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O parto renasce
Novas iniciativas combatem o excesso de cesarianas e intervenções nas gestantes e propõem a volta de métodos mais naturais
IMMACULADA LOPEZ
Assim como vem ocorrendo em relação ao leite materno, revalorizado após décadas de contra-indicações "científicas", a assistência ao parto experimenta – embora ainda de forma bastante incipiente – uma espécie de volta às origens no país.
Há alguns anos cresce o número de entidades de mulheres, profissionais e gestores da saúde pública que integram uma corrente identificada informalmente como movimento de humanização do parto, uma reação ao abuso das intervenções médicas e à brutalização do parto.
"Nos últimos 50 anos, o parto no Brasil deixou de ser familiar, realizado por parteiras, para tornar-se hospitalar, medicalizado, cirúrgico e desrespeitoso", resume o médico David Capistrano Filho, um dos expoentes do movimento que quer corrigir essa situação. Capistrano coordena duas iniciativas com esse objetivo: o Projeto Qualis, um convênio entre o poder público e fundações para realizar programas como a Casa do Parto de Sapopemba na capital paulista, e o Programa Nacional de Incentivo à Criação de Casas de Parto e Maternidades-Modelos, do Ministério da Saúde, oficializado pelo ministro José Serra no início de agosto.
Na ocasião, Serra também assinou portaria que regulamenta as casas do parto, uma alternativa aos hospitais e maternidades adotada em vários países, como o Japão, e que já existia em algumas cidades do Brasil antes da oficialização pelo ministério.
Um bom exemplo das características de uma casa do parto pode ser encontrado na instituição que funciona desde setembro do ano passado em Sapopemba. Os partos, comandados por enfermeiras, são exclusivamente normais. A equipe não inclui médicos, não é feita anestesia, e as intervenções – como a indução do parto por medicamentos – são restritas aos casos necessários. A permanência na casa resume-se apenas às horas suficientes para o parto e o descanso. A presença de um acompanhante é essencial, e a mulher fica à vontade para movimentar-se, alimentar-se, escolher a posição para parir. A idéia é oferecer um contraponto à cultura de interferência e à impessoalidade dos hospitais.
Cheiro de comida
Quando chegou a hora de seu primeiro filho nascer, Maria Cláudia da Silva experimentou problemas comuns a muitas mulheres no país. Só conseguiu ser atendida no terceiro hospital que procurou. Quando finalmente foi internada, levaram-na à enfermaria e a partir de então ela ficou horas sozinha. "Estava sofrendo, com dor, e ninguém me explicava nada", diz Maria Cláudia. Às 21h40, enfim, nasceu Carlos Eduardo, num parto normal e sem problemas. "Mas logo levaram o bebê para longe de mim. E só no meio da tarde trouxeram meu filho para amamentar", conta. A mãe de Maria Cláudia foi avisada do nascimento apenas às 10h30 do dia seguinte.
Hoje Maria Cláudia sabe, por experiência própria, que o parto não precisa ser assim. Dar à luz seu segundo filho, na Casa do Parto de Sapopemba, foi bem diferente. No dia 5 de julho, ela chegou à instituição às 4h30 da manhã. "Em nenhum momento fiquei sozinha. Além das enfermeiras, minha mãe ficou sempre por perto. Inclusive foi ela que cortou o cordão umbilical", diz. Maria Cláudia conta que pôde andar, tomar banho e escolher a posição mais confortável para o parto. E, às 14h30, deu à luz Paulo Henrique. "Ele ficou do meu lado, e algumas horas depois fomos todos para casa."
Quem chega à Casa do Parto de Sapopemba, a primeira de São Paulo e referência para o novo programa do ministério, não estranha seu nome: é mesmo uma casa, com portão de ferro sempre aberto, fraldas secando no quintal, fotos de gente querida enfeitando a sala de entrada, e um cheiro de comida gostosa que vem da cozinha. A sala de consulta é simples e aconchegante. E as duas salas de parto são pouco diferentes de quartos comuns: cama, cadeira, mesa com material de apoio, poltrona e uma janela para o quintal.
Como a instituição não faz cesarianas, os casos em que esse tipo de parto é indicado são diagnosticados no exame pré-natal, realizado nos postos de saúde do Projeto Qualis. Se for constatada hipertensão, diabetes ou desproporção entre o tamanho do bebê e a pélvis da mãe, por exemplo, o parto normal é contra-indicado, assim como no caso de desnutrição crônica materna ou retardo no desenvolvimento do bebê.
Podem também ocorrer posteriormente, no momento de pré-parto, outras situações – como a ausência de dilatação vaginal – que indiquem uma cesariana. Para casos como esses, a Casa do Parto de Sapopemba mantém uma ambulância de prontidão, para encaminhar a gestante a um hospital próximo.
Exceção que virou regra
É importante lembrar, no entanto, que as contra-indicações do parto normal são a exceção. Portanto, o fato de a cesariana ter se tornado regra nos hospitais e maternidades – públicos e privados – do Brasil é uma grande distorção. Com uma média de 40% de cesarianas sobre o total dos partos, enquanto a Organização Mundial da Saúde (OMS) admite 15%, o Brasil ostenta a posição nada honrosa de líder mundial em freqüência desse tipo de parto, que pode ser uma ameaça para a saúde da mãe e/ou do bebê. Cada cesariana desnecessária significa para a mulher um risco 20 vezes maior de complicações, como infecção ou hemorragia, em relação ao parto normal. A taxa de mortalidade materna, por sua vez, chega a se multiplicar por 12. Para a criança, também há riscos extras, especialmente por causa de problemas respiratórios. Além disso, o excesso de procedimentos cirúrgicos, internações e tratamento de complicações representa o desperdício de milhões de reais por ano.
Diante de uma situação tão incômoda e persistente, o governo começou finalmente a reagir. Em 98, o Ministério da Saúde lançou diferentes portarias para conter as cesarianas e ao mesmo tempo incentivar o parto normal. A remuneração de parto normal feito por enfermeira e o gasto com anestesia nesse tipo de parto, por exemplo, começaram a fazer parte da rotina do SUS (Sistema Único de Saúde). Também foi determinado um limite máximo mensal de cesarianas a serem pagas pelo governo aos hospitais públicos e conveniados. Para o segundo semestre de 98, o teto definido foi de 40%, passando para 37,5% em 99 e para 30% em 2000.
O impacto dessas medidas já pode ser percebido. De 1997 a 1998, a taxa de cesarianas no SUS passou de 32% para 28,4%, contra a queda de apenas 0,4% ocorrida entre 1994 e 1997. Mas o governo reconhece que os desafios ainda são enormes, principalmente em relação às maternidades particulares, algumas das quais chegam a exibir índices superiores a 90% de cesarianas.
Disque-parto
Essa trajetória que transformou a cesariana numa perigosa predileção nacional de certa forma "contaminou" o próprio parto normal, que passou a ser marcado por intervenções constantes, como lavagem intestinal, rompimento artificial da bolsa, aplicação de soro com medicamento para acelerar as contrações, corte de períneo (espaço entre o ânus e os órgãos sexuais), anestesia peridural ou geral – práticas que desde 1985 a OMS recomenda que sejam evitadas ou restritas.
Mas a mudança de atitude em relação a essas intervenções, defendida com veemência pelo movimento de humanização do parto, não é um consenso entre os profissionais de saúde. O secretário executivo da Febrasgo (Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia), Jacob Arkader, acredita que algumas das recomendações da OMS devem ser relativizadas, observando a realidade do país e da instituição.
Na sua opinião, o principal problema do modelo atual de atendimento é a falta de um sistema ágil e eficiente de vagas obstétricas. Como solução, ele propõe a criação de centrais de internação, para que a gestante possa checar a disponibilidade de vagas antes de sair de casa. Arkader também considera necessário aprimorar a formação profissional e a relação médico-paciente.
Os adeptos do parto humanizado, no entanto, consideram que há mais mudanças a fazer. A própria forma de encarar o parto, por exemplo. A idéia é deixar de tratá-lo como uma doença, cheia de riscos, e voltar a entendê-lo como um evento normal do corpo e da natureza, que não precisa ser acelerado ou entregue às mãos do médico. "A mulher é hoje refém de um modelo de assistência no qual é tratada como incapaz", diz a enfermeira obstétrica Ruth Hitomi Osava, diretora da Casa do Parto de Sapopemba. "Propomos que ela recupere sua capacidade de controlar a situação", conclui a especialista.
Segundo ela, a gestante deve ser estimulada a entender seu corpo, observar as contrações, controlar a respiração e até mesmo compreender a dor como parte integrante do nascimento do bebê.
Além de tentar despertar esse tipo de consciência, o atendimento humanizado, como o próprio nome sugere, busca valorizar as relações entre as pessoas. "O vínculo entre os pais e a criança começa diferente", diz Ruth.
Quando Aryane nasceu, logo encontrou os braços da mãe e o olhar do pai. Foi o primeiro parto de Flávia Silva Souza. "Cheguei com medo. Medo da dor, medo de morrer... Cada um me dizia uma coisa. Mas desde que entrei aqui, me senti em casa."
"Assim que minha filha nasceu esqueci até a dor. E logo veio uma fome danada", diz Flávia, rindo. Descreve então, com água na boca, o almoço e a sobremesa que saboreou. "Minha mãe estava junto, meus amigos chegaram...", lembra ela. A tranqüilidade e o apoio que sentiu o tempo todo abriram mais espaço para a alegria.
Saúde e cidadania
Ao lado das casas do parto, algumas maternidades também se alinham com essa mudança de postura. Escolhida como projeto-modelo pelo ministério, a maternidade do Hospital Sofia Feldman, em Belo Horizonte, dá exemplo de novas condutas desde sua criação, em 1982. A presença de familiares no parto, o incentivo ao aleitamento materno, o contato imediato da mãe com o bebê e o alojamento conjunto dos dois há tempos fazem parte de seu dia-a-dia. A gestante pode movimentar-se e, na hora do parto, pode escolher se prefere a posição tradicional, o parto de cócoras ou na água.
Os resultados são exemplares, dentro do contexto brasileiro: em 1997, menos de 16% dos partos realizados na maternidade foram cesáreas e, em 1998, 13,1%.
O médico Ivo de Oliveira Lopes, responsável pela maternidade, acredita que, mais que uma exceção, o Sofia Feldman faz parte de um movimento que ganha força. "As mulheres têm valorizado os serviços que lhes dão mais autonomia e as tratam como cidadãs", diz.
Opinião semelhante vem de Pernambuco. "Certamente, a mudança da assistência ao parto é uma parte importante da luta das mulheres por mais saúde e cidadania", diz a enfermeira e parteira Suely Carvalho, coordenadora da organização não-governamental Cais do Parto, em Olinda. Há oito anos, além de oferecer atendimento diferenciado à população, a entidade se dedica à capacitação e valorização das parteiras tradicionais da zona rural do norte e nordeste do país, cujas práticas, segundo Suely, "coincidem com a proposta de humanização". Para elas, afinal, não é novidade nenhuma estar junto, saber esperar e intervir o mínimo.
Nas mãos de Deus
A parteira Tereza Bordalo entrou no ofício por acaso. Estava apenas fazendo companhia a uma amiga prestes a dar à luz quando se viu diante de seu primeiro parto. "O marido tinha ido chamar a parteira da região. Mas eram três horas de viagem até ele chegar, e a criança não esperou", lembra Tereza, que mora em Oiapoque (AP), extremo norte do Brasil. "O medo acabou assim que o bebê nasceu. É só segurar na mão de Deus e ir."
Depois do primeiro, ela foi procurada para fazer mais um, mais outro e hoje já são 20 anos de partos. Ela mesma, como faz questão de lembrar, é "nascida de mão de parteira".
Hoje, à frente da Associação de Parteiras do Amapá, Tereza defende a capacitação das parteiras e a regularização de sua atividade. Em todo o estado, pelo menos 760 parteiras e parteiros foram cadastrados pelo Projeto de Parteiras Tradicionais do Estado do Amapá, iniciado em 96. Os frutos da iniciativa já começam a surgir. "Em quatro anos, reduzimos o número de cesarianas do estado de 30% para 10%", diz Raimundo Nonato Ribeiro Santos, consultor técnico do projeto. Por outro lado, já está prevista a construção de três casas do parto, coordenadas por parteiras.
Segundo levantamento do Programa Nacional de Parteiras, criado em 91 e hoje praticamente desativado, mais de 60 mil parteiras e parteiros atuam no país. "Esse saber não pode ser ignorado. Deve ser valorizado e integrado", diz Suely.
Mas há quem se preocupe com a revalorização das parteiras. "Os leigos devem ser capacitados para saber exatamente até onde podem ir", adverte o secretário executivo da Febrasgo, Jacob Arkader. Em regiões menos assistidas, o trabalho das parteiras chega a ser admitido pelos médicos, mas em geral eles defendem o parto como território privativo dos profissionais da área.
Não obstante, o trabalho com as parteiras tradicionais faz parte das propostas do ministério, que também pretende investir na formação de enfermeiros e enfermeiras obstétricas. Outra missão em pauta é aumentar o diálogo com as entidades do setor, universidades, empresas de assistência médica e seguradoras de saúde, com o objetivo de desestimular as cesarianas abusivas. "A sensibilização dos profissionais é crucial", diz Suzanne Serruya, responsável pelo Projeto de Humanização do Parto, do Ministério da Saúde. Ela acredita que a proposta de humanização é irreversível. "Certamente é o movimento mais importante para a saúde da mulher dos últimos 15 anos." Maria Cláudia e Flávia que o digam.
Intimidade e respeito à natureza
Familiar, íntimo e sagrado. Há séculos, o parto é assim na comunidade indígena de Iauaretê, na região do alto rio Negro, no noroeste do Amazonas. "Apesar da forte presença da missão católica e das agências militares no local e de todo contato com as cidades próximas, o parto parece ser protegido pelas mulheres e pelos homens", conta a antropóloga Marta Azevedo, que como pesquisadora do Núcleo de Estudos da População da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) desenvolve no local um projeto de saúde reprodutiva com as mulheres indígenas falantes de línguas da família tucano oriental.
Iauaretê é uma das 450 comunidades que vivem no alto rio Negro, divididas entre três famílias lingüísticas. Com importantes diferenças culturais, todas vivem uma realidade parecida, morando em aldeias ribeirinhas e sobrevivendo da pesca, da caça e da roça. O valor do parto, apesar das tradições específicas de cada grupo, também pode ser considerado um ponto em comum "não só entre os índios do rio Negro, mas de todo o Brasil", diz Marta.
"Em Iauaretê, os índios já procuram o hospital da missão em caso de doenças comuns. Mas com o parto é diferente." Marta conta que, mesmo depois de vários anos trabalhando em uma comunidade, ela nunca pode entrar em casa de mulher com filho recém-nascido. A intimidade e a magia do momento merecem proteção.
O antes, o durante e o depois formam um todo essencial para a vida da criança e da família. Durante a gravidez, a mãe e o marido devem, por exemplo, deixar de comer alguns alimentos para preservar a saúde da criança. Isso porque, nas palavras da antropóloga, "mãe, pai e criança formam um núcleo energético único".
Chegada a hora do nascimento, outra mulher, geralmente a sogra, vem ajudar no parto. "Algumas mulheres são mais experientes", diz Marta, "mas na verdade não existe a figura da parteira, é como se todas fossem parteiras."
Com a mudança dos tempos, algumas orientações externas são hoje bem-vindas. A tesoura, por exemplo, precisa ser desinfetada, pois não é como a antiga taquara afiada, preparada na hora e depois jogada fora. "Mas as tradições essenciais seguem vivas", observa a antropóloga.
A mulher anda, recebe massagem, toma chás. Pode ficar de cócoras, apoiar-se na rede. O marido fica por perto, rezando. Se a situação se complicar, pode chamar um benzedor. A criança nasce, assim, seguindo o tempo da natureza. O cordão umbilical é cortado só ao parar de pulsar. A criança vai então se embalar tranqüila com a mãe na rede.
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