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Ficção Inédita



Linha Reta
por Menalton Braff

Não era bem assim o sonho que durante anos vinha-lhe aliviando o lado azedo, mas não ver a geometria das grades roçando seu nariz já faz o sangue correr melhor por dentro do corpo. Ah, e este cheiro de campo, das ervas que seus pés vão esmigalhando, em lugar do fedor velho de muitos mijos. Isto sim, isto é uma decência.

Descansar a vista na distância, na linha da imaginação, levantar-se e pegar um rumo para se botar a caminho, não era isso que, principalmente à noite, ocupava seus olhos? O sol na pele, temperado pela brisa. Já não se lembrava mais como era sentir o sol na pele temperado pela brisa. E é uma coisa tão simples como viver.

Nico deita-se na relva com o corpo inteiro em cima das costas, braços em cruz, e fica olhando as nuvens. Ele bem rei de todo o espaço, abrangendo. Então volta a ser um menino que deita na grama para olhar as nuvens. Às vezes conseguia cavalgar alguma delas, de andadura mais suave. Era assim que viajava sua liberdade na construção de si mesmo.

Foram muitas horas de caminhada e tremem-lhe as pernas de músculos flácidos. Por isso, estira-se debaixo do sol. Ele tem uma necessidade muito velha de esfregar-se no sol, de cozer um pouco todos os instantes do corpo.

Contra uma das nuvens brancas que pairam como se estivessem paradas, ele observa o vôo circular de alguns corvos. Talvez o exercício necessário, exercício de manutenção, sem comida nenhuma por objeto. A tal distância, não são atingidos pelo cheiro de um homem deitado na relva. Nico sorri ao pensar que está há dois dias sem banho, com todos os suores que foram secando um sobre o outro, impregnados em sua pele. Quando sorri, seus lábios repuxam de leve, mas sem maldade. Os corvos se distanciam levando para outros campos sua coreografia simples e silenciosa: aquela necessidade de voar em círculos.

Um pouco abaixo, à esquerda, surge um gavião que se anuncia com um guincho agudo e potente, um guincho que rola pela encosta e é provável que alcance os banhados lá de baixo, da planície. Então ele pára, ponto claro e imóvel, fixo no azul do céu. Suas asas tremem nervosas, tensas. Súbito, ele as fecha e se precipita vertiginoso, some no verde do campo. Fascinado, Nico tenta descobrir o que faz o gavião na terra. O que sabe, aquilo de que tem notícia, não é suficiente para apaziguá-lo. É preciso saber se a presa o pressentiu, se teve tempo de abrigar-se em qualquer toca inacessível às garras do predador. Ergue a cabeça, senta-se e procura descobrir o que acontece neste exato momento. Com os músculos do rosto tensos, ele imagina uma pequena tragédia naquele ermo tão prosaico. Não consegue ver nada por alguns instantes, e por isso sofre a incerteza da vítima, até que surge novamente no céu, batendo lentamente as asas, o caçador; sem, contudo, revelar o resultado de sua caçada. Não adianta mais pensar no assunto, e Nico deita-se novamente, à espera de algum sonho bom. 

De olhos fechados, ele ouve o chiar da aragem nas folhas da relva ao redor de sua cabeça, vizinha de seus sentidos. Ouve seu nome no grito agudo da mãe. Distante. Naquele tempo ainda era Alexandre e seus pequenos sonhos não ultrapassavam a extensão de seu braço curto. Ouve outra vez seu nome, agora um pouco mais perto. Não responde, não move um único músculo, pois sabe que a mãe há muito não existe mais. Era um tempo de esperança latejante e sem contornos, em que a vida se resumia ao presente: o grito da mãe, as peladas com os amigos, o sol grudado no céu, o corpo descansando em cima da grama onde a bola tinha corrido ainda há pouco. A mãe não existe mais e os amigos caíram no mundo. Restavam-lhe o sol e o corpo descansando em cima da relva.

Passa uma abelha zumbindo rente a seu ouvido e Nico abre os olhos. Sua testa enrugada carrega o desconforto de ouvir um barulho de motor que sobe do baixio. Sentado, ele perscruta o céu, olha em volta, concentra-se todo nos olhos. O ruído esmorece e Nico volta a deitar-se, convencido de que não passara de um susto produzido pela memória.

Apesar de não conhecer a região, Nico planeja prosseguir na fuga à noite. Caminhando sempre em linha reta, espera encontrar alguma estrada, um caminho qualquer que o leve dali. Não consegue calcular os quilômetros percorridos, mas sabe que não foram poucos. Não eram ainda seis horas da manhã quando saíra do lado de fora dos muros. Desde então vinha caminhando, correndo, escondendo-se, procurando seguir sempre em linha reta.

O sol, contra o qual traçara seu rumo, havia percorrido mais da metade de seu caminho e começava a descer em busca do horizonte.

O ruído de motor retorna, agora mais nítido, e Nico descobre o aparelho um pouco acima do banhado, por onde passara ainda antes do meio-dia. Percebe, assustado, que o helicóptero vem na sua direção. Se ficar onde está, exposto ao céu, vai ser descoberto e Nico arrasta-se ágil bem uns dez metros, escondendo-se entre arbustos mais altos, e ali fica imóvel, com sua cara de pedra.

Em pouco tempo o helicóptero escurece o céu inteiro como uma tempestade, fazendo círculos nervosos, aparentemente procurando onde pousar. Um pouco mais baixo, que viesse, ia ser possível descobrir a cor dos olhos de seus tripulantes. Nico aproveita o distanciamento do aparelho com seu rumor em manobra de pouso e corre. Corre tudo que sabem suas pernas depois do descanso. O terror é grande e o terreno irregular, por isso ele não pode olhar para trás, então corre ainda mais, movido pela impressão de que os caçadores já tropeçam em seus calcanhares. 

Nos últimos quarenta metros que o separam do bosque à frente, ainda ouve um grito que rola encosta a baixo e que talvez vá morrer bem longe, lá pelo pantanal. Vale a pena tanto esforço para sentir o sabor da liberdade sem saber por quanto tempo? Chega a sentir vontade de entregar-se, mas é uma idéia que não medra porque atinge finalmente a orla do mato, onde penetra por vinte metros e pára para descansar. Agora está escondido, mas também não vê o que pode estar acontecendo do outro lado das árvores. Por isso, não perde muito tempo e, mesmo ofegante, imagina uma linha reta, com a intenção de percorrê-la.

Transpõe uma sanga profunda e sem vestígio nenhum de água, e, ao transpô-la, o barulho das pisadas sobre as folhas mortas aumenta a secura de sua boca. Depois de escalar o barranco, agarrando-se em cipós e plantas rasteiras, Nico pára tentando ouvir alguma coisa. O pio de um pássaro, o ranger de dois galhos que se roçam, algum estalo provocado pelo vento: nada mais. O silêncio vem de longe e assusta. O silêncio é o que ainda não está decifrado.  

Nunca mais, Nico repete baixinho, e o brilho de seus olhos ilumina uma alegria furiosa. Então ele olha para os lados, perscruta o mato fechado, de aparência neutra. Qual o rumo a seguir? Não há escolha possível, pois não sabe o que existe para além dos troncos, galhos e cipós. Assim, decide manter a rota inicial, uma reta só, para não ficar andando em círculos. Quanto tempo agüenta sem água e sem comida? Evita o assunto, pois não tem resposta. Atravessa com bastante dificuldade um carrascal de arbustos e cipós que se sustentam entrelaçados num abraço áspero e se misturam tornando o caminho quase impossível. Os braços estão arranhados e sente o rosto arder. Coisa pouca, muito menor do que outras dores que já conhece. 

Sai finalmente em uma clareira e examina o céu com suas nuvens brancas: o Sol deve andar a dois, três palmos do horizonte. Escolhe uma pedra e senta para descansar. O estrago de sua pele não é muito grande, dois, três riscos de espinho, pouco mais. Esfrega os braços, porque no meio do mato o ar esfria de tanto percorrer escuridão. Fecha os olhos e tenta não estar mais ali. Assim permanece por muito tempo. Sente a aproximação de uma cãibra e põe-se de pé. Acaba de perder quanto tinha. Onde foi mesmo aquele jogo de baralho? Talvez tenham sacado ao mesmo tempo. Quem pode saber o que acontece como uma vertigem? Nico ergue a cabeça, o pescoço esticado e uma ruga na testa, marca da angústia por não conseguir elevar-se acima de sua altura. Toda aquela inundação de árvores, com seus troncos parados e com a estatura de suas copas, os renques, fileiras, a muralha porosa, muralha em que pode penetrar, mas da qual parece que jamais vai sair, aquele oceano de árvores é que o sufoca. Abre a camisa no peito e inspira com barulho o ar escuro e frio do mato.

Não agüenta mais ficar ali. Repete com os lábios que não pode mais ficar ali. Começa novamente sua caminhada, no rumo que havia escolhido, mas que já nem sabe se é o mesmo. Anda apressado, desviando-se de galhos e troncos, e repete que não pode mais ficar ali, porque imerso naquilo sufoca, porque não consegue ver o que pode estar acontecendo bem a seu lado. A respiração torna-se ofegante, mas Nico não pára, não descansa, o medo é um sentimento que se alterna com a sensação de que o ar, todo o ar que se agita por baixo das copas, será insuficiente para encher-lhe os pulmões.

Depois de uma escalada difícil morro acima, as árvores finalmente começam a rarear, o céu reaparece com algumas nuvens manchadas de sangue, e Nico se vê na orla do matagal.

Inspira com violência o ar fresco da sombra, ergue o queixo para ver melhor o que tem à sua frente. Sentado em um tronco velho que se esfarela, ele contempla o panorama que se estende por muitos quilômetros. O lugar em que está é muito alto e Nico pode observar a várzea que um sol frio ainda ilumina em silêncio. É o espaço, a liberdade, e ele repete que nunca mais. Poucos passos à sua frente, o despenhadeiro desce vertical. É preciso dar uma volta muito longa para chegar à várzea.

Merda, ele impreca contra a situação, e levanta-se para procurar alguma saída pelos flancos daquele paredão de rocha. Mergulhar novamente no mato e morrer sufocado, não, isso não vai fazer.

Quando se prepara para continuar a caminhada, descobre que um de seus caçadores aproxima-se rápido pelo lado esquerdo. Não há por ali uma pedra, uma árvore, um buraco qualquer onde possa esconder-se. Do mato, às costas, vem o alarido de muitos homens contentes com o resultado da caçada. Ele sabe, agora, que está cercado, e a liberdade só tem uma direção. Fecha então os olhos e vira paisagem.

Menalton Braff é autor, entre outros livros, de Antes da meia-noite (Ática, 2008)