Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Reservatório de energia

Palestra e debate com a consultora argentina Mónica Corullón sobre a importância do trabalho voluntário

MÓNICA CORULLÓN – Vou começar fazendo uma citação. Max Dante, na justificativa para a implantação do programa de voluntários do Projeto Travessia, disse: "As organizações da sociedade devem legitimar os espaços democráticos, qualificando sua ocupação por cidadãos e entidades que representem verdadeiramente interesses e necessidades coletivas. Assim estarão também se legitimando como organizações representativas da sociedade. Mas, ao mesmo tempo em que delas se demandam ações efetivas e eficazes, precisam também responder à disponibilidade de talentos, recursos e serviços, que, solidários à sua missão, se colocam como potencialidades". Isso é um convite a que as instituições não se fechem em si mesmas e aceitem a participação cada vez maior da sociedade.

O Programa Voluntários é um dos quatro programas inovadores do Conselho da Comunidade Solidária. Esse órgão, presidido por Ruth Cardoso, conta com cinco ministros de Estado e 28 membros da sociedade civil. É um conselho que pensa ações coordenadas e criativas, baseadas sobretudo na parceria. Além de assessorar a área social do governo, o órgão decidiu testar alguns modelos de projetos nos quais acreditava. São quatro programas. Um é a Universidade Solidária, que leva alunos das universidades a municípios menos favorecidos para um trabalho de imersão de um mês mais ou menos. Outro programa é a Alfabetização Solidária, dedicada a adultos, cuja previsão é alfabetizar 500 mil adultos este ano, um trabalho de vulto. O terceiro é a Capacitação Solidária, um projeto muito engenhoso em que, com aporte da iniciativa privada, se monta um fundo destinado a "premiar", entre as organizações não-governamentais (ONGs) dedicadas a jovens, as melhores atividades. E o quarto é o nosso, o Programa Voluntários.

Gestos voluntários na verdade não são novos. Eles existem desde que o homem existe. O que é novo no Brasil é o fato de considerar essas iniciativas dos cidadãos como mais uma contribuição ao combate contra a exclusão social. Voluntariado para nós não é apenas o trabalho assistencial de ajuda às populações menos favorecidas. É mais amplo. O conceito inclui inúmeras iniciativas ligadas à área da cultura, do lazer, do meio ambiente, etc. O voluntário de hoje é inquieto, não é acomodado. Ele não se contenta com uma obra pequena, sente que faz diferença, está disposto a mudar.

Aberto então a essas mudanças e decidido a erradicar alguns males históricos como o assistencialismo, o paternalismo, a corrupção, etc., essas mazelas presentes em toda a América Latina, o conselho resolveu propor um amplo trabalho de sensibilização e organização da sociedade civil. Os objetivos principais são devolver à própria sociedade o protagonismo no desenho do futuro e disseminar o conceito de parceria. Ou seja, todos, inclusive o poder público, juntos podem atacar melhor os problemas sociais.

Tudo começou quando o conselho pediu à Fundação Abrinq um estudo sobre o caso. Na ocasião eu era assessora de planejamento da fundação e fui incumbida de efetuar um levantamento inicial sobre o voluntariado no Brasil. Primeira constatação: não havia nenhum livro escrito em português sobre o assunto. Pesquisei então nas universidades e descobri uma única tese de mestrado sobre filantropia feita no começo do século e uma de doutorado ainda em curso. Enfim, não sabíamos por onde começar. Olhamos então para o resto do mundo para ver como funcionava esse sistema e descobrimos que em mais de 135 países ele se organizava através de centros de voluntários. Adquirimos cerca de 80 livros publicados por norte-americanos, canadenses e europeus, e a partir daí começamos a coletar dados sobre o assunto. Um seminário foi organizado pela Fundação Abrinq, e compareceram mais de cem instituições, majoritariamente de São Paulo. Foi um encontro em que fazíamos as perguntas e ouvíamos as respostas. Dessa maneira conseguimos reunir informações, descobrir o que as instituições que lidam com voluntários pensavam sobre as relações entre eles, etc. Com base nessa pesquisa, detectou-se a possibilidade de catalisar o esforço do voluntariado. A grande surpresa foi descobrir que a Pastoral da Criança tem um exército de 200 mil voluntários, 95% dos quais são mulheres, quase 98% das classes C e D, e que há agentes comunitários de saúde, cuja tarefa é pesar bebês de zero a seis anos, ensinar dicas sobre soro caseiro, etc., atendendo a 2,5 mil municípios e a mais de 3 milhões de crianças. Tudo isso em trabalho voluntário, e um tipo de ação que não suspeitávamos que existisse.

Há dois anos, alguém se lembra de ter ouvido ou visto a palavra "voluntário" na mídia – nos jornais, na televisão? Ela estava apagada de nossa memória, estava absolutamente desqualificada. Havia o preconceito, segundo as palavras de centenas de pessoas, de que trabalho voluntário era aquela atividade realizada por senhoras da elite desocupadas que, cansadas dos desfiles de moda, faziam chazinhos de caridade. É uma caricatura, mas muito cruel. Era assim que se pensava. Foi fantástico descobrir que no Brasil esse paradigma não correspondia à realidade. A Pastoral da Criança está em atividade há 15 anos e continua crescendo, com outras inúmeras iniciativas.

Mas como definir o voluntário, o voluntariado? Depois de muita discussão, o programa escolheu uma definição. Existem várias. A ONU, por exemplo, fala que voluntário é o cidadão que, movido pela vontade de participação, decide dedicar-se sem remuneração a causas sociais e humanitárias. Depois de muito repensar, sugerimos esta outra, que é a definição com a qual trabalhamos há três anos: voluntário é o cidadão que, motivado pelos valores de participação e solidariedade, doa seu tempo, trabalho e talento de maneira espontânea, não remunerada, para causas de interesse social e comunitário.

Estudamos também as motivações que levam as pessoas a ser voluntárias. As respostas foram as mais variadas, mas poderíamos tentar sistematizá-las em duas grandes áreas. Uma é a motivação pessoal, a resposta a uma inquietação interior, que nos leva a agir quando nos deparamos com alguma situação de sofrimento. Esse impulso solidário se manifesta calcado em valores espirituais, especialmente de quem tradicionalmente pratica a religião. Estudamos um pouco a história das religiões e descobrimos que todas elas têm a caridade, a responsabilidade pelo próximo, a ajuda ao próximo como seus grandes fundamentos. O espiritismo, o judaísmo, o islamismo, o cristianismo, as religiões africanas também, todas valorizam o espírito de comunidade, a ajuda aos outros.

Outra motivação é a social. É o voluntário que, ao se deparar com uma injustiça, com uma realidade que o incomoda, engaja-se e decide atacar as causas do problema.

Essa reflexão nos levou até a alguns questionamentos. Por exemplo: haverá algum paralelo ou convergência entre militância e voluntariado? Essa pergunta surgiu, e para responder a ela entrevistamos militantes, ativistas políticos, defensores da causa ambiental. Dois anos atrás, as respostas eram muito engraçadas: "Voluntário, eu? Deus me livre. Não me confunda". Havia uma rejeição à palavra. Por quê? Não sei. Preconceito, desinformação ou a palavra assustava por associar-se a uma coisa mais desvalorizadora. Arriscamos dizer que tanto o voluntariado como a militância têm algo em comum: ambos partem da emoção, indubitavelmente. No caso do voluntário é a compaixão, no do militante é a indignação. Mas se é uma emoção, então é um agir a partir de um impulso emocional. O militante tem uma visão crítica da sociedade e tenta atuar em causas mais estruturais, buscando modificá-las. O voluntário é aquele que vai dar banho em uma criança com Aids, por exemplo. Realiza uma tarefa que pode parecer menos relevante para a mudança da sociedade, mas ele realmente acredita que, ao fazer isso, muda alguma coisa e está convicto de que ele também faz diferença. Isso é muito interessante porque é o que realimenta a motivação sempre.

A motivação inicial pode ser emocional, mas, depois de ter falado com muitas pessoas, acreditamos que, se essa motivação emocional não for alimentada com a conscientização natural dos problemas e de suas causas, tende a esmorecer, e esse voluntário se cansa e depois desiste. Então a conscientização real da importância do que ele está fazendo é um processo que toda instituição que o acolhe deveria ter em conta.

Há uma frase muito interessante de Zilda Arns, presidente da Pastoral da Criança e novo membro do Conselho da Comunidade Solidária. Ela diz: "No caso do voluntário, a doação não é apenas dar, mas ser e partilhar o que se é". É uma frase forte. Ela qualifica o voluntário como um ser humano consciente de si mesmo, com bom nível de autoconhecimento e equilíbrio. É claro que essa frase está profundamente arraigada em um sistema de crenças e valores baseados na religião.

Para finalizar, acreditamos que, quando os indivíduos fazem esforços voluntários, ajudam não apenas a causas ou pessoas isoladas. Eles próprios vivenciam uma transformação e, ao se transformarem, provocam mudanças no entorno, na instituição ou na comunidade. Vê-se em muitos países que um clima de compaixão e confiança envolve toda a população, fato que acaba sendo muito positivo. É o espírito de companheirismo. Numa época em que a valorização do indivíduo está ameaçada pela impessoalidade das grandes instituições, empresas, globalização inclusive, a valorização da ação individual pode parecer um saudável contraponto, mental e espiritual, de sobrevivência.

Contamos com a consultoria internacional da Points of Light Foundation, dos Estados Unidos, e The United Way, do Canadá. Dissemos a eles que no ano passado, em 18 de fevereiro, foi sancionada a lei do voluntariado. Eles riram muito, não entendiam como o país precisa de uma lei para definir o que é um voluntário, não faz sentido. Os italianos têm uma lei fantástica, mas os americanos não. Então fomos discutir esse estranhamento. Depois de muita conversa descobrimos que se trata de um contexto cultural, e nos arriscamos a dizer que no contexto anglo-saxão, especialmente Estados Unidos e Canadá, o voluntariado está intrinsecamente incorporado à cultura, baseado num fortíssimo espírito comunitário, enquanto no voluntariado brasileiro esse espírito está um pouco "desdesenhado", difuso.

Tivemos que fazer um lobby mais ou menos forte porque muitas instituições, especialmente do nordeste, faliram, porque voluntários mal-intencionados alegavam vínculo empregatício, causando prejuízos pesadíssimos. Então em 18 de fevereiro do ano passado foi promulgada a lei do voluntariado, que define o que é o voluntário, declara que a atividade não gera vínculo empregatício e sugere a assinatura de um termo de adesão. Como todos sabemos, esse termo de adesão não tem valor legal nenhum, é um contrato particular. Mas, numa última instância, um juiz encarregado de julgar a causa, ao ver que o voluntário havia declarado estar ciente da lei, entenderá o pedido de vínculo como, no mínimo, má-fé. As instituições estão fazendo esse contrato e de alguma maneira ficam um pouco mais protegidas.

Existem duas premissas do programa que sempre são questionadas em debates. Para nós, o voluntário não é mão-de-obra gratuita nem barata. É fundamental enfatizar isso, porque, quando questionadas sobre o fato de ter voluntários, o primeiro impulso dessas instituições é quase sempre responder: "Porque não temos orçamento para manter o quadro de profissionais de que precisamos". Não concordamos com essa idéia. Uma instituição, seja ela qual for, tem de se estruturar para poder cumprir sua missão como deve. Aquilo que ela se propôs a fazer, tem que fazê-lo com qualidade. Aquela resposta como que desqualifica seu próprio trabalho e o do voluntário, porque parece estar dizendo: "Não podendo pagar profissionais, contentamo-nos com voluntários que fazem a tarefa de qualquer jeito, e tudo bem". Somos radicalmente contra isso. Muitas instituições, por razões de sobrevivência – essa é a realidade –, com esse conceito acabam "explorando" o trabalho voluntário de cidadãos bem-intencionados. Elas já estão começando a cair no descrédito, porque essa atitude não é compatível com a ética. Mas é uma realidade, e contra ela nós lutamos.

A segunda premissa é que a colaboração dos voluntários em qualquer instituição, em qualquer âmbito, para nós definitivamente não desobriga o Estado de suas responsabilidades. Se incentivamos e promovemos o voluntariado, não é porque o Estado não pode mais fazer sozinho tudo o que deveria fazer. Definitivamente, acreditamos que hospital bem equipado é tarefa do Estado, assim como escola funcionando, professores bem remunerados e todas as funções que são da esfera governamental. O voluntário deve ser visto apenas como um potencial de ampliação da missão ou do número de atendimentos, mas não cabe a ele resolver os graves problemas sociais do país. Eles têm de ser solucionados por quem de direito. O voluntário pode eventualmente se organizar para exigir das instâncias competentes o cumprimento das políticas públicas já vigentes e não cumpridas ou a formulação de novas. Nesse espaço, o voluntariado ainda tem muito a oferecer. Lembro-me de que organizações feministas costumavam desvalorizá-lo, esquecendo-se de que muitas voluntárias colaboraram para mudar os rumos da história. Não é retórica. É o que digo em palestras para voluntários: "Vocês podem mudar o rumo da história". Parece discurso político, mas não é. É só lembrar o voto feminino, o abolicionismo, a conscientização ecológica, quantos e quantos movimentos que mudaram a história e foram iniciados e mantidos por voluntários.

Por acreditar no potencial solidário do brasileiro, o Programa Voluntários convoca a sociedade a cumprir seu papel. Vejamos algumas de suas linhas mestras. Ele pretende promover uma nova cultura do voluntariado, difundir informações e conhecimento, valorizar o conceito de participação responsável, capacitar instituições e indivíduos, multiplicar experiências de sucesso. E potencializar iniciativas que já existem ou desenvolver novas.

Isso é muito importante porque o Conselho da Comunidade Solidária não tinha tradição nem experiência em voluntariado. Tudo o que foi construído nestes três anos foi feito a partir do que já existe, da experiência brasileira que nos foi relatada. Poderíamos talvez sintetizar o objetivo geral do programa como o de promover a cultura do voluntariado no Brasil, com base no conceito de cidadania e através da participação consciente e comprometida dos indivíduos e das instituições.

O Programa Voluntários que coordeno é financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Após a pesquisa feita pela Fundação Abrinq, assumi um projeto para preparar a criação de centros de voluntários no Brasil. Antes de formatar definitivamente o projeto, o conselheiro Miguel Darcy de Oliveira e eu viajamos pelo Brasil, reunindo pessoas de diversas organizações e jogando a idéia: "Vocês acham que o voluntariado ganharia se existissem centros?" Confesso que isso foi feito em clima de incerteza e dúvida total. Não tínhamos a menor idéia de qual seria a reação das pessoas. E isso ocorreu numa época difícil, no primeiro ano da implantação do Conselho da Comunidade Solidária, quando não tinha sua identidade bem definida. Curiosamente, nas nove cidades que visitamos se formaram nove grupos entusiastas, que deram início aos centros de voluntários no país. Parece que a idéia era boa, e que a oportunidade era essa. Foi uma surpresa. Elaboramos então um projeto de três anos com financiamento de US$ 3 milhões, dos quais quase a metade, US$ 1,44 milhão, foi destinada ao repasse a esses centros que estão se iniciando, que são dez em dez cidades. Repassamos US$ 144 mil a cada centro, numa escala decrescente. No primeiro ano 60% do seu orçamento, desde que comprovassem que 40% conseguiriam com parcerias locais. No segundo ano, invertendo, 40% do BID e 60% com parcerias. E no terceiro, 20% do BID e 80% das parcerias. De modo que em três anos eles mesmos fossem se fortalecendo institucionalmente e buscando parcerias outras para sua auto-sustentabilidade. Os objetivos eram dez centros em dez capitais nesse período. Terminamos o segundo ano com 17 centros em funcionamento no Brasil. Apenas sete assinaram o convênio com o BID, mas tenho na minha mesa os outros três projetos já para enviar. Em breve essa fase terminará. Os outros centros não são apoiados financeiramente pelo projeto, mas se aproximaram de nós. Choveram telefonemas: "Como se forma um centro de voluntários, como podemos fazer em nossa cidade?" Foi uma demanda inesperada, não sabíamos como atender nem imaginávamos que isso iria acontecer. A solução foi fazer entrevistas com quem havia participado desse processo e relatar tudo na publicação "Centros de Voluntários – Transformando necessidades em oportunidades de ação". Ela está disponível nos centros para os interessados.

Na verdade, não se trata de um modelito de centro, porque eles estão nascendo agora, não foram ainda avaliados. Aliás, são extremamente diversificados. Em Porto Alegre têm uma cara, no Rio de Janeiro outra, diferente da de Salvador. E isso é fantástico. São instituições autônomas, oriundas da comunidade local, não há participação do Comunidade Solidária nem do governo. Incentivamos a criação de organizações assim.

Então nossa primeira linha estratégica é o apoio à constituição de centros de voluntariado. Com relação aos números, sempre faço um comentário: os Estados Unidos demoraram 80 anos para ter hoje 540 centros de voluntários. Se no Brasil em dois anos já existem 17, acho que estamos bem satisfeitos.

O que são esses centros e como eles funcionam? Existe um em São Paulo instalado no prédio da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), na Avenida Paulista, espaço gentilmente cedido, com boas instalações. Eles têm várias funções. São instrumentos de promoção e de fortalecimento para a melhoria da qualidade de vida. Os centros como que direcionam a oferta de voluntários atendendo à demanda das instituições em benefício da comunidade. Funcionam quase que como uma agência de casamento. O voluntário chega e diz: "Eu gostaria de fazer alguma coisa, mas não sei o que nem onde". Aliás, alguns chegam e dizem: "Eu não sei fazer nada, mas quero ser voluntário". Uma senhora muito humilde chegou ao centro e disse que não sabia fazer nada. Depois de alguma conversa descobriu-se que ela era muito boa cozinheira e adorava cozinhar. No banco de dados do centro de Curitiba havia um asilo de idosos em que, aos domingos, o cozinheiro não trabalhava, tinha que descansar. Então mandaram para lá a senhora, que só tinha o domingo livre, e para fazer o que ela mais gostava. Os centros nos contam muitas dessas histórias.

Uma das funções é essa, organizar oferta e demanda. Outra é orientar e treinar os voluntários e as instituições. Os voluntários precisam ter consciência de seu papel e do valor do compromisso, responsabilidade, assiduidade, etc. E as instituições precisam também ter clareza do papel dos voluntários e oferecer, no mínimo, um bom programa que os possa acolher.

Para fortalecer os centros e torná-los aptos a capacitar e treinar voluntários e instituições, o programa pesquisou muitos sistemas, especialmente nos Estados Unidos e Canadá. Como não se adequavam à realidade local, começamos a procurar na América Latina e descobrimos ótimas experiências na Venezuela e na Argentina. Chamamos pessoas desses países, e elas trouxeram sua experiência, e daí resultou um esboço de uma primeira idéia do que seria uma tecnologia de voluntariado genuinamente brasileira. Num seminário em Salvador, submetemos isso à apreciação de 40 pessoas, todas de centros já constituídos. Com a contribuição de toda essa gente, fizemos o programa de capacitação que se chama "Fortalecendo o voluntariado no Brasil", um material muito denso, todo perpassado por uma metodologia lúdica, com jogos de percepção, etc. Usei um desses jogos num curso para voluntárias da Apae. É muito revelador, as pessoas jogam com conceitos, colocam seus preconceitos e os parceiros discutem. É uma construção do conhecimento bem interessante.

Com esse material, alguns consultores treinaram pessoas dos centros durante o ano passado. Temos hoje no Brasil 250 pessoas perfeitamente capacitadas a orientar instituições para formarem seus grupos de voluntários e gerenciá-los adequadamente.

Este ano estamos centrados na promoção e estímulo do voluntariado a quatro tipos de público que têm um grande potencial. Um deles são os jovens, o outro é a terceira idade, a seguir vêm os profissionais liberais e por último, o meio empresarial. Com relação aos jovens, há muitíssimas e interessantes iniciativas. Vamos adotar a seguinte estratégia: em parceria com a Fundação Odebrecht, que tem larga experiência em formar monitores para adolescentes, estamos realizando um estudo sobre a problemática do adolescente, o protagonismo juvenil, etc.

Para profissionais liberais estamos com o documento pronto, um estudo da doutora Carmem Lens, a criadora do Banco de Horas, que é uma excelente iniciativa de profissionais da saúde mental que doam pelo menos um atendimento gratuito a pacientes portadores de HIV e/ou seus familiares, por tempo indeterminado, até que seja necessário o tratamento. Funciona no Rio de Janeiro, e essa experiência nos encantou. Pedimos-lhe que estudasse outras, e ela descobriu algumas iniciativas como Adote um Sorriso, em São Paulo, com dentistas e oftalmologistas. Breve faremos uma espécie de cartilha e então vamos precisar de ajuda para decidir qual é a melhor forma de distribuí-la. Será que deveríamos oferecê-la a associações de classe de profissionais, como médicos e dentistas? Aceitamos sugestões e contribuições.

Com relação à terceira idade, ainda não deflagramos a campanha. Estamos em contato com o Sesc, que se transformou num magnífico parceiro para o Programa Voluntários. Não conhecíamos a problemática da terceira idade, e o Sesc, sem dúvida nenhuma, é uma grande referência. Estamos já há cerca de seis meses conversando, aprendendo com eles, e está em andamento uma pesquisa nacional com os idosos, sobre a percepção do voluntariado na terceira idade. Queremos saber o que eles pensam do voluntariado, quem já é voluntário, que experiências eles têm a contar. Depois talvez um seminário multidisciplinar de voluntariado e terceira idade. Se tudo der certo, quem sabe uma cartilha para estímulo a trabalhos voluntários.

Com relação à estratégia de voluntariado empresarial, é notório que a responsabilidade social das empresas já se tornou um diferencial competitivo. Queremos sensibilizar o meio empresarial para que ele estimule o voluntariado entre seus funcionários como mais um investimento social, paralelamente ou não a outros que ele faça. Já contamos com vários parceiros de peso, um dos quais o Centro de Integração Empresa-Escola (CIEE). Através da sua rede de empresas associadas, já estamos fazendo uma pesquisa, coordenada por Ruth Bobrow e produzida pelo Centro de Estudos de Administração do Terceiro Setor da USP. É uma pesquisa entre 1,2 mil empresas de todo o Brasil, de 20 ramos de atividade industrial e comercial. Na verdade não é pesquisa, é um levantamento. Veremos o que sai daí, o que o Brasil faz nas empresas com voluntários. Estamos fazendo uma pesquisa mais aprofundada em parceria com o Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (Gife) e o Senac. É um estudo sobre 20 empresas que já sabemos que mantêm o programa de voluntariado empresarial, para tentar descobrir o perfil, a percepção, o alcance dele. Estamos muito animados com essa pesquisa, e as empresas já começaram a ser visitadas. E por último temos um estudo completo do caso da C&A, notadamente uma empresa que tem um programa muito bem estruturado.

Mas o que é o voluntariado empresarial? É um conjunto de ações realizadas por empresas para incentivar e apoiar o envolvimento dos seus funcionários em atividades voluntárias na comunidade. Ganha a comunidade, ganham os funcionários, os executivos, as empresas e os negócios. Acho que não preciso me estender sobre isso. O que o empresário poderia fazer para apoiar o voluntariado é, por exemplo, incentivar os funcionários permitindo que se divulguem notícias no mural interno da firma sobre ações voluntárias. Poderia também organizar projetos, ou liberar seus funcionários, no horário de trabalho, para fazer uma ação comunitária. Há controvérsias a respeito disso. É todo um debate a ser feito. Poderia também formar uma equipe de funcionários remunerados que cuidassem de projetos de voluntariado. Ou apenas dar algum reconhecimento aos seus funcionários que são voluntários na sua comunidade, o que já é um estímulo, pois a pessoa se sente valorizada. Ou também colaborar com uma causa, uma organização específica. Nos Estados Unidos, por exemplo, a empresa doa US$ 500 a cada cem horas de trabalho voluntário que seu funcionário faz para a instituição em que ele realiza esse trabalho. Há idéias incríveis. Houve recentemente uma fusão de dois bancos em Nova York, não lembro quais mas eram gigantescos e não sabiam como fazer a integração entre as pessoas. Isso é muito comum hoje, num tempo de fusões. Houve uma grande discussão, e sabem qual foi a solução? Os programas de voluntariado de ambas as instituições fizeram um projeto em comum, e o primeiro dia em que os dois bancos passaram a ser uma empresa única foi celebrado com uma enorme e maciça ação comunitária, que teve um grande papel integrador.

Ken Allen, presidente da International Association for Volunteer Effort (Iave) e vice-presidente da Points of Light, que está colaborando conosco nessa área de voluntariado empresarial, tem uma frase inspiradora: "Ter funcionários que fazem trabalho voluntário é uma das formas mais rentáveis e de maior impacto no envolvimento com a comunidade. É uma maneira de responder às expectativas dos consumidores, da sociedade e da comunidade com visibilidade e credibilidade".

Para nós ser voluntário hoje é uma ação que vai além da atitude pessoal, além de um impulso solidário. É uma atividade que expande nossas fronteiras. Ser voluntário é um jeito de ser e de fazer que pressupõe tolerância, respeito, trabalho em equipe, solidariedade, desejo de mudança, compromisso. O voluntariado ajuda a mudar a realidade, a acabar com velhos preconceitos, às vezes contribui para a inserção do indivíduo na coletividade e para que o terceiro setor teste novas formas de ação ou de organização social. Os voluntários também representam um recurso latente de participação, por exemplo, para situações de emergência. São um reservatório de energia. O Centro de Voluntariado do Rio de Janeiro está treinando um grupo de voluntários para trabalhar em enchentes. A cidade desaba cada vez que chove. Então imaginem como é importante ter um grupo de voluntários supertreinados para atuar nessas situações. O voluntariado cumpre também um papel integrador entre nações. Vemos voluntários de países que, em outros contextos políticos e econômicos, não se falam, se matam. É o caso dos médicos de fronteiras, da Cruz Vermelha e de tantos outros. As pessoas estão juntas por um bem comum.

DEBATE

Nota do Editor: as colocações dirigidas à palestrante foram algumas vezes

reunidas em blocos, para serem respondidas de forma concentrada.

MOACYR VAZ GUIMARÃES – O espírito comunitário no Brasil, como devia ser, nunca existiu. Até porque, por uma deformação, nosso povo sempre preferiu, ainda que não o admitisse, governos paternalistas. É muito cômodo esperar que o governo faça tudo por mim, e é até mais cômodo obedecer, porque tenho a desculpa de dizer: "Estou fazendo isso porque a lei e o governo mandaram-me fazer". Mas não é cômodo na hora em que se pede participação, reflexão, em que se pede que haja um amplo envolvimento para sorrir juntos ou para chorar juntos, mas sobretudo para agir juntos.

Temos no Brasil uma distorção muito grande na aplicação do conceito do que seja cidadania. Escrevi uma vez um trabalho em que relatava a diferença entre o exercício da cidadania e o exercício consciente da cidadania. O primeiro deles significava apenas cumprir a lei. A pessoa, ao cumprir suas obrigações, achava que estava exercendo a cidadania. O segundo era exercê-la conscientemente, isto é, oferecendo muito mais de si, aderindo emocional e espiritualmente além daquilo que representasse uma mera obrigação. O conceito de cidadania, por culpa de partidos políticos e de outras organizações, inclusive sindicais, resumiu-se no Brasil a exigir direitos, até por formas inadequadas, sem jamais incluir deveres. Sempre foi "eu quero, eu preciso, eu exijo". Nunca vejo ninguém dizer "eu quero dar, quero oferecer, quero compartilhar".

Além da ação objetiva do voluntariado, vejo nele uma função espiritual. Entendo que essa ação esteja representando a criação, felizmente, de uma nova escola política. No momento em que esse voluntariado crescer e assumir a consciência do que deve e do que pode fazer, essa união vai ser talvez a maior ajuda que um governo pode ter, porque vai ser partícipe dos problemas e ao mesmo tempo proposta de soluções. Soluções vividas e sofridas por aqueles que compartilham os problemas, por aqueles que querem dar algo mais. Não com espírito caritativo, como era antigamente, quando voluntariado era promover um chá em benefício das crianças pobres, onde se arrecadavam R$ 100 mil, R$ 5 mil dos quais iam para as crianças e R$ 95 mil ficavam para a organização do evento. E todo mundo se julgava um nobre voluntário.

Como sugestão, gostaria de acrescentar ao conceito de voluntariado alguma coisa mais ou menos assim: o voluntariado é a manifestação válida e autorizada do verdadeiro exercício consciente da cidadania. Porque vejo no trabalho de vocês uma definição de cidadania como ela deve ser entendida no seu mais alto grau. É uma escola política de cidadania.

JOSUÉ MUSSALÉM – A vantagem do Conselho da Comunidade Solidária é que ele é composto por uma maioria de membros da sociedade e não do governo. O governo é muito perigoso quando faz parte de conselhos.

MÓNICA BEATRIZ CORULLÓN – Eram 11 membros do governo até o ano passado, e foram reduzidos para cinco.

MUSSALÉM – Muito melhor. Esses conselhos correm o risco de se tornar politizados e conseqüentemente direcionados para determinados fins de ordem política.

A senhora falou da Fundação Abrinq e que não tinha feito uma pesquisa exaustiva. Se a senhora for ao nordeste, mais precisamente ao Recife, não vai precisar fazer pesquisa exaustiva. Vai ficar exausta de ver tanta criança na rua pedindo dinheiro. Acredito que um dos papéis fundamentais de um programa de voluntariado seria resolver a questão da criança de rua.

Tenho agora algumas questões. Atualmente há muitos banqueiros internacionais no Brasil. A senhora pode dar um exemplo de algum grande banco que tenha aderido ao programa? Aderir seja da forma proposta, seja com recursos repassados para o programa, destinados a créditos especiais para pequenos empreendedores. Outra questão: se uma empresa de grande porte fizer um projeto de atendimento social, teria apoio do programa nacional? Vou dar um exemplo. Temos no Recife um grande centro de compras, o Shopping Center Recife, que em área alocada é o maior da América Latina. É de um grupo do Rio de Janeiro, o Ancar, que faz um trabalho impressionante na comunidade próxima que é pobre. Eles promovem uma ação social até discreta, mas é um trabalho muito interessante. A pergunta é a seguinte: se uma empresa grande do comércio ou da indústria quiser fazer um programa, como seria o contato com o Programa Comunidade Solidária?

Como última observação, penso que o voluntariado no Brasil deve estar vinculado ao trabalho, ao emprego e à cidadania. Estamos com um problema muito sério de desemprego. Um programa voltado para combatê-lo, mas sem o emprego público, permitirá o resgate da cidadania.

MÓNICA – Lamento, mas não posso lhe responder sobre os contatos com o Comunidade Solidária. Minha coordenação limita-se ao Programa Voluntários. Com relação aos banqueiros internacionais, o BID apóia o Brasil e não somente o programa. E está interessado em apoiar iniciativas também na Colômbia, no Chile e no Uruguai.

MUSSALÉM – Estou falando de grandes bancos privados, como o ABN Amro Bank e o Bilbao Viscaya. O Bradesco parece pequeno diante deles. Será que eles seriam motivados a um programa desse tipo?

MÓNICA – Temos muitos exemplos. O Banco de Boston recentemente apoiou maciçamente o Projeto Travessia, de crianças de rua no centro da cidade de São Paulo. Temos ações do Citibank, e do Itaú na área cultural. Na social, o Citibank apóia o Brinquedoteca, o projeto de leitura da Fundação Abrinq. Acho que são sensíveis, sim. Mas podemos insistir mais.

Com relação a voluntariado e desemprego, essa é uma questão que sempre vem à tona, e algumas pessoas nos questionam agressivamente: "Mas como o governo (não adianta, somos vistos como governo) promove o voluntariado numa situação tão crítica de desemprego?" Parece uma contradição. Não há respostas para isso, mas a saída é enxergar a realidade sob outro ponto de vista. Em vez de ver a contradição, por que não captar as oportunidades? Em tempos de desemprego, enquanto a pessoa está ansiosa, preocupada, sofrendo por causa dessa situação, o exercício eventual do voluntariado é um reforço para a sua auto-estima, ela continua se sentindo útil de alguma maneira. Ela pode adquirir inclusive novas habilidades que não tinha na sua prática profissional. Uma costureira que vai a uma instituição para ajudar a organizar uma feira ou uma gincana esportiva acaba exercitando liderança, trabalho em equipe, uma porção de outras coisas. Mantém-se em contato, sai do isolamento social, conhece novas oportunidades.

EDUARDO SILVA – Vou dar um testemunho da atividade da Febem, dizendo que realmente a participação da comunidade acima de tudo é uma construção democrática.

É muito importante a figura do voluntariado para fazer a ligação das instituições públicas com a sociedade. No meu caso, estou temporariamente numa função pública, dirigindo a Febem. Sinto-me, porém, rejeitado pela comunidade, como se a mão pesada do Estado fosse um sacrifício para a comunidade. Devia ser o contrário. Precisamos muito de voluntários que façam a aproximação com as famílias, com os jovens, para que isso que a senhora chama de parceria produza resultados concretos. E o que percebemos é justamente o oposto. Não sei se é medo que a sociedade tem do Estado, ou aversão ou um distanciamento que parece exigir que a solução venha graciosamente. Uma grande parte da população vê o Estado com muita desconfiança, qualquer que seja o governante. E isso representa um desgaste, uma dissipação de energia.

Apesar disso, o voluntariado para nossa instituição cresceu, passou de uma situação de colaboração em algumas atividades até assumir responsabilidades no próprio trabalho. Isso gerou outra atividade, agora remunerada, porque se criou um convênio para isso. Nosso próprio trabalho passou assim a ser mais bem compreendido. Aqueles que antes tinham olhos críticos agora começam a ver que muitos de nossos funcionários não são tão ruins quanto lhes parecia. A população continua crescendo e temos de multiplicar as atividades. Não podemos ignorar as limitações das instituições públicas e mesmo das privadas. O voluntariado é também um multiplicador de atenção e até de socorro a muitas dessas pessoas.

MÓNICA – O Programa Mais, da Febem, foi um dos que conhecemos há três anos na Fundação Abrinq. Ficamos muito bem impressionados com o profissionalismo. Mas tenho um pequeno comentário sobre administração pública e voluntariado. Pensávamos que havia uma dicotomia total. Mas na cidade de Limeira (SP), por exemplo, não sei como o prefeito Pedro Kuhl conseguiu isso, mas ele simplesmente desmistificou esse paradigma (ver texto à pág. 21 deste encarte). A prefeitura tem um programa de voluntariado que acolhe pessoas da comunidade para trabalharem nas secretarias da Cultura, da Educação e da Saúde. Há mais de 500 voluntários em Limeira prestando serviços à administração municipal. Sem dúvida, o mérito é da comunidade.

ARNALDO NISKIER – Minha preocupação como educador é a continuidade. Houve muitas experiências bonitas no Brasil que se perderam exatamente por falta de continuidade. Isso em educação é fatal. Vejam o exemplo do Projeto Rondon. Até hoje ninguém sabe por que ele foi interrompido. Era efetivo, contemplava exatamente a generosidade da juventude, a disponibilidade do jovem para se doar patrioticamente à tarefa que considero o serviço da pátria. Eram voluntários da pátria. Mas não houve continuidade. Tenho certeza de que as dificuldades que existem para arregimentar pessoas, sobretudo homens (é engraçado, os homens são mais descrentes do que as mulheres), devem-se exatamente ao receio de que seja um esforço que, depois que muda o governo, vai para o espaço como tantos outros.

Outro assunto: a senhora disse que vamos alfabetizar 500 mil adultos este ano, afirmando que se trata de um grande número. Os adultos estão abandonados, são 19 milhões de analfabetos. Se fizermos uma continha vamos descobrir que somente em 38 anos acabaremos com o analfabetismo no Brasil. E esse número não é fixo. Ele cresce. Seria uma causa muito nobre acabar com o analfabetismo ou pelo menos reduzir drasticamente essa cifra. O espírito extraordinário e bonito do voluntariado, como a senhora colocou, poderia ajudar nessa questão. Essa é a pequena sugestão que dou.

MÓNICA – Com relação à questão da alfabetização, um esforço de voluntariado na educação está sendo pensado e brevemente teremos notícia a esse respeito. Talvez haja uma campanha maciça de voluntariado pela educação. Na campanha da TV Globo pela educação prevê-se um reforço desse tipo.

Com relação ao seu receio de falta de continuidade, digo que é o mesmo que o nosso. Há três anos, quando nem se sabia se o Comunidade Solidária continuaria porque nem se sabia se haveria reeleição, o Programa Voluntários foi desenhado para ser repassado para essa rede de centros, que são as ONGs oriundas da comunidade. Somos apenas um núcleo de coordenação, somos quatro pessoas. A continuidade vai se dar se a comunidade se apropriar da idéia e levá-la adiante.

ROBERTO PENTEADO – Penso que o voluntariado deve ser organizado para colocar em ação projetos já fundamentados. Primeiro precisamos ter um programa para depois arregimentar o voluntariado. Vejamos o caso da alimentação, que hoje no Brasil é deformada, por assim dizer, até mesmo nas classes abastadas. Nas mais carentes, um trabalho voluntário poderia oferecer noções de nutrição aplicada. Um programa nessa área é tão importante como na educação, utilizando principalmente alimentos não convencionais. A rama da mandioca, por exemplo, é muito mais nutritiva do que a própria raiz. Há muita coisa que se joga fora em feiras livres. Nas Ceagesps, há uma incrível desproporção entre o que se aproveita e o que se rejeita. Nos supermercados também, é uma barbaridade. E são alimentos de excelente qualidade, só que não têm um bom aspecto. Se existisse um programa de alimentação, mas de alimentação sadia, bem diferenciado e esclarecido, poderíamos arregimentar profissionais aposentados de centros de pesquisa de universidades e com esse programa beneficiar muitas pessoas.

MÓNICA – O senhor falou de Ceagesp, e eu posso dizer que nem tudo está perdido. Há um programa do Credicard e Instituto Ayrton Senna que oferece um sopão, recolhendo essas sobras em excelente estado nutricional. Não me lembro quais são os outros parceiros, lembro-me só desses dois. Então alguma coisa já se faz, graças a Deus, como o programa Mesa São Paulo, do Sesc.

JOÃO TOMÁS do AMARAL – A Faculdade de Engenharia Mauá também está nesse projeto do sopão.

PENTEADO – E participam voluntários nesse projeto? Existem voluntários altamente credenciados que sentem necessidade até de colocar em prática seus conhecimentos.

MÓNICA – O pessoal técnico do Mesa São Paulo do Sesc participou de nosso treinamento, a pedido deles, justamente para montar um programa qualificado de voluntariado.

MÁRIO AMATO – O voluntariado no Brasil, principalmente em São Paulo, vem desde Portugal com as Santas Casas, que são dirigidas praticamente por voluntários. Há outras entidades, como as que cuidam de crianças com defeitos na face, das quais milhares de pessoas já se beneficiaram.

Gostaria de dizer também que hoje a maioria dos empresários estão compreendendo que o voluntariado dentro das empresas, ao beneficiar os dependentes dos funcionários, produz uma forma de desenvolvimento muito bom. Antonio Ermírio de Moraes dirige a Beneficência Portuguesa há 30 e poucos anos. Hoje esse hospital atende mais do que o Hospital das Clínicas. Antonio Ermírio dedica três, quatro, cinco horas por dia à Beneficência. Uma empresa a que estou ligado, a Spring Carrier, no ano passado investiu quase US$ 6 milhões em educação para os funcionários e dependentes.

MÓNICA – Vendo tantos empresários como tão bons voluntários, tive uma idéia: vou chamá-los para uma próxima campanha publicitária. Imagino os senhores falando para os outros empresários: "Sejam voluntários porque nós somos". Se o senhor me permite, vou pensar nisso.

AMATO – Eu posso ser até intermediário dessa proposta.

SAMUEL PFROMM NETTO – As raízes profundas do voluntariado estão assentadas no solo de algo que vem sendo esquecido entre nós: o desenvolvimento moral de cada pessoa. Esse desenvolvimento moral é um componente de educação na família, na escola e que deixa muitíssimo a desejar no Brasil de hoje. Moral e civismo, de uns tempos para cá, não só perderam a relevância que tinham entre nós desde tempos remotos como, pior ainda, passaram a ter conotação negativa e a ser tratados com uma superficialidade e um primarismo verdadeiramente estarrecedores. Desde os tempos do Império, tínhamos livros didáticos de educação moral e cívica destinados às crianças que, juntamente com a instrução religiosa, ensinavam dever, responsabilidade, altruísmo, generosidade, cooperação, bons sentimentos e ações nobres. Em uma palavra, caráter. As gerações passadas aprenderam com os livros de leitura de Abílio César Borges, de Bilac e Bonfim, Erasmo Braga, Thales de Andrade, Antonio D’Ávila e Maria Brás. Foram lições de vida e de solidariedade que acompanharam essas gerações ao longo de suas vidas. Essas lições ensinaram as pessoas a serem boas, a serem sensíveis aos sofrimentos, às angústias e às necessidades do próximo, fornecendo-lhes exemplos inesquecíveis de ações adequadas. A formação do caráter e a educação cívica foram, no entanto, expulsas das escolas brasileiras, inclusive em virtude de um incrível (acho que é caso único da história da humanidade) decreto presidencial nos anos 80 que extinguiu oficialmente a educação moral e cívica no país. Quer me parecer que já é tempo de ressuscitar essas raízes a que me referi nas escolas, nas crianças, ao mesmo tempo que iniciativas tão sensatas, generosas e realistas como o Programa Voluntários precisam ser incentivadas e favorecidas, não só pelos empresários mas por toda a sociedade brasileira.

Minha sugestão é que o Programa Voluntários não perca de vista e até dê um acento muito forte ao segmento infanto-juvenil, que plasma os cidadãos, os adultos responsáveis e solidários de amanhã, a exemplo do que se faz nos países mais avançados, nos quais a moral e o civismo estão na ordem do dia. A formação do caráter hoje como ontem está mais viva do que nunca nas aulas, nos livros didáticos, nos padrões curriculares, nos empenhos dos que se preocupam com o futuro desses países. Nesse sentido, há iniciativas atuais impressionantes. Na Inglaterra, por exemplo, o movimento da Moral Education para o ano 2000, no Japão, nos Estados Unidos, na França e tantos outros. Recebi há pouco uma coleção de livros didáticos que estão nas mãos dos escolares franceses de hoje. São livros de moral e civismo realmente invejáveis, pois neles estão as lições básicas do voluntariado, da cidadania, do desprendimento, da responsabilidade que fazem tanta falta entre nós. Aqui, pelo contrário, ai de nós, abundam os maus exemplos, os contra-exemplos dissolventes, irresponsáveis, que estão deseducando nossas crianças na mídia eletrônica e impressa e até mesmo em livrecos oficialmente adotados nas escolas que glorificam o ódio entre as pessoas, a sem-vergonhice, a violência, a boçalidade e a destruição pura e simples de valores essenciais, que são o verdadeiro cerne da cidadania. As empresas deveriam fazer a sua parte, mas não se deve perder de vista a conexão íntima que existe entre o voluntariado de ontem, de hoje e de amanhã, entre o voluntariado e a educação no lar e na escola. Parece-me que esse segmento deva merecer uma atenção bem maior do que tem recebido, face a essa realidade cinzenta que temos pela frente.

MÓNICA – Fomos convidados pelo Senac e pelo Centro de Educação Comunitária para o Trabalho para, junto a outros parceiros, pensarmos uma espécie de programa de desenvolvimento do comportamento solidário. É uma iniciativa esplêndida e nos sentimos honrados de estar juntos. É um movimento que está sendo avaliado para gestionarmos no MEC a inclusão no currículo escolar de comportamento solidário, alguma coisa nesse sentido. É uma proposta que se encontra em estado muito embrionário, eu lhe confesso. Mas a preocupação existe e eu lhe agradeço. Estamos na mesma linha.

FLÁVIO PÉCORA – As entidades, além de voluntários, precisam de dinheiro. A organização de cujo conselho fiscal sou membro atende crianças carentes, que recebem assistência, alimentação, educação. Mas as instituições acabam precisando de dinheiro no final, para cobrir as despesas. Voluntários conseguimos até com facilidade. Mas um mínimo de dinheiro sempre é necessário. Como se enfrenta esse problema?

MÓNICA – No âmbito do programa que coordeno, a preocupação é voltada para a ampliação e qualificação do número de ações voluntárias e não para a auto-sustentabilidade das instituições. De qualquer maneira, incluímos no treinamento muitas técnicas de fund raising, de levantamento de fundos, para de alguma maneira fortalecer as entidades para que elas procurem seus próprios caminhos.

ISAAC JARDANOVSKI – Aliás, sobre esse aspecto gostaria de colocar uma questão. Quanto aos recursos que o BID põe à disposição dos centros, eles têm que prestar contas para o BID?

MÓNICA – Têm. São a fundo perdido, não são empréstimos, é doação mas eles têm que prestar contas. Trimestralmente nos apresentam um relatório de progresso e um relatório financeiro.

ISAAC – E os recursos fundamentalmente são utilizados para quê?

MÓNICA – Para recursos humanos. E aí, segundo um orçamento, até 35%.

ISAAC – Então uma parte do pessoal é profissional?

MÓNICA – Sim, porque acreditamos que os centros de voluntários têm de ser instituições geridas profissionalmente. Elas precisam de uma energia e de uma dedicação que apenas com voluntários eventuais não poderiam ter. Em geral, os centros têm um coordenador, uma secretária e um staff muito reduzido. Imaginem, com R$ 10 mil por mês não podem fazer muito.

ISAAC – São R$ 10 mil por mês?

MÓNICA – Sim, mais ou menos.

ISAAC – E aí estão os recursos para locação, viagens eventuais, etc.?

MÓNICA – Viajam pouco porque não dá. Mas é para telefone, xerox, etc. Os centros de voluntários contam com um staff mínimo que mostra também como é a coordenação. Esta poderia ter criado uma hiperestrutura. Mas é pressuposto nosso demonstrar que com criatividade e talento muito pode ser feito. Nós não somos voluntários, somos remunerados, com tempo integral, no meu caso, e parcial, das colaboradoras. Mas com criatividade, talento e alguns voluntários, neste campo, dinheiro não é tudo.

ISAAC – Mas ajuda um pouquinho.

MÓNICA – Ajuda bastante, mas dá para funcionar com pouco dinheiro. Sabe por quê? Dá para funcionar com parcerias. A maioria dos centros não paga aluguel.

ISAAC – Os sete centros que estão se constituindo sem a ajuda do BID recebem doações de empresas?

MÓNICA – Sim, ou seja, uma dá uma sala, outra empresta um computador, outra oferece uma linha telefônica. O potencial de articulação dessas comunidades nos surpreendeu muito. Em Vitória (ES), o apoio tem sido de empresas e sobretudo da administração municipal, como também da Caixa Econômica Federal.

JOÃO TOMÁS – O voluntário quer melhorar sempre e atua de forma desprendida. Esse é realmente o espírito público puro. Por isso muitos serviços públicos deveriam ser voluntários. A atividade voluntária é vista de forma preconceituosa, como a senhora colocou, e o preconceito é bilateral: o voluntário é visto como explorado e a instituição como exploradora. Minha primeira pergunta, em relação a isso, é a seguinte: quais são as efetivas ações que podem ser desencadeadas, institucionalmente, pelo Programa Voluntários ou então pelas próprias instituições, para eliminar esse preconceito? Gostaria também de saber qual é o papel que as universidades têm desempenhado nessa ação. Não vejo a universidade atuar nessa área.

MÓNICA – O programa tem feito uma campanha de sensibilização. Há dois anos não se ouvia a palavra "voluntário". Hoje (e acreditamos que temos alguma coisa a ver com isso), o "Jornal Nacional" expõe boas iniciativas de ação voluntária na TV, assim como as revistas semanais ("Exame", "Veja", "IstoÉ") e os jornais ("Folha de S. Paulo", "Estado de S. Paulo") falam do assunto. Então esse esforço de sensibilização para o tema via mídia, sobretudo mostrando exemplos, contribui para afastar o velho preconceito. Preconceito que estamos atacando com a capacitação das instituições, porque ele nasceu de uma visão deformada. Sem dúvida é um trabalho muito longo.

JOÃO TOMÁS – Essa atuação é genérica. E a atuação específica sobre as instituições, como ficaria?

MÓNICA – Os centros de voluntários em cada cidade é que fazem a ligação direta com as instituições. Quanto a universidades não tenho dados, mas digo-lhe que no Recife a área de extensão universitária está dando todo o apoio ao centro de voluntariado da cidade, com capacitação, treinamento, cessão de espaço físico, etc. Em Curitiba, não me lembro em que cadeira, há uma pessoa fazendo doutorado em voluntariado e formando uma equipe mista de alunos e professores para serem capacitadores do centro para as instituições. A Universidade Federal do Rio de Janeiro ajudou o centro de São Paulo a fazer uma pesquisa de voluntariado juvenil. Os centros estão informando que as universidades os estão procurando, pelo menos as mais sensíveis, atentas ao campo da ação voluntária.

Comentários

Assinaturas