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Em busca de controle
Movida a Ibope, TV baixa o nível e abusa da própria liberdade. A reação vem aí
Desligar a TV. Durante as quase cinco décadas da televisão brasileira foi essa a maneira mais prática encontrada por pais e mães de três gerações para impedir que suas crianças ficassem expostas às cenas consideradas "fortes" exibidas pelas emissoras. Desde a TV Tupi da década de 50 até as redes desta virada de milênio, no entanto, foram grandes as mudanças de hábitos e comportamento que tornaram muitas vezes mais complexa a tarefa das famílias contemporâneas de controlar, ou tourear, em suas próprias casas, as sucessivas ondas de modismos e de violência de todos os tipos transmitidas pela mídia eletrônica.
Cenas do sushi erótico apresentadas no "Domingão do Faustão", na Globo, em que homens saborearam comida japonesa no corpo de uma jovem nua, não precisariam ser cortadas há 40 anos porque, na época, seria simplesmente inimaginável transmitir imagens desse tipo. Como reagiriam, então, os pais de família do fim dos anos 50 com a transmissão, em canal aberto de TV, de cenas que mostrassem as acrobacias eróticas de uma tailandesa que consegue "fumar" um cigarro com seu próprio órgão sexual?
Hoje, graças a inovações tecnológicas, como os polêmicos dispositivos conhecidos por V-chips, que bloqueiam o acesso a determinados programas por meio de senhas eletrônicas, e à ofensiva de grupos de pressão, como as organizações não-governamentais (ONGs), a sociedade brasileira começa a somar esforços para conter a enxurrada de obscenidades que flui quase que impunemente dos meios de comunicação. O ato solitário de apenas desligar o aparelho ou mudar de canal na hora de apresentações "pesadas" como "Linha Direta" ou "Programa do Ratinho" (provavelmente desencadeando intermináveis e desgastantes discussões familiares) ganha agora poderosos aliados, e uma briga de titãs se desenrola neste momento nos bastidores dos ministérios e em corredores do Congresso Nacional. Para conter o lobby dos que preferem que as coisas fiquem como estão, surgem iniciativas como as do senador Pedro Simon (PMDB-RS), da subcomissão de Rádio e TV do Senado Federal, que conclamam a população a se manifestar em Brasília, por fax, e-mail, carta ou telefone, para pressionar por mudanças nas redes de televisão. Em jogo está nada menos que uma nova definição do conceito de entretenimento, educação e informação da TV brasileira.
Incomodado com o excesso de erotização e as baixarias de vários programas, o próprio governo está acenando com a imposição de um código de ética a ser seguido pelos canais da TV aberta em todo o território nacional. Um dos resultados imediatos é que o debate público sobre a qualidade da programação das emissoras de TV nunca ficou tão aceso. Outro desdobramento, possivelmente mais importante, é de a nova Lei de Comunicação Eletrônica de Massa, que deverá tramitar pelo Congresso e vigorar já no ano 2000, incluir normas disciplinares para as TVs abertas. Após tentar por várias vezes que a iniciativa da mudança partisse das próprias emissoras, o governo, pela primeira vez em tempos democráticos, pretende enquadrar numa lei não apenas os aspectos técnicos das telecomunicações, mas também o controle do conteúdo dos programas de radiodifusão. "Se nos tempos do regime militar o problema eram os assuntos de cunho político, hoje a preocupação do governo democrático é com a pornografia", afirmou uma fonte do Ministério das Comunicações.
A partir de comissões interministeriais, principalmente dos ministérios das Comunicações e da Justiça, com a supervisão do secretário nacional de Direitos Humanos, José Gregori, o governo já tem pronto um projeto que submete as emissoras a um rígido controle de programação: novelas com cenas de sexo exibidas antes das 22 horas, por exemplo, podem estar com os dias contados. Programas de auditório que façam apologia de deformações físicas e psicológicas, idem.
No Encontro Latino-Americano sobre TV de Qualidade, iniciativa da jornalista Beth Carmona realizada em São Paulo, de 4 a 6 de agosto, pelo Sesc e pelo Instituto Goethe, o secretário lembrou que as emissoras são apenas concessionárias de um serviço público e ameaçou com intervenção as que não respeitarem a lei. O seminário reuniu especialistas e estudiosos de várias partes do mundo, com o objetivo não de debater as mazelas da televisão brasileira, mas de discutir qual a televisão de que o país necessita. Certamente não é essa que está aí, e José Gregori não perdeu a oportunidade de dizer com todas as letras que, se ela não está contribuindo para reduzir a violência no país, é inaceitável que nada faça para coibi-la. E avisou que o governo já fixou a data de 20 de setembro para o início das ações oficiais (ver entrevista abaixo).
"A sociedade tem de agir para controlar o conteúdo dos programas de televisão, sob pena de as futuras gerações viverem sob o constante risco de se tornarem vítimas da delinqüência que alimenta a marginalidade e a exclusão social", afirmou a ex-deputada federal Marta Suplicy, virtual candidata à prefeitura paulistana no ano 2000 e fundadora da organização não-governamental TVer, uma das mais ativas no debate da qualidade da programação televisiva nacional.
Oito mil assassinatos
Para Marta, a TV "é uma espécie de gatilho para atos violentos" e tem de passar por um processo seletivo para não estimular o comportamento agressivo de crianças e adolescentes. Para fundamentar suas afirmações ela citou uma pesquisa realizada com um grupo de crianças americanas. Após passarem vários dias expostas a uma maciça carga de programas de TV, as crianças começavam a agredir-se umas às outras, fisicamente, assim que a TV era desligada. Dados publicados pelo Congresso dos Estados Unidos indicam que as crianças americanas comuns vêem uma média de 8 mil assassinatos e 100 mil atos de violência antes de completarem o primeiro grau.
Na corrida para evitar que os meios de comunicação de massa também conduzam a juventude brasileira a um beco sem saída para a moral e os bons costumes, Marta é uma das representantes da sociedade civil que vêm interagindo com o governo, sugerindo propostas com o objetivo de tornar mais concreta a participação do cidadão nas decisões que envolvam o tipo de programas que pode e deve ser levado ao ar.
Alterar essa relação de poder, que no Brasil ganhou contornos extremos com a mídia à mercê dos interesses de uma pequena elite, não deverá ser tarefa fácil. Por meio da TVer, Marta têm insistido com o Ministério das Comunicações pela imposição de punições às emissoras que insistam em exibir programação com cenas, mensagens e linguagem violentas. As penalidades apresentadas pela TVer vão da advertência e da multa em dinheiro até a suspensão do programa por um dia inteiro e mesmo de toda a programação da emissora. Em caso de reincidência, a entidade defende, como medida extrema, a cassação da concessão do canal. A TVer também entende que o governo deve regulamentar artigos, como o 220 da Constituição de 1988, em vigor, que determina que o poder público tem de tornar transparentes as informações sobre a natureza de espetáculos e diversões, suas faixas etárias mais aconselháveis e seus horários mais adequados.
Esse aspecto da legislação dos meios de comunicação de massa é importante porque, segundo Marta, obrigaria as emissoras a exibirem esse tipo de informação de maneira compulsória, a exemplo do que já acontece nos Estados Unidos, Canadá e Japão, e possibilitaria ao Brasil adotar o sistema de classificação de programas que tem dado bons resultados em países desenvolvidos, apesar de não estar livre de polêmica (ver texto abaixo). Sob esse sistema, nenhuma transmissão televisiva pode ir ao ar sem que um código, geralmente em letras, tenha sido exibido antes da transmissão.
Nos EUA, a classificação de programas ganhou seis categorias, de acordo com a incidência de cenas de sexo, violência e linguagem ofensiva. As emissoras assumiram o compromisso de exibir o ícone correspondente a uma dessas categorias durante 15 segundos antes de cada programa, tempo considerado suficiente para o telespectador mudar de canal ou para que dispositivos bloqueadores de canais, como os V-chips, entrem em operação. No caso brasileiro, um X poderia indicar programa altamente violento; um L significaria livre para todas as idades, e assim por diante.
Para as emissoras brasileiras, no entanto, segundo declarações de porta-vozes publicadas na mídia, uma regulamentação desse nível compara-se ao retorno do país aos tempos da censura prévia. Marta Suplicy discorda. Segundo ela, a censura nunca deixou de existir. "Só que atualmente ela é feita por quatro ou cinco pessoas" – leia-se os donos das emissoras, que decidem o que pode e o que não pode ir ao ar.
O jornalista Washington Novaes, crítico de televisão e especialista em temas sobre a TV pública, também discorda da posição das emissoras. Em sua opinião, o país precisa encontrar formas de controle social da informação, o que não se confunde, de maneira alguma, com a censura. Ele acredita, contudo, que é necessário abrir caminhos institucionais para a regulamentação ser legítima e representar a vontade soberana da população. "Assim nenhum grupo assume a tarefa perpetuando o distanciamento da sociedade brasileira ao seu direito à informação, efetivamente relevante para sua cidadania."
Wagner Bezerra, ex-diretor de programas educativos da TVE do Rio de Janeiro e autor do ainda inédito Manual do telespectador insatisfeito, concorda e também manifesta-se favoravelmente à adoção de algum tipo de regulamentação para reduzir o impacto da violência nas TVs brasileiras, especialmente sobre a audiência infantil. Uma pesquisa divulgada recentemente pelo Ibope mostrou que dez dos programas mais vistos por crianças e adolescentes de até 14 anos são destinados originariamente ao público adulto. Ou seja, segundo o Ibope, a grande maioria dos olhos infantis está voltada para o enredo da novela das oito e seus dramas, que envolvem traições, assassinatos e estupros, o que, em tese, deixa praticamente sem efeito a conquista de uma programação infantil mais inteligente e educativa.
Bezerra conta que, por experiência própria, pôde observar em sua família os efeitos nocivos da televisão comercial. Ele decidiu redigir um manual crítico da TV quando, ao chegar em casa depois de um dia de trabalho, flagrou o filho de cinco anos fazendo striptease para imitar cenas de uma telenovela que costumava mostrar jovens musculosos tirando a roupa nos chamados "clubes de mulheres". "Está claro que as emissoras comerciais são as que mais atraem a audiência infantil e, portanto, têm de se submeter a códigos éticos", diz Bezerra, que planeja lançar seu livro, um guia para telespectadores, principalmente mirins, em outubro em São Paulo. Bezerra, contudo, acha bizarro o fato de o governo continuar insistindo para as emissoras comerciais criarem seus próprios códigos de conduta.
"O governo se tornou refém das emissoras e tem caído na argumentação que afirma que regulação é censura. Os donos das redes não estão interessados em fazer uma TV diferente; estão de fato no caminho oposto, e em vez de o governo sonhar com auto-regulação, deveria bancar políticas públicas para os meios de comunicação de massa."
Coincidência ou não, o fato é que, só este ano, o governo, por meio do secretário Gregori, já deu três ultimatos às redes de TV comercial para que apresentem seus próprios códigos éticos. O último jogou para setembro a data limite para as emissoras adotarem manuais próprios, que reduzam ao máximo a programação de baixo nível. Como nos ultimatos anteriores as emissoras de TV simplesmente ignoraram os avisos do governo, na avaliação de críticos como Bezerra nada indica que, desta vez, deva ser diferente.
Poço fundo
No encontro sobre TV de Qualidade realizado pelo Sesc, um dos painéis mais concorridos foi o que tratava de legislação, controle e ética, questões hoje sempre lembradas com preocupação quando o assunto é a qualidade da programação televisiva. O pesquisador Laurindo Leal Filho, da Universidade de São Paulo, resumiu a importância da discussão reformulando o que José Gregori teria "deixado implícito" na abertura do evento. "Estamos reunidos porque fomos pressionados pela sociedade a dar uma resposta à situação a que chegou a televisão no Brasil", disse Leal Filho.
O pesquisador, que integra a TVer, lembrou que a televisão brasileira já viveu outros momentos ruins, mas considera o atual um dos piores. "Quando achamos que chegamos ao fundo do poço, descobrimos que ele é ainda mais profundo", disse.
A explicação para esse fenômeno, no entanto, ficou longe da unanimidade entre os participantes do encontro. Quanto à definição do problema, além das duas correntes mais comuns nesse tipo de discussão – de um lado, os que consideram que a TV gera comportamentos e, de outro, os que preferem vê-la como reflexo da sociedade –, havia também outros pontos de vista, como o de Nelson Hoineff, da produtora Comunicação Alternativa. Para ele, o inimigo não é a quantidade de cenas de violência e sexo. "A mediocridade é que tem de ser combatida", disse Hoineff.
Outra controvérsia envolveu as causas da situação atual. Leal Filho as atribuiu em parte ao processo de concorrência acelerada entre as emissoras verificado nos anos 90. Até aí, é o mesmo diagnóstico de Roberto Oliveira, diretor de Desenvolvimento de Projetos da TV Globo, que participou do painel "A TV e o impacto social", o último do evento.
Mas quando Oliveira apontou os "desafios" para uma programação de qualidade, os discursos começaram a divergir. O representante da emissora mais poderosa do país mostrou com estatísticas o aparecimento recente de um "novo público" que teria alterado a disputa das emissoras pela audiência. A partir do Plano Real, teria havido um crescimento de 82% no número de domicílios dotados de aparelho de TV nas classes D e E. Isso justificaria as recentes investidas na área da programação mais "popular", termo que Oliveira contrapôs, ao longo de sua apresentação, à outra vertente que também estaria sendo mais valorizada nos projetos atuais da emissora: os programas "educativos", que seriam aqueles dignos de todos os elogios e prêmios. Mais de uma vez, no entanto, Oliveira relacionou implicitamente a programação "educativa" a baixos níveis de audiência, justificando assim a insistência no lado "popular": "A Globo não pode perder a liderança", disse.
Essa bipolarização da programação – e da intenção – da Globo exposta por Oliveira lembrou uma idéia criticada por Leal Filho na véspera: o argumento "falacioso" de que o baixo nível é uma conseqüência da guerra pela audiência – que está a um passo da conclusão de que a maioria, ou seja, o pobre, quer baixaria.
Para combater essa idéia, Leal Filho citou uma pesquisa encomendada pela TVer segundo a qual as pessoas mais preocupadas com a qualidade das TVs estariam justamente nas classes mais baixas.
Mas Eugênio Bucci, da Editora Abril e também membro da TVer, lembrou que o telespectador não é uma simples vítima passiva do problema. Segundo ele, dentro de quatro paredes as pessoas às vezes assistem a coisas que nunca admitiriam nem para os amigos mais íntimos. Quando isso é revelado pelos índices do Ibope ou similares, surgem as brechas de mercado que algumas emissoras aproveitam até as últimas conseqüências. "Os índices de audiência transformam em conduta pública predileções inconfessáveis do telespectador", disse Bucci.
Quanto às soluções propostas, houve divergência sobre a eficácia de controles em forma de novas leis. Elas correriam sério risco de não saírem do papel ou, caso contrário, simplesmente não serem obedecidas. Afinal de contas, lembrou Leal Filho, cerca de um quinto dos congressistas do país são concessionários de rádio e/ou TV. O que pareceu consensual foi a necessidade de ampliar o espaço de discussão e o poder de interferência da sociedade organizada nessa questão. Como resultado do evento foi decidida, aliás, a criação de mais uma entidade para lutar por isso: o Centro Brasileiro da Mídia e da Infância, que poderá ser ampliado para o restante da América Latina.
V-chips
Enquanto espera e pressiona por uma lei que o proteja do arbítrio de uma televisão que topa tudo por dinheiro, o telespectador se vira como pode. Para evitar que as crianças vejam cenas imorais ou aviltantes, a maioria adulta ainda opta pelo mesmo sistema que era adotado por seus pais, ou seja, manter o aparelho desligado. Outros, com mais recursos, têm à disposição a alternativa da TV a cabo, que possibilitou aos telespectadores o trânsito por mais de uma centena de canais pelo controle remoto. A abundância de opções, com canais segmentados, não deixa de ser para o telespectador uma conquista de certa autonomia em relação aos canais abertos.
Em escala muito menor, mas numa tendência que se anuncia como a grande conquista dos próximos anos, os telespectadores brasileiros, insatisfeitos ou não, terão à disposição uma maneira mais eficiente de controlar o que se passa na telinha de casa, mesmo em períodos de ausência de adultos, quando a TV se transforma na babá eletrônica das crianças. Polêmicos desde sua implantação nos Estados Unidos em 1998, por força da nova Lei das Telecomunicações americanas (ver texto abaixo), os V-chips, ou chips da violência, são um software desenvolvido pela indústria eletrônica que possibilita aos pais programarem a televisão doméstica impedindo-a de receber o sinal de programas considerados inadequados. Semelhante aos decodificadores de sinais instalados nas residências que assinam os pacotes das emissoras de TV a cabo, o V-chip funciona a partir do sinal de classificação de programas transmitido pelas TVs quando determinada exibição tem início. Assim, o aparelho pode vetar a imagem de qualquer programa de TV que traga, por exemplo, a letra R de "restrito para menores". Para dar certo, o V-chip tem necessariamente que utilizar um mesmo código combinado entre os fabricantes de aparelhos de televisão e as emissoras.
"No Brasil ainda não temos nenhuma marca com o V-chip, a não ser em eventuais aparelhos importados, porque as emissoras do país não chegaram a um acordo com o governo para exibir os códigos de classificação de programas", afirmou Roberto Fava, coordenador de Produto da Sharp e encarregado de acompanhar os entendimentos para a introdução no Brasil do dispositivo de controle de TV de alta tecnologia.
Visto como a panacéia para todos os males da televisão, o V-chip, que ao que tudo indica seguirá o mesmo caminho do similar americano e será adotado no país por força da nova Lei de Comunicação Eletrônica, desperta reações variadas.
"Acho que o V-chip, sozinho, não resolve o problema da família que quer se proteger da TV, pelo simples motivo de que, no Brasil, ao contrário dos Estados Unidos, a grade de programação da TV aberta é limitada por pouquíssimos canais. Assim, num domingo, por exemplo, a pessoa que quiser programar seu aparelho para se livrar das Xuxas, dos Faustões e dos Gugus acabará sem nenhuma opção", afirmou Bezerra.
Para o ministro das Comunicações, Pimenta da Veiga, parafraseando seu antecessor Sérgio Motta – na verdade o principal precursor da idéia no Brasil –, o V-chip é uma conquista da população sobre a TV. Marta Suplicy, por sua vez, discorda. Para ela, o V-chip é uma válvula de escape encontrada pelo governo para se eximir da responsabilidade de atuar de forma decisiva para impedir que programação de mau gosto chegue à casa dos brasileiros. Ela lembrou também as dificuldades operacionais de manuseio do aparelho para uma população de baixa renda e também com poucos recursos de informação. "Depois", disse ela, "qualquer criança acaba descobrindo a senha e programando, ou desprogramando, ela própria, o que assistirá à noite."
Argumento polêmico
O V-chip é também a solução proposta pelo vice-presidente do Sistema Brasileiro de Televisão (SBT), José Roberto Maluf, que defende as emissoras com um argumento no mínimo polêmico. "A televisão não é culpada pela violência que está aí", diz ele. "Eu nem acredito que ela gere mais violência pelo fato de mostrar coisas violentas." E afirma que inúmeras pesquisas realizadas por médicos, psiquiatras e sociólogos norte-americanos permitem acreditar que não se pode chegar a nenhuma conclusão quanto ao aumento da violência ou de exageros sexuais por conta do que se assiste na televisão.
Se todos pensarem assim, poucas serão as esperanças para telespectadores preocupados com a qualidade dos programas. "Nos Estados Unidos o V-chip é utilizado com sucesso", lembra Maluf. Mas como o Brasil está longe da realidade dos V-chips, a saída ainda é deixar a TV desligada. Ou, diz Maluf, "colocar no comando das emissoras pessoas preocupadas com essa questão".
O SBT não é o melhor exemplo dessa preocupação. Programas como o do Ratinho e o de Gugu espalham aberrações por todas as antenas. O Ratinho, aliás, é coerentemente defendido por José Roberto Maluf, que não o considera prejudicial. "Hoje ele não mostra mais deformidades ou brigas, é mais um programa de variedades."
Mas como seria, na prática, essa preocupação com o conteúdo dos programas? Difícil imaginar, pelo menos no caso do SBT, onde não existe censura interna e "cada apresentador tem total liberdade".
A Rede Bandeirantes, ao contrário, criou um código de ética, com dez princípios bem definidos (ver texto abaixo). Quem entra na empresa deve lê-lo. E segui-lo. Mas João Carlos Saad, vice-presidente da emissora, afirma que, quando o assunto é televisão, há gente fazendo demagogia. "Se quisessem resolver os problemas, já teriam feito isso; o Estado tem ferramentas para tanto", diz. Uma dessas ferramentas, sugere o executivo, seria controlar a publicidade oficial. "O governo reclama de alguns programas e anuncia neles." Nada de legislação nova, nem de censura. A competição é dura, mas não é preciso "baixar o nível" para sobreviver. A saída, diz o empresário, é ser eficiente e assim enfrentar a concorrência.
Concorrência, aliás, que não faz parte da lista de preocupações da poderosa Rede Globo. Pelo menos segundo as afirmações de Mário Cohen, diretor da Central Globo de Comunicação. Ciente de seu vasto poderio, a emissora carioca mantém "uma estratégia de longo prazo para atender ao telespectador e ao mercado publicitário".
A ordem dos fatores não é exatamente essa. O que vem em primeiro lugar, todos sabem, é o mercado publicitário. A programação dança conforme o ritmo dos indicadores de audiência.
E quando o Ibope permite, vão ao ar produtos com "garantia de qualidade", diz o diretor. Segundo ele, graças a autores, diretores e elenco preocupados com o conteúdo ético e alto nível de qualidade.
De acordo com as palavras de Mário Cohen, a estratégia tem funcionado. Tanto é verdade que praticamente não há reclamações. Em 1998 e no primeiro semestre deste ano elas nunca chegaram a 9% das comunicações recebidas pela emissora ("uma porcentagem muito pequena"), quase todas com elogios à programação ou com perguntas sobre matérias jornalísticas. Certamente não são do mesmo teor as mensagens que chegam ao secretário nacional dos Direitos Humanos, José Gregori, contra a qualidade da programação. Segundo o secretário, o número de reclamações tem sido enorme.
A Rede Record, por sua vez, alega que sua programação é fiscalizada pelos telespectadores, que, por serem evangélicos em grande parte, "criticam e reprovam eventuais excessos". Dermeval Gonçalves, superintendente da emissora, informa que o conteúdo dos programas é permanentemente examinado pela própria comunidade da Igreja Universal do Reino de Deus, sua proprietária. "Cenas de violência e sexo explícito jamais serão exibidos em nossa rede", diz ele.
Envolvida pela guerra da audiência, a Rede Record preocupa-se também com outro detalhe. Segundo Gonçalves, o código de ética deve incluir ainda dispositivos contra a retaliação comercial entre emissoras, "principalmente o assédio a profissionais por outras empresas durante a vigência de seus contratos". Foi o que aconteceu, aliás, com o apresentador Ratinho, que saiu da Record para vestir a camisa do SBT.
Universo especial
Em meio à mesmice que caracteriza o baixo nível da televisão comercial brasileira, felizmente nem tudo está perdido. Salvam-se as emissoras educativas, como a TV Cultura de São Paulo. Patrocinada pelo governo do estado, sem a preocupação de brigar com a concorrência, essa ilha de qualidade pode se dar ao luxo de perseguir metas mais ambiciosas, como afirma Jorge Cunha Lima, presidente da Fundação Padre Anchieta, mantenedora da emissora.
A audiência pretendida não é aquela massa de telespectadores que aparece nos números frios dos indicadores. O que a Cultura pretende é um universo especial, representado por índices que, embora baixos, abrangem as lideranças políticas, econômicas e sociais do país.
Cunha Lima calcula que os quatro pontos obtidos pelo programa Roda Viva, por exemplo, representam uma porcentagem muito grande não do público em geral, mas exatamente daquelas lideranças, que formam a elite pensante do país. "O mesmo acontece com a programação infantil", diz ele." Seis pontos equivalem a 80% do público infantil."
A aproximação com o mundo infantil não é ocasional. Segundo o filósofo francês Jacques Maritain, lembra Cunha Lima, a arte também é um hábito intelectual. Assim, recebendo um conteúdo de qualidade, as pessoas se acostumam com produtos de nível. Na televisão comercial, o conteúdo se curva diante da audiência, diz Cunha Lima. Oferecem tanto lixo que as pessoas acabam se acostumando com o lixo. E gostando dele.
Lixo, aliás, que chega aos aparelhos domésticos em grande estilo, pois tecnicamente "a TV brasileira é uma das melhores do mundo", diz Cunha Lima. "Eles sabem fazer coisas boas, de altíssimo nível." Falta respeitar a inteligência do público.
Governo prepara reação
Ele foi líder estudantil e, nos tempos da repressão, como advogado, defendeu presos políticos e foi presidente da Comissão de Justiça e Paz, ligada à Igreja Católica. Foi deputado estadual por duas vezes e é secretário nacional dos Direitos Humanos. Essa experiência de homem público e defensor das liberdades individuais credencia José Gregori a enfrentar um novo desafio: colocar no eixo a programação das televisões, alvo de críticas e reclamações pelo país inteiro. Para essa tarefa, uma data já foi fixada para o início das ações, como afirma nesta entrevista.
PROBLEMAS BRASILEIROS – O senhor tem conversado com os responsáveis pelas emissoras de televisão para exigir melhoria do nível da programação?
JOSÉ GREGORI – Já fiz duas rodadas de conversações e estou entrando agora na terceira. Acabo de falar com representantes da Rede Bandeirantes e da Record. Tenho lembrado a todos dois pontos importantes. Primeiro: a Constituição brasileira diz que a programação das televisões deve atender a princípios de cidadania, a valores éticos e sociais da pessoa e da família – e as emissoras abertas estão fugindo completamente ao texto da lei. Segundo: o número de reclamações que têm chegado ao governo tem sido muito grande. Poderia dizer mesmo enorme. Como a Constituição no entanto proíbe a censura, o que tenho proposto é o seguinte: que cada empresa tenha o seu padrão de qualidade, faça o seu código de ética.
PB – A Rede Bandeirantes de Televisão foi a única, por enquanto, que já entregou o seu código...
GREGORI – Sim. Mas nessa conversa com a Band lembrei-lhes que em seu código de ética estão faltando dois pontos: é preciso estabelecer as conseqüências para quem, dentro da emissora, desrespeitar o código. Fixar sanções como, por exemplo, multas. Esqueceram-se também de determinar horários nos quais não será permitida a exibição de violência – eu digo a dramatização da violência – e de cenas de sexo, como insinuações grosseiras de uma transa. Sugeri também que o limite para essa programação seja após as 21:30 horas.
PB – Nas suas conversas com as emissoras o senhor tem se referido a algum programa em especial?
GREGORI – As conversas têm sido genéricas, partindo do princípio de que estão esquecendo a Constituição. Ocasionalmente têm surgido nomes de alguns programas. A Rede Record, por exemplo, disse-me na última reunião que tinha deslocado o programa "Leão Livre" para um horário mais tarde. A Bandeirantes prometeu que vai maneirar na colocação das chamadas para a sua programação erótica, que passa de madrugada. Essas chamadas estão sendo feitas em horários inconvenientes.
PB – O governo está para editar a Lei de Comunicação Eletrônica de Massa. Por que motivo essa lei é necessária? Não há instrumentos suficientes, hoje, para punir quem estiver errado?
GREGORI – A nova lei tem diversas colocações técnicas. É essencialmente um instrumento que trata de tecnologia. Ela só incluirá artigos que disponham sobre ética na televisão se não tivermos êxito no diálogo democrático com as emissoras. Então, constrangido, o governo terá de agir. O que pretendemos é criar, com as emissoras, um dispositivo que possa ser acionado de forma semelhante ao Conar, o órgão que regula a publicidade. Eu mesmo tive essa experiência. Recorri ao Conar contra uma propaganda grotesca e em 24 horas ela saiu do ar. Acho que isso será possível em relação à televisão.
PB – O senhor está otimista?
GREGORI – Estou moderadamente otimista. Na verdade, nas primeiras reuniões todos os representantes das emissoras pareceram interessados em atender ao governo. A Globo, por exemplo, garantiu que tem funcionários escalados para zelar pela qualidade da programação. Todas as outras empresas com quem tivemos diálogos asseguraram que iriam melhorar a programação, assim como prometeram fazer o código de ética. Mas ainda não houve melhora de nada. A sensação é que as emissoras não estão aproveitando o diálogo democrático. Se isso realmente acontecer, pode escrever: o governo não vai ficar de braços cruzados. Embora constrangidos, seremos obrigados a abrir um capítulo na nova lei para deixar claras as regras do jogo.
PB – Até quando o governo espera?
GREGORI – Até 20 de setembro quero os manuais de ética comigo. No dia 21 estaremos agindo.
Problemas na fonte
No Encontro Latino-Americano sobre TV de Qualidade, patrocinado pelo Sesc de São Paulo e pelo Instituto Goethe e realizado de 4 a 6 de agosto último, havia alguém habilitado a dizer se, na prática, o V-chip contribui ou não para o controle da programação televisiva. Era o professor americano Dale Kunkel, da Universidade da Califórnia, que comandou, no país que inventou o V-chip, uma grande pesquisa sobre o sistema de classificação de programas, pré-requisito para o funcionamento do dispositivo.
O estudo foi realizado ao longo do primeiro ano de vigência do novo sistema nos EUA – ou seja, a partir de outubro de 1997 – e examinou 2,6 mil programas escolhidos aleatoriamente, com o objetivo de verificar se a classificação, que deve ser feita pelas próprias emissoras, refletia ou não o conteúdo dos programas. O resultado foi a revelação de uma incrível disparidade entre as duas formas de classificação coexistentes nos EUA: a divisão por idade (com códigos que significam, digamos, "apropriado para maiores de 14 anos") e a por conteúdo (que discrimina programas que "contêm cenas de forte conteúdo sexual", por exemplo).
Em síntese, o estudo concluiu que a classificação por idade foi feita de forma bastante adequada, ao contrário daquela por conteúdo, que se revelou desastrosa. Nove entre dez programas com cenas de sexo não receberam o selo S que lhes caberia, e oito entre dez com cenas de violência "escaparam" do selo V.
Entrevistado por Problemas Brasileiros, Kunkel ressalva que esses dados não permitem conclusões sobre os motivos que levariam as emissoras a uma negligência tão seletiva na classificação. Pessoalmente, no entanto, ele acredita numa estratégia de autodefesa. "Uma emissora que classifique os próprios programas como extremamente violentos poderia ser alvo de sérios boicotes", diz o pesquisador. Além disso, como Kunkel afirmou em sua palestra, não é segredo que as emissoras preferem o sistema de faixas etárias, até por conveniência comercial – conseguir anunciantes para um programa "adequado para adultos", que já indica até seu público-alvo, é muito mais fácil que para um programa com o estigma negativo de "cenas de forte conotação sexual".
Kunkel vê com simpatia a idéia de um controle externo sobre essa classificação, para livrá-la da influência dos interesses das emissoras, mas pondera que uma série de "obstáculos práticos" a inviabilizariam nos EUA.
Em termos gerais, no entanto, o pesquisador considera o V-chip uma ferramenta útil de controle, que tem a grande vantagem de não interferir na produção dos programas. Ou seja, de todas as propostas de controle, o V-chip é, na opinião de Kunkel, uma das que menos se aproxima da idéia de censura prévia.
Boas intenções
A Rede Bandeirantes saiu na frente e já fixou seu código de ética. São dez mandamentos destinados a balizar, genericamente, a linha de atuação da emissora. "Todas as pessoas envolvidas em nossos programas merecem o mesmo respeito", diz o primeiro deles. E continua: "Nunca agiremos para encorajar ou promover o crime"; "nosso papel é mostrar a verdade dos fatos sem embrutecer o público"; "o esporte é o grande educador"; "a invasão da privacidade só se justifica quando serve a um bem maior"; "imparcialidade, mente aberta, senso de justiça e procura da verdade são a essência de nosso jornalismo".
Segundo João Carlos Saad, vice-presidente da Bandeirantes, o código é uma idéia antiga, e para sua redação foram consultados documentos similares da Inglaterra e Itália. "É um decálogo básico. Quem entra na casa tem que segui-lo", diz o empresário.
A Associação Brasileira de Emissoras Públicas, Educativas e Culturais (Abepec) também criou um decálogo em que reúne princípios éticos destinados a nortear a ação das emissoras. Por eles, a entidade se compromete a defender a televisão pública em sua integridade, independência e viabilidade, como um canal de acesso livre à informação. Defende também a pluralidade, as culturas regionais e um entretenimento saudável e enriquecedor, que respeite a inteligência e sensibilidade do telespectador, sobretudo das crianças.
A Abepec valoriza o uso de uma programação que contenha conteúdo educacional e respeite os direitos da minoria, e declara sua não submissão às imposições mercadológicas, em benefício do cidadão. Por fim, repudia todas as formas de violência na programação e qualquer comportamento que conduza à humilhação do ser humano.
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