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BRINCAR É COISA SÉRIA


Falta de segurança, novas tecnologias, a vida atribulada das grandes cidades e longa jornada de trabalho dos pais são alguns dos fatores que influenciam as atividades lúdicas das crianças do século 21


Toda criança tem o direito ao descanso e ao lazer, e a participar de atividades de jogo e recreação, apropriadas à sua idade, bem como à participação na vida cultural e das artes.  O conteúdo acima, exposto no artigo 31 da Convenção sobre os Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas (ONU), é bem claro: toda criança tem o direito de brincar. Seja em casa ou na escola, ela pode e deve ser livre para mergulhar em sua imaginação. No entanto, nem todos têm essa percepção. Muitos pais e professores ainda  interpretam as brincadeiras, fundamentais para o desenvolvimento infantil, apenas como diversão. “A brincadeira é a linguagem da criança”, diz Marilena Flores, presidente da Associação Brasileira Pelo Direito de Brincar (IPA/Brasil). “É o meio pelo qual ela se relaciona com o mundo.”

É por meio dessa relação lúdica que a criança aprende, fortalece o corpo, exercita a coordenação motora e adquire habilidades úteis para toda a vida. Segundo a pesquisadora de cultura da infância Lucilene Silva, pular corda, por exemplo, pode ser um ótimo exercício de coragem. “Primeiro a gente observa o ritmo, e depois se encoraja a entrar”, diz. “Pula duas, três, vinte vezes, até que começa a pular agachado e de um pé só. Tudo isso é uma preparação para os desafios que vamos enfrentar.” A especialista explica ainda que em brincadeiras coletivas, como uma partida de futebol, os pequenos aprendem a conviver com os colegas e a colaborar com eles. Entendem que, se não seguirem as regras, ficarão de fora do jogo e que o trabalho depende do grupo, e não só de uma pessoa. “Quando brincam com outras crianças, eles discutem e negociam”, analisa. “Decidem quem joga primeiro, quais são as regras e as punições para quem perder. Um grande exercício de socialização.” 

Mesmo quando as brincadeiras acabam em choro, raiva ou desentendimento, são experiências positivas para as crianças, pois elas põem para fora sentimentos com os quais estão aprendendo a lidar. “Quando você tem uma perda, o melhor é chorar para se livrar da sensação ruim”, retoma Marilena Flores. “Não devemos guardá-la.”

Brincar nada mais é do que experimentar. É testar objetos e texturas, tocar, cheirar, mexer, bagunçar, imaginar. Tudo isso é um processo de aprendizagem que, segundo o livre-docente em cultura e educação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) Marcos Ferreira Santos, é extremamente importante para o ser humano, e não se limita à infância. “No laboratório, por exemplo, os cientistas trabalham com ensaios, acertos e erros”, diz o professor. “É também um mundo de brincadeiras que, obviamente, são registradas”, diz. Tal conceito é fundamental para transformar a ideia de que a atividade lúdica é secundária e dar a ela a sua devida importância. “É preciso acabar com essa relação de parar de brincar para fazer coisa séria”, diz a pesquisadora de brinquedos e brincadeiras infantis, Renata Meirelles. “Brincar é muito sério.” 


Aprender a brincar
A longa jornada de trabalho dos pais, a violência dos grandes centros urbanos e o advento das novas tecnologias afetaram o modo de brincar das crianças. Sem poder ficar na rua por falta de segurança, elas permanecem muito tempo dentro de casa – muitas vezes pequenos apartamentos –, com um espaço limitado para atividades lúdicas. Uma das principais consequências é a falta de contato com a natureza, essencial para o desenvolvimento. “Ao ar livre, a criança se desenvolve fisicamente quando ela corre, sobe em árvore, pisa na terra, brinca com água”, diz Marilena Flores. “Em casa, é mais difícil.” Já com a falta de tempo dos pais, algumas brincadeiras vão sendo cada vez menos lembradas. É o caso das cantigas de roda, tradicionalmente passadas de uma geração para a outra. “Quando a mãe estava mais presente ou a criança brincava na rua, ela tinha um repertório maior de brincadeiras”, diz a pesquisadora Lucilene Silva, que trabalha com o registro de brincadeiras e a divulgação de cantigas de roda tradicionais. “Isso acontece em menor escala nas cidades do interior, onde a troca de experiências ainda é maior.”


Tecnologia na medida
A televisão e os jogos eletrônicos, como tudo, podem ser prejudiciais se usados em excesso. “Esses brinquedos não permitem a criação, a elaboração do personagem, como acontece quando a menina brinca de boneca ou quando ouve uma história”, diz Lucilene.

Apesar de muitos não poderem alterar sua rotina de trabalho, não terem como morar em uma casa com um grande quintal ou tirar o videogame de circulação, os pais podem melhorar muito a qualidade do brincar dos pequenos com medidas simples. “A primeira coisa é retomar a sua própria infância”, diz Lucilene. “Lembrar do que brincava, do que mais gostava e pensar no que a criança precisa também.” Para compensar a falta de espaço, os pais devem levar os filhos para brincar em áreas ao ar livre e, de preferência, com natureza abundante. Seja o playground do prédio, parque público ou clube. Mesmo dentro de casa, o ambiente pode ficar bem mais convidativo se for complementado com elementos naturais, como um canteiro de pedras ou um jardim que possa ser usado à vontade. “Essa relação de exploração do espaço é importante para o desenvolvimento da criança”, diz a especialista em brinquedos e brincadeiras Renata Meirelles. 

O videogame e o computador não precisam ser banidos, mas devem ser usados com moderação, e não nas doses que as crianças exigirem. Além do controle, brinquedos eletrônicos – sempre tão atrativos – devem ser dados às crianças mais velhas, com capacidade de compreensão maior, e evitados na primeira infância. “Quanto mais cedo elas se envolverem com esses recursos, maior a chance de elas se afastarem das brincadeiras com contato corporal”, afirma Renata.


Todo mundo junto
Além de acompanhar, estimular e dar condições para a brincadeira, os pais devem participar delas. “Quando a mãe brinca junto, a criança se sente totalmente aceita”, diz Marilena. “O compartilhamento desse momento de alegria ajuda a desenvolver a autoconfiança.” Ou mesmo quando não tiverem como parar para brincar, os pais podem – e devem – deixar as crianças se envolverem em atividades manuais, como cozinhar e jardinagem. “O adulto é uma referência importante”, complementa Renata. “Não precisa ficar de fora, pode fazer atividades junto com os filhos.”

A escolha do brinquedo também é muito importante. Especialistas são unânimes em lembrar que os mais simples, como um jogo de empilhar, um pião e até um simples galho de árvore, são os que proporcionam experiências mais interessantes, pois exercitam muito a imaginação da criança. Mesmo que a loja de brinquedos ofereça pista de corrida e o posto de gasolina para quem quer brincar de carrinho, é interessante deixar que os pequenos construam seu próprio universo. “O mercado de brinquedos sempre antecipa a necessidade das crianças, mas não é isso que eles precisam”, garante Renata.

A quantidade de brinquedos e o seu grau de sofisticação não têm nada a ver com a qualidade da brincadeira. Pelo contrário. Muitos bonecos, carrinhos e jogos entulhados em um quarto pequeno podem ser sufocantes. E, muitas vezes, os melhores brinquedos são tão simples que nem precisam ser comprados. “Quando a criança transforma a panela em um carro, é um processo muito mais criativo”, continua Renata. A pesquisadora, que estudou brincadeiras em áreas rurais, conta que, em alguns locais onde os brinquedos industrializados são raros, as crianças se divertem muito com objetos encontrados na natureza, como pequenos galhos e terra. “Essa interação com a natureza é muito saudável e faz parte da cultura da infância.”

 


Era uma vez...
Sesc Santana monta exposição inspirada no universo dos irmãos Grimm
 
A magia de contos populares como A Branca de Neve, A Gata Borralheira, João e Maria, Chapeuzinho Vermelho e Rapunzel tomou conta do Sesc Santana. A exposição Quem Quiser que Conte Outra – Irmãos Grimm recria o universo das principais histórias registradas pelos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm em vários locais do Sesc Santana.

Na Área de Convivência foi montada uma floresta, ambiente presente em quase todas as narrativas da dupla, além do barco citado no conto Ganso de Ouro, a mesa usada pelos sete anões, a casinha de João e Maria e o esquife da Branca de Neve. Foram usados materiais como fitas e arranjos de flores – presentes na história da Chapeuzinho Vermelho – pelúcia, para lembrar o pêlo do Lobo-Mau, e penas de ganso falsas. Na entrada principal, uma torre feita de livros convida à leitura.

Ao passar pelo túnel que dá acesso à Área de Convivência 2, o visitante assiste a projeções no espelho mágico da madrasta da Branca de Neve, encontra objetos como os vestidos da Cinderela, vitrais, coroas, entre outros. Apesar de dar referências de alguns dos principais personagens, a mostra não os caracteriza com detalhes. “A ideia é justamente estimular que as pessoas criem suas próprias histórias”, diz a técnica da unidade e coordenadora da mostra, Rovena Verona Pigari.

Na parte externa, o túnel da piscina virou abrigo de fadas, bruxas, anões, duendes, unicórnios e outros seres imaginários. No deque, onde foi montada a tipografia dos irmãos Grimm, as crianças podem se divertir com um painel de letras. Referências às histórias Alfaiate Valente e Os Músicos de Bremen podem ser encontradas no quiosque e no jardim.

Para complementar a mostra, a Cia Alumiar apresenta intervenções e contações de histórias todos os sábados, domingos e feriados, a partir do dia 9 de janeiro, no projeto Alumiando Contos de Grimm. A exposição fica em cartaz até o dia 28 de fevereiro.

 

 


SESC Curumim
Programa do Sesc que atende crianças de 7 a 12 anos completa 22 anos
 
Desenvolver linguagens artísticas, como música e teatro, por meio de brincadeiras é o objetivo do Programa Sesc Curumim, em andamento nas unidades do Sesc há 22 anos. Destinado a crianças entre 7 e 12 anos, prioritariamente dependentes de trabalhadores do comércio, o programa atende anualmente cerca de 3.200 crianças.

Nos encontros de três horas, que acontecem de duas a quatro vezes por semana, as crianças experimentam diferentes linguagens em atividades como produção de jornal e revista, vivências de música, produção de filme, além de esportes aquáticos, atividades corporais e muita brincadeira. No projeto, a educação é entendida como um processo de formação integral, e não somente uma habilitação técnica ou conhecimento científico. É um espaço onde não há hierarquia entre o saber acadêmico e aquele proveniente da cultura popular.

Para alcançar o objetivo de educar de forma democrática e horizontal, o programa estabelece as seguintes premissas: reconhecer a criança como um ser em formação, que deve ser respeitada em sua singularidade; considerar que todo exercício da cidadania deve ser articulado com os valores do universo infantil; reconhecer o direito da criança à informação sobre todos os aspectos de sua existência individual e social; reconhecer a existência da cultura da infância, que tem a brincadeira como principal linguagem de relação com o mundo.


Aula de infância
Encontro no Sesc Ipiranga debate a brincadeira no ambiente escolar

Com o objetivo de discutir a importância do brincar nas escolas, o seminário Brincar: Práticas Diferenciadas no Espaço Escolar reuniu dez especialistas em educação infantil no Sesc Ipiranga, em novembro. Questões como a qualidade do brincar, o tempo e o espaço disponível para as crianças, adequação das brincadeiras, contato com a natureza e a integração entre as faixas etárias foram postas em debate.

Realizado em parceria com o Instituto Sidarta, o seminário baseou-se em um estudo de dois anos que coletou dados nas escolas públicas sobre o espaço oferecido para as brincadeiras. “As instituições ainda são muito focadas no conteúdo pedagógico, em brincar para aprender alguma coisa”, diz a coordenadora de projetos do Sidarta, Soraia Saura. “Queremos descolar o foco para a criança e a brincadeira em si mesma.”

Para a plateia, formada basicamente por professores de educação infantil, foram sugeridas práticas como ampliação do tempo e espaço para o brincar nas escolas, contato com elementos da natureza e participação do professor como mediador das brincadeiras. “É importante observar a criança brincando, porque é quando ela demonstra quais são suas vontades e necessidades”, afirma Soraia.

Entre os especialistas que participaram dos debates estiveram presentes Marilena Flores, presidente da Associação Brasileira pelo Direito de Brincar (IPA/Brasil); Marcos Ferreira Santos, livre-docente em cultura e educação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP); Renata Meirelles, pesquisadora de brinquedos e brincadeiras infantis e coordenadora do Programa Brincar do Instituto Sidarta; Adriana Friedman, co-fundadora da Aliança pela Infância no Brasil.

 


Luiz Henrique Pereira da Silva


Diferentemente da maioria das crianças, os programas de televisão a que Luiz Henrique, 10 anos, mais assiste são os telejornais. “Adoro ver notícias, muito mais que desenhos”, diz ele. Fora das telas, seus programas preferidos são as atividades de música do Programa Sesc Curumim, no Sesc Santo André, localizado na região do Grande ABC, brincar de esconde-esconde com os amigos da rua e enfileirar seus carrinhos em um congestionamento imaginário. Entre as dezenas de miniaturas, o Chevrolet SS roxo é o grande xodó: “Não deixo ninguém encostar, tenho o maior ciúme”. 

 


Catarina Messias Alves
 
Catarina, 10 anos, usa diferentes cômodos da casa para cada tipo de brincadeira. Na sala, ela coloca suas bonecas sentadas e, com a ajuda de duas pequenas lousas, brinca de professora. Na copa, separa os produtos enlatados, coloca preço e usa sua máquina registradora de plástico para brincar de supermercado. Para andar de patins, sua atividade preferida, ela usa a garagem, os corredores e, quando é possível, se diverte com eles no parque Villa-Lobos, na Zona Oeste de São Paulo. No computador, ela gosta de usar o programa de mensagens instantâneas e ver clipes no Youtube. Mas, segundo sua mãe, Angélica, não fica lá por muito tempo: “Ela enjoa logo, gosta mais dos seus próprios brinquedos”, garante.

 


Fabio Daniel Anastácio Fernandes
 
Desinibido e muito comunicativo, Fabinho, 11 anos, se diverte com diferentes turmas de amigos. Brinca com as primas, joga bola com os amigos da rua, e até a mãe, Maria José, participa de algumas das suas brincadeiras. No Programa Sesc Curumim da unidade Interlagos, Zona Sul de São Paulo, ele adora as atividades de capoeira e de circo. Sua grande paixão, porém, é o futebol. A bola feita com sacos plásticos e papel que ganhou do avô há anos é seu brinquedo preferido. Santista roxo, ele já chegou a chorar quando o time perdeu e está economizando para comprar uma camiseta oficial. “Depois da minha família, o futebol é o que mais amo”, diz Fabinho.