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Encontros
por José Macia, Pepe
Com 405 gols marcados em 750 partidas, José Macia, o Pepe, é o segundo maior artilheiro da história do Santos – perdendo apenas para Pelé. O ex-jogador e ex-técnico de futebol foi fiel ao alvinegro da Vila Belmiro durante toda a sua carreira, de 1951 até 1969 – o que significa também muitos convites para jogar no exterior recusados.
“Eu era um jogador muito sossegado, talvez até um pouco bobo demais”, afirmou no encontro que teve com o Conselho Editorial da Revista E. “Eu chegava para o diretor [do Santos] e dizia: ‘Estou com essa proposta aqui da Espanha e vocês resolvam aí’”. Ainda na ocasião, Pepe falou sobre sua infância e início de carreira, sobre o “toque desleal” que o tirou da Copa do Mundo de 1958, na Suécia – para onde viajou com a seleção mesmo contundido. Também apontou as diferenças entre os papéis de jogador e técnico. “Ser técnico é muito mais difícil”, disse. E abordou o “profissionalismo” dos jogadores de hoje. “Eu não vejo nada de errado em eles serem profissionais, porque é uma carreira difícil, curta.” Aos 73 anos de idade, Pepe conserva o bom humor e a memória. Ainda bem, já que tem muita história para contar. A seguir, trechos.
Começo: futebol, defuntos e redinhas
Desde garoto, eu tinha essa tendência para jogar futebol, eu me destacava entre os garotinhos com 8, 9 anos.
Chamava muito a atenção. Eu conduzia sempre a bola com o pé esquerdo. O pessoal dizia: “Esse menino é capaz de ser jogador de bola”. Eu não era de rodar pião, de empinar papagaio. O meu esporte mesmo era o futebol. Não digo que fui um mau aluno na escola, consegui me formar no curso secundário, mas já estava jogando nos amadores do Santos, no qual comecei em 1951. Fui fazer um teste no infantil do Santos, eu morava em São Vicente, me destacava e me levaram para treinar lá. Logo no primeiro treino, eu fiz um gol e agradei o treinador – uma figura que trabalhava na Casa Rosário, uma funerária. Ele misturava o trabalho de técnico do Santos e motorista do carro que levava os defuntos. Para dar o treino do time, às vezes ele deixava o defunto esperando na porta da Vila Belmiro, dirigia o treino e depois levava o defunto embora.
Eu tinha uma vasta cabeleira e treinava com um boné; punha o boné com a aba para trás e, quando corria, para não deixar o boné cair, eu o tirava e o levava na mão. O treinador me falava: “Você com essa cabeleira, com esse boné, como vai jogar uma partida de futebol? Vai nas Lojas Americanas e compra uma redinha, é baratinho”. Eu comprei e passei a usar a tal redinha.
O ex-jogador de futebol José Macia, o Pepe, esteve presente na reunião de pauta do Conselho Editorial da Revista E em 18 de julho de 2008
Toque desleal
Havia 44 jogadores convocados [para a seleção brasileira de 1958, campeã da Copa do Mundo daquele ano].
Três pontas-esquerdas: eu, o Zagallo e o Canhoteiro. Eu marcava, modéstia à parte, de 90 a 100 gols por ano. O Zagallo tinha outra característica: marcava cinco gols, jogava mais como meio-armador, não tinha aquela velocidade e o chute que eu tinha. E o Canhoteiro era um bailarino, era quase um Garrincha da ponta-esquerda, mas era tido como um jogador meio irresponsável, porque gostava de sair um pouco, mas era um ponteiro excelente. Podia ter ido também [para a Suécia, sede da Copa de 1958], mas cortaram o Canhoteiro; então fui eu e o Zagallo. Só que antes de chegar à Suécia – e aí foi o meu azar –, fomos jogar duas partidas na Itália, primeiro contra o Fiorentina e depois contra o Inter de Milão. Fiorentina, quatro a zero, eu fiz um gol. No jogo do Inter de Milão, eu estava jogando, e bem, pela ponta-esquerda, ia correndo com a bola e um jogador italiano, por trás, me deu um toque desleal. Foi desleal porque eu era um jogador absolutamente canhoto, eu só jogava com a esquerda. Então não havia por que, eu conduzindo a bola com o pé esquerdo, o cara me dar um toque no tornozelo direito. Ele me tirou do jogo contra o Inter e da Copa, porque aí acabou tudo, o Zagallo entrou no meu lugar, e o jogo terminou comigo com o tornozelo deste tamanho [faz o gesto de inchaço]. Viajamos para a Suécia, e eu já de chinelo; na verdade nem o chinelo eu podia calçar no pé direito, de tão inchado que estava.
Um infeliz de um jornalista, um dia desses contando essa passagem, falou: “É daí que começou a usar a palavra chinelinho. O Ronaldo Fenômeno está sempre de chinelinho porque não joga”. Quase mandei esse jornalista para aquele lugar. Enfim, fui para a Suécia, mas não consegui me recuperar. Fiz muitos tratamentos, na época não tinha a facilidade que se tem hoje: era água quente e gelo. Para vocês terem uma idéia, quando eu cheguei a Santos, depois da Copa, estava com queimadura de terceiro grau nos tornozelos, de tanta água quente que eu coloquei, na tentativa de me recuperar.
Técnico versus jogador
Como jogador, você entra feliz, depende só de você. Claro, depende também do time, mas você procura fazer o seu. Você pode dizer: “Joguei bem, perdemos o jogo, mas saiu tudo tranqüilo porque joguei bem, procurei fazer o meu melhor, me esforcei”. O jogador, claro, pensa na equipe, mas pensa também nele mesmo. Agora, como técnico, você depende do que os jogadores vão jogar, onde eles vão produzir, e você fica sentado sem poder prever o que vai acontecer. Ou seja, ser treinador é muito mais difícil. A torcida também não compreende, a primeira cabeça que eles pedem é a do treinador. O time começa a perder, já vem: “burro” etc. e tal. E isso em todos os lugares. Eu trabalhei em Portugal e ficava uma portuguesada: “Ó pá, põe o fulano seu... – e vinha um palavrão. No Japão, por exemplo, a gente não entendia [o que a torcida falava], mas em Portugal dava para entender bem.
Profissionalismo
Eu acho que o jogador está mais profissional que na minha época. Eu tive propostas quando joguei, principalmente da Espanha; o Barcelona todo ano queria me contratar, o La Coruña também. Algumas equipes tentaram me levar – e eu ainda tenho a facilidade de ser filho de espanhol e ter dupla cidadania. Mas eu era um jogador muito sossegado, talvez até um pouco bobo demais. Eu chegava para o diretor [do Santos] e dizia:
“Estou com essa proposta aqui da Espanha e vocês resolvam aí”. Hoje o jogador fala: “Se eu não for, não jogo mais”. É mais ou menos isso. Hoje, vejo que o pessoal é mais profissional, os jogadores não têm mais aquele amor à camisa, jogar machucado, esse troço todo. Eu não vejo nada de errado em eles serem profissionais dessa maneira, porque é uma carreira difícil, curta. Às vezes o cara tem uma lesão, uma contusão, e não pode mais jogar. Então acho certo o cara exigir, pedir e ir para o exterior. Se eu estivesse jogando hoje, eu iria. Na minha época eu não quis. Hoje, vejo que não posso me queixar, continuei tendo uma vida boa e até certo ponto tranqüila, mas tenho 73 anos e tenho ainda que trabalhar.
“Como jogador, você entra feliz, depende só de você. Claro, depende também do time, mas você procura fazer o seu. (...) O jogador, claro, pensa na equipe, mas pensa também nele mesmo”