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Fotografia
”Eu prefiro dizer que meu compromisso é com o factual”, afirmou a fotógrafa Vânia Toledo na conversa que teve com a Revista E em seu apartamento em Higienópolis. A frase veio em resposta à pergunta sobre como ela lidava com o realismo em suas fotos – elemento que marca seu trabalho. “O realismo pode ser fantástico, modificado”, continuou. A sala de sua casa é típica de um fotógrafo. Sala ampla e muitos – muitos – refletores, tripés e demais aparatos geralmente encontrados em um estúdio de fotografia. Formada em ciências sociais pela Universidade de São Paulo (USP), em 1973, Vânia decidiu abandonar o emprego no Departamento de Educação e Pesquisas Especiais da Editora Abril e começar de novo. Dessa vez, com uma câmera na mão. “Talvez eu tenha feito ciência social para ser a fotógrafa que sou”, comenta. “Talvez eu ainda tenha perguntas a serem respondidas.” Autodidata, Vânia começou a carreira em 1978 e, a julgar por sua trajetória, havia uma urgência em exercer a nova profissão: em 1980 lançou um livro, Homens (Editora de Cultura) e, no ano seguinte, abriu o primeiro estúdio. “Acredito muito que você pode ser feliz, pode trabalhar com aquilo que você gosta. Acredito muito no fato de que você não tem que sofrer para sobreviver.” A seguir, trechos da conversa durante a qual a fotógrafa falou sobre os bastidores de seus ensaios, analisou o mercado brasileiro e revelou qual é seu Palco Paulistano, título da exposição de imagens suas realizada no Sesc Santo André, em março – depois de uma temporada na unidade Pinheiros no ano passado.
Meu Palco Paulistano foi meu aprendizado de fotografia. Tem fotos que são da época em que eu era amadora. Como sempre fui apaixonada por teatro, ia ver peças e levava sempre a máquina. Fazia três, quatro chapas de cada peça, depois, quando terminava o filme, eu revelava. Mas era uma forma de aprender a fotografar e de também registrar o que eu via. Há duas ou três fotos do Hair [musical de 1967]. Eu não era fotógrafa ainda, era uma amadora com uma máquina na bolsa e que gostava de fotografar, porque assim eu aprendia com luz artificial. Como sou autodidata, já sabia fotografar com luz natural. Naquela época não tinha faculdade de fotografia, não tinha estúdios que você pudesse freqüentar e aprender luz artificial. O meu aprendizado foi observar a luz de teatro, como ela incidia nos atores, “puxando” o filme [“puxar” o filme é uma técnica na qual o fotógrafo “força” uma mudança de sensibilidade do filme utilizado], fazendo com velocidade baixa e estudando tudo aquilo depois do filme revelado para ver qual era o melhor resultado. Digo que o Palco Paulistano é meio que a minha faculdade de fotografia. É o resultado da minha faculdade de fotografia autodidata. Não tive pudor em expor fotos que eu achasse que não estivessem tecnicamente perfeitas, contanto que representassem ali o meu olhar de aprendiz ao longo dessas últimas quatro décadas.
Mercado
A quantidade de fotógrafos que eu conheço que têm uma câmera ou um celular na mão é uma coisa assustadora. A pessoa não tem o olho do fotógrafo, não tem um trabalho, não tem o cuidado do tratamento com o ser humano. Não tem uma série de qualidades e disciplinas que deveriam ser seguidas para que alguém possa se denominar fotógrafo. Essa pessoa pode “estar fotógrafo”, estar chegando lá, está querendo ser. Porque você só é [fotógrafo] quando tem um trabalho publicado, conhecido, quando você vive daquele trabalho. Talvez eu tenha sido a primeira operária da fotografia aqui no Brasil que viveu do próprio trabalho o tempo todo. O volume de coisas que eu aceitava fazer era imenso. Fazia capa de disco, capa de livro, foto de teatro, tinha que sobreviver daquilo, sempre me provi, desde os meus 14 anos de idade, eu não era uma pessoa que aceitasse ser sustentada pelo pai, pelo marido ou quem quer que fosse. Sempre fui dona do meu próprio nariz. Por isso, digo que não posso, por exemplo, aceitar que alguém me ofereça 100 reais por uma foto. Eu me nego. Digo: “Eu te dou essa foto”. Tem alguém que aceita 100 reais? Então chame essa pessoa. Eu não posso. Tenho que pagar meu aluguel, meu equipamento, meu sustento e inclusive manter o meu bom humor e a minha qualidade de trabalho depois de 27 anos de carreira. Acho que há, no Brasil, um desrespeito muito grande pelo mercado do trabalho.
Homens nus
Não tento ter um olhar feminino [quando fotografa]. Se existe, ele é inerente ao meu olhar porque sou mulher. Mas procuro ter o olhar de um indivíduo. Por exemplo, quando fotografei os homens nus [para o livro Homens], o ensaio que me lançou, não achei que aquilo era um olhar feminino. Aquilo era uma mulher, uma câmera e um homem nu. Não quis me privilegiar pelo fato de ser mulher. Talvez ali meu trabalho tenha sido o único com um “olhar feminino”, porque eu nunca tinha visto [fotos de] homens nus. As mulheres da minha geração também não. As mulheres da geração anterior também não. As da futura geração também não. A Zoom, uma revista francesa de fotografia, disse em uma reportagem que ela fez comigo há uns anos que fui a primeira fotógrafa do mundo a ter fotografado homens nus sem um apelo erótico, sem um apelo, digamos, gay, de passar aquela visão sexy gay. Nenhum problema, claro, mas falo daquela coisa de passar óleo no corpo, da musculatura, do erotismo. Tive talvez um olhar feminino porque era irreversível. A minha visão sobre eles era a de uma mulher tentando ver o irmão, tentando ver o pai, tentando ver o amigo, tentando ver o filho. Eu não tinha um olhar erótico, tinha uma visão quase romântica da nudez.
Fantasias femininas
O realismo pode ser fantástico, pode ser modificado, mas de novo mais próximo do que a gente vê, sente e acha. Por isso, o livro que eu tenho das mulheres se chama Personagens Femininos. Tem a ver com aquelas mulheres representando papéis que elas nunca desenvolveram na realidade, na verdade de suas vidas, no seu cotidiano, tem a ver com inventar uma loucura. Mas aí dou a possibilidade de criar, de ter esse delírio. Acho que às vezes, uma atriz quando é dirigida, o diretor já vem com um personagem pronto, com uma idéia pronta. É muito difícil ele perguntar para uma atriz: “Como você vê esse personagem? Como você vê essa pessoa que você vai representar?” Talvez hoje em um novo processo de representação ele até pergunte. Mas geralmente a coisa já vem com a linha certa. “Você vai fazer assim, você vai fazer assado.” Uma coisa de direção. Quando eu perguntei para as atrizes [nas sessões de foto para Personagens Femininos] qual o personagem feminino que elas gostariam de fazer e que nenhum diretor nunca dirigiu em cinema ou em teatro, ou seja, um sonho delas, foi dar mel para a abelha comer. Todas ficaram enlouquecidas, obviamente. Acho que uma mulher que sobe no palco pode tudo. Uma grande atriz é muito rica de personagens e, conforme ela vai trabalhando em teatro, ela faz um somatório de personagens dentro de sua alma, da qual é impossível fugir. Isso é enriquecedor.