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Tranqüilidade, pacatez, rotina, monotonia. Esses termos se encaixam na vida de um gênio? Como lembra o ensaísta e crítico Antonio Candido – no ensaio Esquema de Machado de Assis, de 1968 –, se pensarmos no escritor inglês Charles Dickens (1812-1870) “desgovernado por uma paixão de maturidade” ou no francês Marcel Proust (1871-1922) “enjaulado no seu quarto e no seu remorso” pela homossexualidade reprimida, provavelmente diríamos que não. “Temos uma tendência quase invencível para atribuir aos grandes escritores uma quota pesada e ostensiva de sofrimento e drama”, afirma Candido em seu texto. No entanto, no caso de Machado de Assis, e de sua vida simples, tratamos de uma exceção, uma entre outras, como o destino de reconhecimento em vida – sobretudo tendo em vista sua origem. Mulato e pobre – em um Brasil escravista e já dado a reservar os direitos e conceder privilégios apenas às casas mais abastadas –, Joaquim Maria Machado de Assis nasceu, em 1839, filho de operário, foi criado no Morro do Livramento, no Rio de Janeiro, e protagonizou uma vida cujos sofrimentos “não parecem ter excedido aos de toda gente”, continua Candido. “Nem sua vida foi particularmente árdua.” O filho de Francisco José de Assis e de Maria Leopoldina Machado de Assis perdeu a mãe cedo e cresceu sem meios para uma educação regular. Adentrou o mundo das letras um tanto por conta própria, o que não o impediu de ter uma obra publicada antes dos 15 anos. O soneto À Ilma. Sra. D.P.J.A., de 1854, no Periódico dos Pobres. Foi com essa idade também que o futuro escritor começou a tomar contato com o universo que viria a descrever em seus romances, o “Rio das altas rodas, da Corte que se diverte e se ilustra”, conforme descreve o jornalista Daniel Piza em Machado de Assis – Um Gênio Brasileiro (Imprensa Oficial, 2005). “A oferta artística que o jovem Machado descobre é impressionante”, revela Piza. A porta de entrada foi a Tipografia Dois de Dezembro, de Paula Brito – mestre no ofício –, onde arruma seu primeiro emprego, em 1854.
Talento e fineza
Dois anos depois, Machado muda de patrão e passa a ser aprendiz de tipógrafo na Imprensa Oficial. O período é crucial em sua biografia, pois foi nesse novo trabalho que o jovem “daria rumo a suas duas carreiras”, conforme conta Piza. “A de cronista e a de funcionário público”. As portas passaram a se abrir, então, com a ajuda de Manuel Antônio de Almeida, diretor da tipografia e romancista conhecido – entre outros livros, por Memórias de um Sargento de Milícias – num belo golpe do destino, diga-se de passagem. “Ao que parece, [Machado] não chegou a aprender grande coisa”, conta o jornalista e crítico literário Alfredo Pujol (1865-1930) no livro Machado de Assis (de 1917 e com uma edição de 2007 pela Imprensa Oficial), volume que reúne uma série de sete conferências ministradas na Sociedade de Cultura Artística de São Paulo. “O chefe das oficinas queixava-se freqüentemente de Machado de Assis: ‘O serviço do rapaz não rendia... De quando em vez abria um livro e punha-se a ler pelos cantos...’. Chegaram as queixas ao gabinete do diretor.” O episódio termina com Manuel, o diretor, conhecendo o jovem, sua situação financeira precária e sua precocidade. A partir de então, passa a incentivá-lo em suas empreitadas literárias. O fato viria se mostrar um perfil na vida de Machado, que sempre contou com uma rede de bons relacionamentos. Não que ele precisasse de ajuda para voar – talento e inteligência lhe saíam pelos poros –, mas, sem dúvida, carecia de impulsos para as decolagens. Nomes importantes não faltaram no seu círculo de amizades. De José de Alencar ao político Quintino Bocaiúva e o diplomata e poeta Francisco Otaviano. “A sua carreira foi plácida”, resume Antonio Candido, afirmando também que a sua “condição social” – a mesma que o privou de uma melhor formação escolar e o obrigou a trabalhar cedo – “nunca impediu que fosse íntimo, desde moço, dos filhos do Conselheiro Nabuco, Sizenando e Joaquim, rapazes finos e cheios de talento”.
Universo interior
No início da década de 1870, Machado de Assis já era escritor dos grandes. Segundo revela a crítica, ensaísta e tradutora Lúcia Miguel Pereira (1901-1959) em Machado de Assis – biografia publicada pela primeira vez em 1936 e com uma edição de 1988 pela Itatiaia Editora –, a revista literária Arquivo Contemporâneo publicou, em 1873, um retrato seu ao lado de José de Alencar, “dizendo-os os maiores escritores do momento”.
Paralelamente às atividades de escritor e cronista, Machado galgava, a passos comedidos, mas firmes, novos postos na Secretaria da Agricultura, da qual foi funcionário desde 1867 e pela vida toda. Lúcia conta que a condição de funcionário público foi o que o “estabilizou”. Segundo a autora, “terminava o rápido movimento de baixo para cima que esse tímido soube imprimir à existência”. Machado chegou a altos cargos na Secretaria. Em 1876, a própria Princesa Isabel (1846-1921) o promoveu por meio de um decreto. A vida, de fato, seguia “plácida”. “Os trabalhos da Secretaria e as leituras lhe ocupariam o espírito”, escreve a biógrafa. “E o coração seria satisfeito com a ternura da mulher [Carolina Xavier Novaes, com que casa em 1869], a convivência dos amigos, o amor pelos cachorros. Cuidava das flores, leria bons livros e viveria regalado, satisfeito da sorte.” Não se tratasse do homem “que opulentou nosso patrimônio de arte com uma fulgurante galeria de obras-primas”, sentencia Alfredo Pujol, poderíamos estacionar na conclusão desse perfil. No entanto, ainda como analisa Lúcia Miguel Pereira, havia um universo exterior e um interior em Machado. E, se por fora “Seu Machado”, como se refere ela, ia bem na vida burguesa, por dentro corria lava incandescente. “Lá dentro, sob a ‘máscara imóvel’, havia a revolta, as interrogações sem resposta, a dúvida. E havia também a maldição de uma clarividência que o fazia sem piedade no julgamento dos homens, da terrível lucidez do romancista. Fermentara toda uma vida interior, ardente e rica”, analisa a autora.
Atual na técnica e no tema
É desse interior que brotam os personagens por meio dos quais Machado de Assis exercitou esse “julgamento dos homens”. O cadáver biógrafo de si mesmo, Brás Cubas, de Memórias Póstumas (1879), o médico louco Simão Bacamarte de O Alienista (1881), o filósofo Quincas Borba (1891) e o atormentado Bentinho de Dom Casmurro (1899) – só para citar alguns dos mais conhecidos. E foi esse fervilhar interior que o tornou um dos mais cultuados escritores brasileiros, considerado por estudiosos de sua obra – e não são poucos, a Academia Brasileira de Letras (ABL), por exemplo, lista 27 obras sobre o autor – plenamente moderno em suas análises. “Ele é muito atual tanto na técnica literária como na escolha temática”, explica Daniel Piza à reportagem. “Na técnica, antecipou procedimentos modernistas, com seu gosto por metalinguagem, fragmentos e discurso indireto. O Alienista, por exemplo, poderia ser uma história de Kafka [Franz Kafka, 1883-1924, escritor tcheco de língua alemã]; e O Espelho, de Borges [Jorge Luis Borges, 1889-1986, escritor argentino]. Nos temas nacionais, por exemplo, viu na transição do Brasil entre monarquia e república a questão da troca de grupos de poder sem mudança estrutural da sociedade. E também alguns traços como ‘o brasileiro tem a bossa da ilegalidade’. Os temas universais também estão ali, como a confusão entre afetos e interesses e a mistura de sentimentos como entre inveja e ciúmes.”
“Todos os Machado de Assis são preferidos, até mesmo o Machado da obra dita menor, a ainda romântica, porque se pode sempre incluí-la numa work in progress machadiana. Isso dito, há entre as obras-primas uma que se torna particularmente preciosa por ocupar certo lugar à margem no seio da fortuna crítica de Machado – sendo eclipsada pela abundância de apontamentos críticos em torno de Dom Casmurro (a traição de Capitu, o Otelo brasileiro, a arrogância de classe de Bentinho) e das Memórias Póstumas de Brás Cubas (a virada de uma ficção de tipo alencariano para o escândalo do morto que fala): trata-se do romance mais deliciosamente cômico de Machado: Quincas Borba. Muito se tem posto a ironia de Machado a serviço da representação das contradições da sociedade brasileira. É nesse sentido que vai a teoria do narrador volúvel, aquele que borboleteia entre grandes pensamentos para melhor acusar o postiço de nossa cultura. Mas pouquíssima atenção se tem dado à loucura em si, que, no entanto, lá está, nessa estranhíssima ficção, de resto contemporânea da introdução da psicanálise, onde se narra o enlouquecimento de um solteirão mineiro de Barbacena que vem para o Rio de Janeiro, se apaixona pela mulher do melhor amigo – com tudo que isso comporta de homossexualidade latente – e passa a se tomar por Napoleão. No momento exato em que Rubião enlouquece, Machado nos diz que ele traz nos lábios ‘um riso azul-claro’. Jamais vi menção à violência dessa formulação, que mais parece falar da impenetrabilidade da alma humana que da Belle Époque brasileira”.
Leda Tenório da Motta, ensaísta e professora do Programa de Estudos Pós-graduados em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
“Tenho especial estima por O Alienista, no qual uma revolução popular é tratada com escárnio e reduzida a frangalhos. O modelo ali transformado em farsa, em ‘ópera bufa’, é evidentemente a Revolução Francesa, representada como ideal de tolos, insanos e trapaceiros. Alguns interessantes problemas literários são levantados por esse texto. 1º – Um grande escritor não é necessariamente progressista: ele pode ser, e o é com freqüência, conservador, para desgosto de seus leitores de hoje em dia, que ficam procurando consonância projetiva de suas próprias convicções político-ideológicas. 2º – Um grande escritor pode renegar inteiramente suas origens. Não é por ser mulato e pobre que ele se torna paladino dos mulatos pobres, ou sequer os acha dignos de atenção literária. 3º – Um grande escritor que é crítico mordaz da sociedade de seu tempo nem por isso simpatiza com os oprimidos, nem tem qualquer horizonte utópico. Muito pelo contrário. Basta ler O Alienista, uma obra-prima impecável, que nos seduz apesar de não concordarmos com o que ali se expressa.”
Walnice Nogueira Galvão, escritora, ensaísta e professora titular de teoria literária e literatura comparada da Universidade de São Paulo (USP)
O primeiro que eu li de Machado de Assis terá sido um dos primeiros livros dele, Ressurreição (1872). Mas eu era muito novo, tinha 15 anos, não tive condições de fazer a apreciação do livro, não me empolguei. Eu não consegui projetar a obra no campo da literatura brasileira. Na minha visão daquela época, o livro que mais me fascinou foi O Ateneu (1888), do Raul Pompéia (1863-1895), porque era um brado contra o confinamento dos colégios internos – e eu estava em um internato naquela época. Para mim, o importante é conhecer toda a obra do Machado, porque é uma obra variada. Mas, se tivesse de escolher, eu poderia falar da obra sobre a qual eu mais escrevi: Dom Casmurro. A obra de Machado significa o ponto extremo ao qual chegou a literatura brasileira dadas as condições de sua formação e o ambiente no qual ela foi escrita. Dados esses dois aspectos, ela, digamos, constitui o extremo da capacidade intelectual brasileira em determinado momento. Daí ter-se transformado paulatinamente no escritor-símbolo do Brasil. E nesse escritor-símbolo estão reunidos não somente os aspectos literários, que são muito relevantes – aliás, absolutos –, mas também a idéia de ascensão social, porque ele é, também, o símbolo da ascensão do miscigenado na nossa cultura.”
Fábio Lucas, crítico e escritor
Bibliografia selecionada
1872 – Ressurreição (romance)
1873 – Histórias da Meia-noite (contos)
1874 – A Mão e a Luva (romance)
1876 – Helena (romance)
1878 – Iaiá Garcia (romance)
1881 – Memórias Póstumas de Brás Cubas
1889 – Dom Casmurro (romance)
1891 – Quincas Borba (romance)
1896 – Várias Histórias (contos)
1901 – Poesias Completas
1904 – Esaú e Jacó (romance)
1908 – Memorial de Aires (romance)
Saiba mais:
machadodeassis.net
www.machadodeassis.org.br
Machado de Assis – Um Gênio Brasileiro (Imprensa Oficial, 2005) de Daniel Piza
Machado de Assis (de 1917 e com uma edição de 2007 pela Imprensa Oficial) de Alfredo Pujol
Machado de Assis (de 1936 e com uma edição de 1988 pela Itatiaia Editora) de Lúcia Miguel Pereira
Coleção Para Conhecer: Machado de Assis (Jorge Zahar Editor, 2005) de Keila Grinberg, Lucia Grinberg e Anita Correia Lima de Almeida
Esquema de Machado de Assis, texto de Antonio Candido de 1968 e publicado no livro Vários Escritos (de 1970 e com uma edição de 2004 pela Editora Duas Cidades)

“A vida era festiva, intensa e variada (...). Crescia o luxo, abundava o dinheiro, nasciam melhoramentos. Tudo bailes e teatros. (...).” Assim descreve Machado de Assis o Rio de Janeiro do final do século 19 em Dom Casmurro, de 1899. Mas, mesmo antes disso, com o escritor ainda adolescente, era grande a movimentação da capital do Império – das novidades no processo de urbanização ao fim do tráfico negreiro, decretado em 1850, quando o escritor tinha 11 anos. Pouco depois, aos 15 anos, Machado presenciou a inauguração da iluminação a gás, na Rua do Ouvidor, a mesma que tanto apareceria em seus futuros romances e uma das mais badaladas da cidade. É verdade que “apesar das pompas”, como escreve o jornalista Daniel Piza em Machado de Assis – Um Gênio Brasileiro (Imprensa Oficial, 2005), a novidade “não funcionou a contento”, mas, de qualquer forma, a modernidade emitia seus primeiros sinais. “A iluminação, ainda que pálida, também seria a primeira de uma série de inovações técnicas que Machado, sempre sem perder o senso irônico, veria ao longo de sua vida”, continua Piza em seu livro. “Além do desenvolvimento da fotografia, que, em 1832, tivera como um dos inventores Hercule Florence, o francês radicado no Brasil, duas das inovações dos anos de 1850, o telégrafo (1852) e o trem de ferro (1858), são os maiores símbolos desse progresso.” Ainda na primeira década do século 19, bancos e indústrias chegam ao Brasil, trazendo melhorias no sistema viário e promovendo a navegação. “O Rio é o ponto sensível dessa veloz transformação”, afirma o jornalista.
No entanto, as mais significativas mudanças contemporâneas a Machado talvez sejam a abolição da escravatura, em 1888, e a proclamação da República, um ano depois. A primeira foi comemorada por ele junto à multidão que invadiu as ruas – e lembrada em uma crônica sua de 14 de maio de 1893 com entusiasmo: “Sim, também eu saí à rua (...)”, escreveu. “Todos respiravam felicidade, tudo era delírio. Verdadeiramente, foi o único dia de delírio público que me lembra de ter visto.” A segunda, no entanto, foi encarada com o senso crítico que lhe era característico. “Para Machado, os monarquistas que apóiam a abolição o fazem pela necessidade de lucrar”, revela Daniel Piza se referindo à indenização a ser recebida do Império quando a lei fosse promulgada. “E os republicanos, por vontade de assumir o poder.” Machado conhecia os mecanismos das oligarquias e da aristocracia brasileira. Talvez por isso tenha sido tão cético e sarcástico ao descrevê-las.

O escritor carioca Machado de Assis (1839-1908) terá sua obra comentada em diversas atividades do Sesc. A unidade Carmo realizará uma leitura dramática do conto O Empréstimo, no dia 13 de maio, com direção de Eugênia Thereza de Andrade. A data é um “aperitivo” para um projeto maior que ocupará o Carmo a partir de 16 de junho. Espetáculos teatrais, performances, palestras e uma ambientação temática – inspirada em contos de Machado – vão compor A Pena da Galhofa: Contos de Machado de Assis, cujo objetivo é trazer ao público o universo dos contos machadianos. A forma escolhida será retratá-los aos moldes da era da internet. O SescTV também participa desse imenso sarau dedicado ao criador de Dom Casmurro. O projeto Saberes, série de palestras que acontecem mensalmente no Sesc Vila Mariana – e são gravadas pelo SescTV, – teve Machado como tema em sua edição de março. O encontro será transmitido pelo SescTV no programa Machado de Assis – Reflexos da Obra no Tempo, que irá ao ar no dia 25/5, às 20h30. A ocasião reuniu o doutor em teoria e história literária Hélio de Seixas Guimarães, a doutora em comunicação e semiótica Maria Aparecida Junqueira e a historiadora Daniela Magalhães da Silveira. A mediação foi do jornalista Florestan Fernandes Jr. Por fim, a mesma unidade Vila Mariana irá realizar o workshop gratuito Cem Anos sem Machado, no dia 6/5, dentro do projeto Arena Cultural. A unidade Piracicaba prepara, para julho, uma semana de atividades ligadas ao universo do escritor. A programação de Machado de Assis – 100 Anos Depois, evento realizado em parceria com a Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep) e com o apoio da Delegacia de Ensino de Piracicaba, trará exibição de filmes, bate-papos, oficinas de fotografia e declamação de poemas. O Sesc Consolação já iniciou o processo de elaboração de um projeto para também abordar o universo machadiano. Ainda sem nome definido, o evento será composto de, entre outras atividades, de palestras, filmes e shows musicais inspirados no escritor e em sua época.

De acordo com a análise do jornalista e crítico literário Alfredo Pujol (1865-1930), feita em uma das sete conferências (entre 1915 e 1917) que deu na Sociedade de Cultura Artística de São Paulo – reunidas no volume Machado de Assis (de 1917 e com uma edição de 2007 pela Imprensa Oficial), o livro Memórias Póstumas de Brás Cubas, lançado em 1879, dá início à segunda fase da “evolução literária de Machado de Assis”, saído do romantismo e ideais utópicos de seus primeiros trabalhos para o realismo expresso a partir de então. São do período, de 1879 a 1908 – ano de sua morte –, os romances mais conhecidos do autor: depois de Memórias..., marco do início do realismo no Brasil, Quincas Borba, de 1897, Dom Casmurro, de 1899, Esaú e Jacó, de 1904, e Memorial de Aires, de 1908 (veja a bibliografia selecionada nesta página). Pujol conta que Mário de Alencar (1872-1925), filho do romancista José de Alencar, escreveu que “dois fatores novos atuavam-lhe no espírito: o aparecimento, ou agravação, do mal físico incurável [a epilepsia] e o êxito do naturalismo de Zola [Émile Zola, 1840-1902, escritor francês]”. No naturalismo, o homem era encarado como produto biológico, passando a agir de acordo com seus instintos, o que “repugnava a sensibilidade do autor de Quincas Borba”, como revela Pujol. O jornalista Daniel Piza acrescenta ainda mais um fator à mudança: a derrocada da monarquia. “A decadência de sua saúde e a decadência do Império acentuariam seu humor original e amargo”, escreve Daniel Piza em Machado de Assis – Um Gênio Brasileiro (Imprensa Oficial, 2005). “Da crise física e intelectual, da observação de que seu tempo ia passando, Machado voltou transformado (...) em fins de março de 1879.”
Memórias Póstumas de Brás Cubas traz um Machado que, no lugar de dar boas-vindas ao leitor no prefácio e de fornecer informações extras sobre os personagens em graciosos momentos de tête-à-tête em meio à história, começa, dando voz a Brás Cubas, dedicando o livro “ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver”. Trata-se de um “defunto autor” e não de um “autor defunto”. Quincas Borba também não poupa o homem, conta a história de um pobre-diabo, Rubião, dono de uma herança nefasta do personagem-título, morto logo no começo da história, que se deixa enlouquecer num misto de vaidade e remorso. Já distante da atividade como cronista, e depois de uma participação fundamental na criação da Academia Brasileira de Letras (ABL), em 1897 – instituição que presidiu até morrer –, Machado publica Dom Casmurro, sobre a corrosiva dúvida de Bentinho a respeito da fidelidade de Capitu. O próximo é Esaú e Jacó, a história dos irmãos rivais e que divergem em tudo – menos na escolha do mesmo objeto de desejo, a jovem Flora. E no último ano de vida deixaria pronto o diário Memorial de Aires, de 1908. “A sua técnica consiste em estabelecer um contraste entre a normalidade social dos fatos e a sua anormalidade essencial”, escreveu Antonio Candido no ensaio Esquema de Machado de Assis, de 1968. “Ou em sugerir, sob aparência do contrário, que o ato excepcional é normal, e anormal seria o ato corriqueiro.”
