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Ficção Inédita




Vai dar Quatorze

por Henrique Schneider

Como se pudesses enxergar alguma coisa, Gaudêncio, tivesses qualquer réstia de luz nestes jardins invisíveis que são teus olhos: assim te atiram moedas, os mais abusados, sempre um pouco longe para testarem se as persegues, se lhes darás o espetáculo do tropeço ou do chute em teu próprio chapéu, mas não; todos estes nos tocando têm sua valia, o diabo é ruim porque é velho e não porque é diabo: o máximo que fazes é sorrir, sorriso tão apagado quanto os teus olhos, para que se sintam superiores este bocós que vêem e não enxergam nada: claro que, se quisesses, pegarias o níquel em dois segundos, nada a atrapalhar, mas estás nesta esquina para tocar a tua gaita e não para correr calçada na frente dos desocupados; e a verdade é que a maioria acaba buscando a moeda para colocá-la direitinho em teu chapéu, enquanto saboreias em silêncio tua vitória.

Mas amanhã, se vieres, vais mandar um desses engraçadinhos para longe: vai dar quatorze.

Nenhuma calçada aqui do centro está livre de problemas, e sabes disso: são tantos passos e vozes, tantos movimentos ao redor, tanta gente indo e vindo, que não há como ficar desatento, o dinheiro é sempre pouco, mas é teu; a meninada que cheira cola e mora por estas praças próximas está sempre pronta para o teu descuido: quando percebes, é um vento só e eles já passaram, correndo em direção ao nunca mais; melhor que lhes cultives a amizade, há alguns que, pela voz, não têm dez anos e te chamam de tio quando conseguem falar, pedem que toques alguma coisa, e acabas trabalhando com prazer: naquele dia, tua féria está garantida, os meninos são leões a proteger o tio gaiteiro que divide com eles estes domínios.

Até é possível que compres alguma coisa para essa meninada, um presentinho que lhes alivie a desgraça de viver nas ruas: comprarás com o dinheiro do quatorze.

Hoje saíste de casa, pegaste o ônibus, com a impressão de que a sorte te acompanhava na viagem: sempre soubeste de casos, histórias de gente que tem uma visão e muda sua vida, que tem um palpite e leva sozinha a sorte grande; isso acontece contigo, agora, algo que nunca tiveste antes, um sonho, um sonho bom em que enxergavas todas as cores, tudo o que poderia existir de melhor para ti: e no meio do sonho, o número quatorze.

Quatorze.

O número nunca teve qualquer significado maior em tua vida: nada aconteceu num quatorze de qualquer mês; nunca ganhaste nada com ele; não nasceste em quatorze, nunca foi o teu número da sorte: por isso, esta certeza maior, esta coceira entre os dedos que alisam a gaita: tanto, que pegaste escondido o dinheiro que fica guardado no armário da cozinha, tateaste o móvel e o pote, em silêncio, para que tua mulher nada ouvisse, até que encontraste as notas, não sabes quanto.

E tudo no quatorze.

Trouxeste essas notas em teu bolso, jogaste para a loteria das seis horas: sessenta na cabeça, vinte no invertido, vinte no primeiro ao quinto, cem estava bom: o resto, pediste ao bicheiro que te devolvesse, voltará ao pote com muito mais: e pensas numa gaita nova para ti, um presente bom para a tua mulher, uma geladeira ou um destes liquidificadores que fazem de tudo, uma consulta para ela, consertos em tua casa, nestas paredes em que o vento é sempre ameaça e que todas as chuvas invadem: dias melhores, enfim, um pouco mais tranqüilos para vocês dois, só isso, para que não precises cuidar tanto da féria com o olhar que não tens: assim é que confias e tens fé no quatorze.

Vai dar quatorze, às seis da tarde.



Tocas tua gaita com essa certeza, provavelmente todas as músicas andem hoje num compasso mais rápido: o bicheiro até se admirou que fizesses um jogo, raramente apostas e nunca tanto dinheiro: mas conversam bastante, há horas em que chegas perto da banca, ambos em busca de uns trocados do povo: foi ele quem te falou que pelo movimento das apostas é que se via os tamanhos das crises: quando a crise começa, as apostas sobem doidas, todo mundo querendo ganhar ou recuperar o que deveria vir pelo trabalho: mas quando a situação é verdadeiramente ruim, aí o próprio movimento do jogo é pequeno: as pessoas não têm nem para tentar a sorte: agora, está assim, e sentes isso pelo barulho cada vez mais leve das moedas atiradas em teu chapéu.

Mas buscar uma vez, levar uma bolada no quatorze: o bicheiro te disse que, se vier, vem grande: e vem, porque nunca sonhas, nesta noite sonhaste.

Tua esquina, tua casa: todos que trabalham por aqui te conhecem, saem ao meio-dia e param um instante para te escutar antes do almoço apressado, alguns pedem música, e sabes pela voz o repertório a ser tocado: a dona da lanchonete onde às vezes almoças e que troca um refrigerante por uma sertaneja; os aposentados que rumam em direção à praça e gostam de músicas mais antigas – nem sempre jogam moedas, porque o dinheiro é curto; a professora, que adora tangos e por aí andam juntos vocês dois, também é a música de tua preferência; a menina que vende flores e uma vez chorou quando tocavas Roberto Carlos – pobrezinha, provavelmente um amor que se foi ao som dessa música; para eles e para todos os passantes, tocas hoje com vigor redobrado, porque gostas de música e porque vai dar quatorze.

E quando perguntaste as horas, não faz muito, e uma voz feminina te respondeu que eram duas, tua certeza aumentou: duas da tarde, quatorze horas; vai dar quatorze.

Assim que, de agora em diante e até o fim do dia, decides que só tocarás composições alegres, a não ser que algum coração partido te peça e pague por algo mais chorado, mas, sem pedido, sem tristeza; e dê-lhe polca e mazurca; e não desafinas nem quando uma voz de garoto te pede um samba, tio: toda uma vida tocando, cabarés, bares, ruas, rodoviárias, feiras, praças, te ensinaram a nunca dizer não sei; sai o samba, a pedido, mesmo que a gaita não seja o melhor instrumento: floreios e floreios enquanto sorris a certeza de que vai dar quatorze, e os passantes pensam que é apenas porque te agrada a música.

Cinco e quinze: menos de uma hora para dar o quatorze.

Quando ouviste o cinco e quinze, uma voz tranqüila e que não sabe da tua ansiedade, tiveste pela primeira vez uma ponta de incerteza: cem contos é muito dinheiro, não levantas isso nunca com tua gaita, e tua mulher demora dias para consegui-lo, consumindo-se em faxinas e limpezas: o medo, o medo que apareceu, súbito, se não ganhas, o dinheiro está morto e sabes que vai fazer falta; mas não, estes cinqüenta vão se transformar em muito mais: reforma na casa, presente à mulher, um bom médico para que ela nunca mais precise gemer de dor nas costas: e uma poupança, porque sonhaste com o quatorze, o sonho foi bom, um sonho que, se falasse, te diria joga e ganha; apenas cumpriste essa ordem: por isso, vai ter que dar, pensas, enquanto executas as músicas por minutos, a fim de contar o tempo que passa: esta, três minutos, a outra, quatro e meio, com um arranjo que tu mesmo compuseste, até que cheguem as seis horas.   

Seis horas: tempo de dar o quatorze.

Melhor não ir agora, esperar um pouco: além do movimento que são os clientes habituais querendo o resultado, sabes que todas as vezes em que a impaciência guiou teus passos cegos, os resultados foram negativos: talvez porque o coração esteja muito acelerado, muito desejoso: assim, resolves tocar mais três músicas, algo como quinze minutos e algumas notas e moedas caindo em teu chapéu, executas “Mercedita”, “Amigo” e “Quilômetro 11”: há alguns que aplaudem, as pessoas gostam de cegos tocando gaita: até o momento em que agradeces, fazendo uma rápida mesura, e recolhes o chapéu, há diversas moedas e apenas umas cinco ou seis notas, mas não faz mal: vai dar quatorze.

Tem que dar quatorze. Tem que dar.

Segues em direção à banca, mais ou menos escondida, de jogo do bicho, andas com cuidado, porque às seis e quinze todos querem chegar a casa e ninguém pensa em desviar de cegos: tua bengala te guia e salva: jogaste cem pratas e toda esta angústia que te toma agora: é muito dinheiro demais, mas o sonho, nunca antes sonhaste e hoje tiveste certeza, um homem precisa ter algumas certezas na vida: vai dar quatorze e esta velha amiga vai ganhar um trato – acaricias a gaita como se ela fosse parte de ti. Sentes, pelos movimentos e pelas nuances de sombras, quando as pessoas desviam de ti; já estás perto, e teu coração pulsa na garganta, inteira vontade de gritar ao saber do quatorze: passo a passo em direção à pergunta:

“E aí, chefe, deu quatorze na cabeça”?
E a voz do bicheiro:
“Nada, seu Gaudêncio. Deu cento e vinte e seis”.
Não sabes de onde encontras forças para perguntar, sumido, sobra de esperança em tua fala:
“E no invertido ou no primeiro ao quinto”?
“Nada, nada. Hoje o quatorze nem passou perto”.

Para ele é fácil dizer isso, pensas, ele que está com os teus cem no bolso: mas o choque é grande, nem gaita nova, nem presente, nem consulta, nem reforma, apenas a tua mulher desesperada a perguntar aonde foi parar o dinheiro, meu Deus do céu: é assim que ficam ainda mais opacos os teus olhos às seis e vinte desta tarde, enquanto abraças tua gaita com uma vontade enorme de chorar e voltas para a tua esquina, passos sem rumo: e é com um sorriso num abismo de tristeza que desabotoas a gaita, colocas o chapéu à tua frente e anuncias com nova mesura, a quem estiver passando, que, frente a inúmeros pedidos, o artista havia decidido dar um espetáculo extra.



Henrique Schneider é autor, entre outros livros, de Contramão (Bertrand Brasil, 2007).