que, apesar de todos os percalços enfrentados pela saúde no país, a assistência médica na parte de baixo do Brasil é menos problemática do que na parte de cima. Mas não deixa de ser curioso saber que em São Paulo, a locomotiva da economia nacional, segundo a estatística encomendada pelo Ministério da Saúde muitas cidades não têm médicos, notadamente as pequenas. Na realidade, profissionais de fora dão assistência em seus postos de atendimento, ainda que não residam no local. "Os municípios citados não têm profissionais cadastrados no CNES", explica a assessoria de imprensa do Ministério da Saúde, informando que a listagem publicada em novembro está sendo reavaliada. "Os primeiros números divulgados eram preliminares e a nova relação de municípios sem médicos ainda não tem previsão para sair", esclarece.

"Talvez os dados estejam subavaliados", diz o médico Waldir Araújo Cardoso, especialista em gestão de sistemas e serviços de saúde e secretário de Comunicação da Federação Nacional dos Médicos (Fenam). "Pode ser que o número de cidades sem médicos seja maior, tomando por base o fato de que as informações disponibilizadas para a confecção da estatística nem sempre são confiáveis. O turnover nos pequenos municípios é muito grande e há casos de prefeituras que não têm interesse na divulgação de que estão sem esses profissionais em seus quadros."

Pedro Salomão Kassab, ex-presidente da Associação Médica Brasileira (AMB) e da Associação Médica Mundial, sugere que os números tornados públicos em Ouro Preto podem ter grande significação ou nenhuma. "Por exemplo, terão pouca relevância se a ausência de médicos se referir a pequenas comunidades relativamente próximas a municípios detentores de bons recursos para a saúde." Ex-integrante do Conselho Nacional de Saúde e do Conselho Federal de Medicina (CFM), membro do Conselho Estadual de Educação e atual diretor-geral do Liceu Pasteur, em São Paulo, Kassab, que é pai de Gilberto Kassab, prefeito da capital paulista, afirma que a situação muda de figura, no entanto, se a cidade sem médicos tiver população numerosa e for afastada.

O estado de São Paulo ilustra bem o raciocínio de Kassab. Funcionam em seu território 31 faculdades de medicina, algumas delas localizadas na capital, mas boa parte espalhada pelo interior, situação que motivou o surgimento de importantes polos de assistência médica. Isso sem falar do elevado número de cidades de porte presentes em seu solo e que servem de apoio para municípios menores, especialmente aqueles desprovidos de profissionais de saúde. Pratânia, de 4,5 mil habitantes, e Torre de Pedra, de quase 3 mil, dois municípios paulistas, estão na lista divulgada pelo Ministério da Saúde. São atendidos por médicos de fora e têm a vantagem de estar próximos a Rubião Júnior, distrito de Botucatu, cidade de 120 mil habitantes e importante centro médico que abriga a faculdade de medicina da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) e seu portentoso hospital de clínicas.

Distribuição geográfica

O fato é que as peças não se encaixam: o Brasil ostenta a condição de nação onde é grande, para não dizer elevado, o número de faculdades de medicina em funcionamento. São 176 instituições de ensino estabelecidas em todo o território nacional, com forte presença nos estados do sul – uma estrutura que deu margem à formação dos mais de 330 mil profissionais em atividade no país. Por que, então, faltam médicos em todos aqueles municípios? Levantamento da GHWA mostra que há carências críticas de profissionais em 57 nações, mas o Brasil não faz parte da lista. Atualmente, 59,2 milhões de trabalhadores da área de saúde prestam serviços no mundo, contingente insuficiente para fazer frente ao grave quadro de uma carência mundial de 4 milhões de profissionais. Segundo a Aliança Global para a Força de Trabalho em Saúde, o ideal é um profissional (médico/enfermeiro/parteiro) para cada mil habitantes. "No Brasil, essa proporção é de 1,15 médico para cada grupo de mil", diz Francisco Eduardo de Campos, secretário de Gestão do Trabalho e da Educação do Ministério da Saúde e membro efetivo da GHWA.

"O problema hoje no Brasil não é caracterizado pelo número de médicos, mas pela má distribuição geográfica, motivo pelo qual os gestores encontram dificuldades para a contratação desses profissionais, especialmente para integrar as equipes de saúde da família em regiões mais remotas do país", acentua Campos. Ele afirma que o Ministério da Saúde enfatiza a necessidade de uma política que coíba escolas de má qualidade enquanto incentiva as de boa qualidade, "inclusive objetivando a abertura de novas escolas em regiões carentes, sempre sujeita à análise do Conselho Nacional de Saúde", destaca. De acordo com Campos, ainda que a instalação de escolas médicas nesses lugares não implique necessariamente a fixação local dos formandos, pode vir a estimulá-la e, assim, acabar reforçando a estrutura assistencial na região.

Um exemplo das disparidades no campo da assistência médica entre as várias regiões do país é dado pelas estatísticas do Conselho Federal de Medicina: em 2007, havia um médico para cada 1.583 habitantes no Maranhão contra um para 275 moradores do Rio de Janeiro e um para 400 em São Paulo. Os profissionais cultivam o hábito de se estabelecer nos grandes centros urbanos, em boa parte das vezes nas capitais, o que é visível em todo o país, mas facilmente confirmado em São Paulo e no Rio de Janeiro. "A situação em meu estado não é diferente da que se vê em outros pontos da nação", conta a médica Ione Lopes, professora da Universidade Federal do Piauí e representante local da Comissão Nacional de Residência Médica. Ela salienta que Teresina concentra um número elevado de médicos qualificados ante uma quantidade irrisória de profissionais nas cidades do interior. "Atualmente, estão registrados no Conselho Regional de Medicina do estado 3.872 médicos, 2.599 deles em pleno exercício da profissão. A capital reúne 1.970 profissionais e os outros 224 municípios piauienses se arrumam com apenas 629 médicos", informa.

A situação não é diferente, por exemplo, no Paraná. "Aproximadamente um em cada cinco municípios do estado não tem médico que resida no local ou, então, dispõe de somente um", esclarece Miguel Ibraim Abboud Hanna Sobrinho, professor do Departamento de Clínica Médica da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Ele informa que o paranaense conta com um médico para cada 636 habitantes e que a capital, Curitiba, concentra a metade dos profissionais em atividade no estado.

"Trabalhar no interior, numa comunidade pequena, tem vantagens e desvantagens", assegura o clínico geral Ary Gomes Filho, de Lavras do Sul, município gaúcho de pouco mais de 8 mil habitantes, distante 320 quilômetros de Porto Alegre, povoado por descendentes de portugueses e espanhóis e cuja economia gira em torno da agropecuária. As vantagens, segundo ele, "residem no reconhecimento do trabalho que é desenvolvido, no fato de poder conviver diariamente com os pacientes e acompanhar a evolução, seja no tratamento clínico, seja no cirúrgico". Já as desvantagens, diz, consistem na distância dos grandes centros médicos, no suporte técnico falho (falta de recursos de última geração, tais como tomografia computadorizada, ressonância magnética e unidades de terapia intensiva) e na baixa remuneração salarial. "Isso sem falar na ausência de hospital e, por extensão, de laboratório de análises clínicas, pronto-socorro equipado com monitor cardíaco, desfibrilador, aparelho de eletrocardiograma, setor de raios X, ecografias, centro obstétrico e cirúrgico", acentua. Gomes Filho ressalva porém que em Lavras do Sul, onde residem outros dois profissionais, a municipalidade tem dado integral apoio à área de saúde, investindo na aquisição de novos equipamentos e dotando o hospital local de aparelhagem só presente em casas de saúde de cidades grandes.

"O pior que pode acontecer ao médico é a frustração profissional que decorre da falta de equipamentos e da ausência de uma estrutura complexa na área de trabalho", adverte José Carlos Christovam, geriatra, professor da Faculdade de Medicina da Unesp, em Botucatu, e ex-plantonista em pequenas cidades. Ele diz que a atividade de mera triagem desestimula o profissional, que acaba perdendo o interesse pelo trabalho. "O ideal é que ele resolva entre 80% e 90% dos atendimentos. Essa, afinal, é a orientação da Organização Mundial da Saúde", lembra.

Insegurança profissional

A questão da má distribuição dos profissionais da área médica motivou dois pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) a publicar um livro sobre o tema. Rumo ao Interior, Médicos, Saúde da Família e Mercado de Trabalho, de Romulo Maciel Filho e Maria Alice Fernandes Branco, ambos doutores em saúde coletiva, é resultado de um trabalho de pesquisa que ressalta um fato desolador: o problema é, hoje, tão grave quanto no passado. Pouco mudou a despeito de todas as tentativas já levadas a efeito. Acontece que a ideia de fixar residência em locais afastados continua não agradando aos médicos. É sabido, por exemplo, que um dos grandes obstáculos à consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS) é a distribuição geográfica dos profissionais e serviços de saúde, ainda fortemente aglomerados nas regiões sul e sudeste. Segundo o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, o problema ocorre por motivos como a insegurança profissional. "Há uma tendência não só de a tecnologia hospitalar mais complexa se concentrar em determinadas regiões, mas de os médicos acompanharem essa concentração de riqueza", diz.

Temporão lembra que foram executadas até aqui diversas ações oficiais com a ideia de minimizar o problema, caso do Programa Saúde da Família (PSF), criado em 1993 e que é conduzido, atualmente, por mais de 28 mil equipes. Convém mencionar, ainda, os quatro programas analisados por Romulo e Alice em seu livro: o Projeto Rondon, o Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento (Piass), o Programa de Interiorização do SUS (Pisus) e o Programa de Interiorização do Trabalho em Saúde (Pits). Isso sem falar do Pró-Saúde (treinamento de médicos para a rede pública), do Telessaúde (educação continuada pela internet e ajuda nos diagnósticos) e do Projeto de Formação de Agentes Comunitários de Saúde. Com mais de 220 mil agentes em atividade em todo o território nacional, realizando atividades educativas e visitas domiciliares, este último é um dos poucos sistemas que incluiu no atendimento o acesso a serviços de saúde bucal.

"Já nos anos 1960 se discutia muito como promover a ida de médicos para o interior", lembra Mourad Ibrahim Belaciano, presidente da Associação Brasileira de Educação Médica (Abem). Ele observa que um estudo do médico sanitarista Carlos Gentile de Melo mostrou a correspondência entre a presença de médicos instalados em municípios do interior e a existência de agências bancárias, demonstrando a relação entre a prática médica e o desenvolvimento econômico e social – conforme o relato do ministro Temporão – e tornando evidente o fato de que a medicina e seu exercício profissional não são ocorrências isoladas, mas fenômenos sociais. Por outro lado, lembra Belaciano, a experiência brasileira de interiorização de serviços de saúde foi organizada institucionalmente por intermédio do Serviço Especial de Saúde Pública (Sesp) e do Ministério da Saúde, uma expressão de política de Estado que, em decorrência de acordo com os Estados Unidos, deu lugar à ocupação da Amazônia (na época da produção da borracha) e acabou alcançando muitos municípios do interior do nordeste. "Ou seja, ficou patente já naqueles idos como a má distribuição de médicos é também uma questão política, de governo", acentua Belaciano, que é professor do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília e diretor da Escola Superior de Ciências da Saúde da Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde do Distrito Federal. "Passados 50 anos, o Brasil mudou, tem outra economia e novas necessidades sociais, mas a essência do fenômeno da interiorização do médico ainda é a mesma", alerta ele.

No entender de Helvécio Miranda Magalhães Júnior, ex-secretário da Saúde de Belo Horizonte e ex-presidente do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde, a dificuldade de fixação de médicos hoje é uma realidade mesmo nos centros mais ricos. "Há a questão da oferta numérica, da adequação do perfil profissional, da não-coerência entre as demandas do SUS e o padrão dos cursos de medicina, das condições de trabalho, da expectativa profissional de crescimento muitas vezes não cumprida e da violência a que o profissional pode se expor em determinadas regiões", enumera.

Atualização à distância

O isolamento profissional, lembra Magalhães Júnior, é um dos importantes motivos da não-permanência dos médicos em cidades menores. "Especialmente no caso de locais distantes dos grandes centros urbanos, a problemática falta de acesso à atualização profissional é, de longe, um dos fatores que mais pesam na decisão do médico", alerta também Waldir Cardoso, da Fenam. "Felizmente, temos hoje muitas ferramentas de atualização à distância incentivadas pelas entidades médicas e por instituições públicas." Cardoso lembra que as prefeituras podem disponibilizar o acesso à internet e também assumir a responsabilidade pelo custeio da participação do médico em eventos científicos de atualização. "É preciso dar maior segurança aos médicos que optam pelo trabalho no interior do país, pois assim eles se sentirão parte de um grupo profissional maior, mais amplo e com retaguarda", concorda Belaciano. "É por isso que nós, que trabalhamos pelas mudanças na educação médica, propugnamos por uma sólida formação geral em graduação, para que o médico formado com tais características tenha a capacidade de continuar recebendo instruções específicas, independentemente da especialidade escolhida", diz.

Belaciano acrescenta que as condições de vida e de salário exercem atração sobre o mercado de trabalho dos médicos, da mesma forma que o contexto no qual se dá a prática profissional e a existência ou não de uma política de saúde local. Tudo isso, segundo ele, também influencia a decisão do médico ante a opção de aceitar as propostas do interior ou simplesmente sair à procura de um emprego na cidade grande. "Além das condições específicas para o exercício profissional se faz necessário discutir uma carreira de estado", sugere o médico paranaense Miguel Ibraim. "Para que possa se estabelecer no município é importante que ele tenha a segurança de que, ao terminar o mandato do gestor que o contratou, seu emprego continue assegurado, que a localidade lhe permita constituir família com adequadas condições de educação para seus filhos e que tenha oportunidades de lazer e meios para dar sequência a seu aprimoramento profissional e pessoal." As condições de trabalho igualmente são essenciais para que se ofereça sempre o melhor para as pessoas, destaca Miguel Ibraim, que é também presidente do Conselho Regional de Medicina do Paraná. O professor da UFPR diz que, quando se trata de saúde, não devemos aspirar apenas ao mínimo ou improvisar soluções. "Precisamos oferecer sempre o melhor. Se não pensarmos assim não mudaremos o país", diagnostica.

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