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Matéria de Capa - O Lugar da Criação
Desde que extrapolou ambientes tradicionais, como o museu e o palco italiano, a arte contemporânea ocupou as ruas da cidade e invadiu espaços virtuais
Logo no início das discussões sobre como seria a Mostra Sesc de Artes 2008, a equipe organizadora – formada por técnicos de diferentes unidades e assistentes da Gerência de Ação Cultural (Geac) do Sesc São Paulo – tinha claro que essa abrangente ação cultural do Sesc, mais uma vez, deveria refletir a nova produção da arte contemporânea. A soma de experiências vividas nas edições passadas levou a equipe à questão-síntese da mostra – anual desde 2002: quais são os lugares da arte contemporânea? “Percebemos que são vários”, diz a assistente da Geac Juliana Braga. “Vimos que a arte se manifesta nos espaços tradicionais e na ocupação de espaços não usuais.” Segundo Juliana, essa constatação levou a um impasse: numa época em que a informação transborda do mar de referências da sociedade da internet, como conseguir mostrar essa pluralidade de espaços possíveis da arte? “Tivemos a impressão de que muitas coisas vão se perdendo no dia-a-dia de uma cidade frenética como São Paulo”, afirma. “Por isso nos propomos a investigar esse momento e explorar novos formatos de programação e de ações.”
O campo de observação exposto pela equipe curatorial da Mostra 2008, a se realizar em outubro, dialoga diretamente com o momento artístico que os criadores vivem hoje. “E acho que [a Mostra] é até o reflexo de um movimento de longo prazo”, opina Paulo Casale, gerente-adjunto da Geac. “Houve um momento em que as artes se institucionalizaram – então, construíram-se os teatros, museus etc. Hoje, a produção é tão ampla que esses espaços se tornaram um tanto insuficientes para abarcar a produção produção artística que é viva, e começou a migrar para diferentes locais.” Casale explica ainda que, no momento em que o Sesc São Paulo traz para a programação de sua Mostra anual a produção que acontece fora dos “espaços institucionais” – aliado a sua rede de unidades equipadas para receber todo tipo de manifestação artística –, a idéia é expor o que há de “efervescente, ou mais experimental, ou mais criativo” na arte contemporânea.
Fruição
Em 2008, a Mostra Sesc de Artes pretende promover o diálogo entre as obras, os artistas, os espaços e o público – intenção já presente em outras edições do evento, como Circulações, do ano passado. O que a Mostra [deste ano] elegeu como temática foi pensar os deslocamentos de percepção do público, frente a expressões artísticas que se manifestam em diferentes lugares, em diferentes escalas. Segundo a equipe, a idéia de espaços múltiplos não é nova, mas hoje essa característica é muito visível. No entanto, o conceito de “lugar” explorado pela Mostra 2008 não é usado em sentido estrito, ou seja, o de espaço físico. Apropriações do conceito de espaço/escala, em sentido metafórico, também estão presentes nos trabalhos que serão apresentados nesta edição.
O crítico de arte, pesquisador e professor da Escola da Cidade Cauê Alves lembra que a derrubada de limites, também físicos, proposta pela arte não é recente. De acordo com Alves, ela nos leva aos primórdios do século 20.
“Isso começou já no início do século passado, com a arte moderna”, explica. No entanto, salienta o valor atemporal da quebra da barreira entre a arte e a própria vida cotidiana proposta por esse tipo de intervenção. “É muito importante você poder se deparar com uma obra de arte na rua, que não tenha aquela aura de monumento, algo distante das pessoas”, diz. Um dos focos de interesse, segundo o crítico, é “testar” as reações das pessoas – que se tornam espectadoras ao mesmo tempo em que passam a interagir com a obra. “Há desde os que ignoram até os que se comovem ou repudiam, destruindo a obra.” O especialista ressalta o fato de que no momento em que uma instituição como o Sesc apóia esse tipo de iniciativa, ela se torna uma facilitadora desse diálogo. “É difícil um artista sozinho chegar ao poder público e solicitar uma intervenção”, afirma Alves. “Por isso é importante ter o respaldo de uma instituição que promova essa mediação, como o Sesc, por exemplo.” Paulo Casale lembra a autonomia que uma obra de arte possui para se comunicar, mas também lista alguns recursos que podem ser postos à disposição do público para impulsionar a fruição. “A obra tem uma eloqüência individual”, declara. “Mas as leituras de interpretação e textos que detalhem as intenções e os conceitos de determinada obra são um segundo passo importantíssimo.”
ApropriaçãoNo campo das artes dramáticas, o diretor do Teatro da Vertigem, Antônio Araújo, explica que a ocupação de lugares múltiplos faz parte da própria história do teatro. “Na verdade, o palco italiano [o mais tradicional, no qual a cena se passa de frente para a platéia], que é forte hoje em dia, é até mais recente”, explica. “O que ocorreu foi que as apresentações em palcos italianos se tornaram padrão ao longo da história do teatro.” No entanto, de acordo com Araújo, é possível considerar mais atual a existência de um “forte movimento na arte contemporânea”, no sentido de não usar unicamente os locais convencionais para o fazer teatral, “além de um desejo de interferir na cidade”, complementa o diretor. “Até mesmo o teatro de rua mostra esse desejo de forma ampliada. Uma vontade de mostrar como qualquer espaço é passível de intervenções teatrais. É um desejo de ocupação da cidade, de recuperação e de ressignificação dos espaços da cidade.”
Em suma, teatro fora do teatro não é algo novo, mas a ânsia em se apropriar da cidade por meio dele é a cara dos novos tempos. “Talvez devido ao confinamento que existe atualmente na cidade – as pessoas ficam presas em seus condomínios, há inúmeros problemas de circulação, entre outros motivos, pela própria violência. E essa experiência de ocupação resgata o sentido público da cidade e da própria arte teatral, resgata a ágora [como era chamada a praça principal das antigas cidades gregas, o grande ponto de convívio urbano]”, detalha o diretor. Segundo ele, quando a arte ocupa espaços não pensados originalmente para fins culturais, ela própria ganha novas dimensões – como a de instrumento de cidadania. “Além de, claro, considerar o valor artístico de espetáculos que se apresentam nesses outros lugares, vale dizer que esse tipo de intervenção atinge um âmbito maior da arte, aquele que interfere na vida da cidade.” Paulo Casale reforça o quanto esse movimento se encontra no foco das ações da Mostra Sesc de Artes 2008. “Quando dizemos que nossa investigação está direcionada para os lugares da arte contemporânea, estamos querendo dizer também que a arte acontece para além dos espaços tradicionalmente voltados para o recebimento de obras, sejam os espaços do teatro, sejam os espaços das áreas expositivas”, comenta.
Novos procedimentos
A música vinculada ao contexto da arte contemporânea trilha caminhos de pesquisa de novos procedimentos criativos. “Ao menos é nisso que estou interessado agora”, conta o músico Lívio Tragtenberg, presente em duas edições da Mostra Sesc de Artes: a Latinidades, em 2003, e a Mediterrâneo, em 2005. “Estou querendo mexer na criação, misturar o étnico com o urbano. Costumo dizer que não toco música, eu toco músicos”, afirma em tom de brincadeira. Baseado na observação que faz do cenário musical não-comercial de hoje, Tragtenberg considera o procedimento como uma tendência. “Você vê a mistura do rap com o samba, por exemplo”, diz. “O resultado é algo novo dentro da música urbana. O material que temos para trabalhar é muito diversificado. Claro que tudo isso passa longe da grande mídia. É algo que se foca em alternativas de veiculação do trabalho.”
Entre essas formas, talvez a principal, o músico aponta a internet – considerada por muitos artistas a nova ordem em termos de propagação da produção artística. “A rede entra nessa história como espaço ideal para difundir o trabalho do artista que está fora da grande mídia”, declara. “É só ver o MySpace [página da internet na qual qualquer pessoa pode divulgar suas músicas], que se tornou um verdadeiro fórum, tanto para músicos quanto para o público. Tanto é que até os músicos comerciais estão lá. E trata-se de uma ferramenta para estabelecer parcerias também na criação, não somente na veiculação.” Dois exemplos do trabalho que Tragtenberg vem desenvolvendo puderam ser conferidos em outras edições da Mostra. No ano em que o tema do evento foi Latinidades, o músico se juntou com o violinista cubano Alfredo Triff para o show Dueto Brasil/Cuba; já na Mediterrâneo, Tragtenberg e os músicos Carlinhos Antunes e Magda Pucci criaram a Orquestra Mediterrâneo.
“Foram 20 músicos da Europa e do Oriente Médio”, lembra. “Havia músicos do Marrocos, Itália, Grécia, Líbano. A orquestra tocou músicas de todos eles. Isso é superbrasileiro; na Europa não é assim, cada um fica na sua tradição.” O show da Orquestra Mediterrâneo está disponível em CD e DVD pelo Selo Sesc (www.lojasescsp.org.br).
Bookaholics virtuais
Quando o assunto é literatura, segundo explica a professora Heloísa Buarque de Holanda, o lugar das letras também é múltiplo. “Acho que literatura, hoje, está surpreendendo”, afirma. “Depois dos anos de 1960, ela teve uma pequena queda, por causa do cinema, que ganhou espaço. Mas hoje a palavra está um tsunami, ela está por toda parte.” Heloísa, que leciona teoria crítica da cultura na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), julga “impressionante” o status que o livro, inclusive como objeto, conquistou em plena era da internet. É só ver o que aconteceu no debate de que participei no Sesc Consolação [refere-se ao projeto Cartografia Web Literária, comentado na matéria Da página à tela, nesta edição]. As pessoas falam e falam de internet, mas, de repente, o livro, o papel mesmo, aparece como algo muito importante.” A especialista explica que tal fenômeno seria impensável há 50 anos. “Na década de 1960, o escritor não cumpria esse papel de se tornar, ele também, uma celebridade, de vender sua imagem, de atender o público com um sorriso etc. Seu papel era a denúncia [contra a ditadura], sua missão era revolucionar. Hoje, ele tem a missão de dar prazer. E eu não acho isso ruim, não consigo colocar uma moral nisso, achar que a literatura perdeu. Hoje, você tem muito mais leitores, porque a literatura entrou para a cena, inclusive do lazer, o que é muito importante num país de analfabetos, num país que rejeita o livro, como o Brasil.”
Por outro lado, ao mesmo tempo em que o objeto livro, de acordo com a professora, ganhou lugar nos corações desejosos da sociedade de consumo, o espaço virtual surge, nessa mesma cultura, como principal lugar alternativo para a literatura. “A rede agrega, existe uma vida literária muito intensa hoje na internet, que é comunitária. Você forma grupos, faz amizades. Há uma gíria muito usada na internet que é bookaholic [viciado em livros]. Agora, quem era bookaholic antes [da internet]? O próprio book era para poucos, e para os jovens, nunca. E os bookaholics da internet têm de 17 a 20 anos. Isso é estupendo, inacreditável.”
1997
Tudo teve início com a Temporada Sesc Outono. Ainda que possa ser considerada parente um pouco distante do modelo atual da Mostra Sesc de Artes, naquele ano a proposta da Temporada já era promover um recorte especial na programação das unidades. Uma ação que se encerrou com o projeto Babel, reunindo 100 artistas num enorme galpão, localizado onde hoje é o Sesc Pinheiros.
1998
Foi a vez do Mundão, realizado na unidade Santo Amaro, que reuniu representantes da diversidade, como a banda – então iniciante – Karnak, de André Abujamra, e o músico Tom Zé. “O evento realmente colocou o bairro [de Santo Amaro] no mundo”, afirmou Tom na época à Revista E. O Sesc também realizou o projeto Lorca na Rua, uma homenagem ao centenário do escritor e poeta espanhol Federico García Lorca, marcada por uma turnê pelo interior do estado de São Paulo em três grandes caminhões, que se transformavam em palcos.
1999
A contribuição da obra e do pensamento do modernista Mário de Andrade, autor de Macunaíma – O Herói sem Nenhum Caráter, foi passada a limpo na mostra temática Coração dos Outros – Saravá, Mário de Andrade, no espaço onde hoje está sendo construída a futura unidade Belenzinho. A multiplicidade cultural na era da globalização também ganhou sua leitura, em 1.999... Reticências, a contagem regressiva rumo ao século 21, que levou a todas as unidades uma programação especial para mexer com a noção dos limites entre as diferentes culturas e as múltiplas linguagens artísticas.
2000
Como resultado de uma verdadeira andança pelo Brasil, feita pelos técnicos da instituição, o projeto Balaio Brasil buscou descobrir e realçar a produção artística nacional que ainda não tivesse despertado a atenção da mídia de massa.
2001
A dança foi o destaque, com a Mostra Internacional Sesc de Dança.
2002
Esse grande evento dedicado às artes, organizado pelo Sesc, recebeu, pela primeira vez, o nome de Mostra Sesc de Artes. A edição teve como tema a relação entre público e obra, sintetizada sob o título Ares e Pensares.
2003
Com o intuito de pôr o brasileiro em contato com a cultura de seus vizinhos de continente, a Mostra escolheu o tema Latinidades, reunindo manifestações artísticas das três Américas – e também da Europa, pelas origens históricas dos povos latinos.
2004
O evento aconteceu como parte do Fórum Cultural Mundial, que levou a discussão da cultura para os campos econômico e social – em foco, a produção cultural como geradora de renda e de valor econômico de um povo. Segundo declarou o diretor regional do Sesc São Paulo, Danilo Santos de Miranda, na época, a proposta foi “reunir esforços internacionais para dar lugar a uma agenda voltada às questões mais relevantes do mundo que existe fora do eixo hegemônico.”
2005
O tema foi o mar Mediterrâneo e a diversidade de culturas e línguas que o circundam – parte da Europa, Ásia Ocidental e norte da África. A idéia era transferir para a programação a mesma pluralidade cultural da qual o maior mar interno do planeta é símbolo. “A leitura do Mediterrâneo, feita para a mostra, partiu dos primórdios históricos, geográficos – muito importantes –, geopolíticos, culturais, filosóficos, religiosos e simbólicos relacionados aos momentos atuais da nossa história”, explicou a assistente da Gerência de Ação Cultural (Geac) Nurimar Maria Falci à Revista E à época..
2006
O evento recebeu excepcionalmente o nome de Temporada Sesc de Artes e foi um dos carros-chefe da comemoração de 60 anos da instituição.
2007
Com o tema Circulações, abordou tanto a relação entre obra, espaço e público, quanto os processos criativos dos artistas. “Circulações foi uma mostra que marcou uma série de pequenas, mas significativas, mudanças no que diz respeito ao formato e às novas intenções de programação”, explica Juliana Braga, assistente da Geac do Sesc São Paulo e membro da equipe de coordenação da Mostra 2008. “Em formato porque a gente, a partir desse momento, começou a refletir sobre essa iniciativa da instituição de trazer, em um momento muito focado, propostas artísticas de relevância e bastante representatividade para as pesquisas contemporâneas.”

O caráter educativo é um dos destaques da Mostra Sesc de Artes também em 2008
O aspecto educativo da atuação do Sesc São Paulo tem por princípio fazer parte de cada uma das ações desenvolvidas pelas unidades diariamente, ao longo de todo o ano. A assistente da Gerência de Ação Cultural (Geac) da instituição Juliana Braga lembra que essa preocupação se mostra já no atendimento aos usuários. “Isso acontece desde a informação básica fornecida a uma pessoa, dentro de um conjunto mais amplo que a gente pode chamar de educação, até a ação artística em si.” Referindo-se à Mostra Sesc de Artes 2008, o gerente-adjunto da Geac Paulo Casale afirma que a ação educativa do evento começa “a partir do momento em que se tem contato com um novo repertório artístico. Quando você tem contato com a obra de um Chico Buarque, de um Villa-Lobos, isso já é educativo em um primeiro momento.” A arte-educadora Ana Mae Barbosa explica que cada vez mais vem se descobrindo a importância da arte no desenvolvimento da capacidade de conhecer do ser humano. “A arte é importantíssima no sentido de desenvolver o que Howard Gardner [psicólogo cognitivo e educacional norte-americano] chamou de múltiplas inteligências”, explica a educadora. “E principalmente uma, que não consta das categorias estabelecidas por ele, que é a inteligência visual.” Sobre a Mostra Sesc de Artes, Ana Mae salienta que uma das principais contribuições é a expansão do conceito de arte que o evento promove. “O Sesc amplia o que é arte para as pessoas”, afirma. “Aumenta as áreas de contato entre as obras e artistas e o público, traz a cultura para o campo visual e une o que é erudito, o que é pop – no sentido norte-americano, de mídias etc. – e o que é popular, ou seja, o código do povo.” O diretor regional do Sesc, Danilo Santos de Miranda, conclui dizendo que a melhor maneira de conferir o significado dessa ação educativa do Sesc é vivenciar o dia-a-dia das unidades. “Ouvir o relato dos freqüentadores sobre a importância do Sesc em suas vidas e para suas famílias”, finaliza Miranda.
