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Meio ambiente: como mudar o futuro?
Dificuldades para salvar o planeta
JACQUES MARCOVITCH
Jacques Marcovitch
Foto: Nicola Labate
O professor Jacques Marcovitch, ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP), esteve presente no dia 14 de junho de 2007 no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, Sesc e Senac, onde proferiu uma palestra, reproduzida a seguir, sobre negociações internacionais na área ambiental
Minha exposição tem por guia o conteúdo do livro Para Mudar o Futuro – Mudanças Climáticas, Políticas Públicas e Estratégias Empresariais, publicado pela Edusp e pela Editora Saraiva. Esta apresentação ocorre logo após as reuniões do G8 e do G8+5 realizadas na semana passada em Heiligendamm, Alemanha. Os dois eventos abordaram o tema das mudanças do clima e as ações decorrentes que foram concertadas em escala global. Os resultados das discussões ali ocorridas trazem subsídios para nosso debate. O programa de ambos os eventos foi estruturado, ao longo deste semestre, pela Alemanha, país que preside o G8 e a União Européia no período.
Destacarei, em seguida, as evoluções recentes das negociações multilaterais e apresentarei três cenários para o regime pós-2012, isto é, o que pode ocorrer quando os prazos do Protocolo de Kyoto estiverem encerrados.
Cabe, inicialmente, observar que o movimento ambientalista – que em sua origem priorizou a natureza em relação às necessidades humanas –, hoje representado por organizações não-governamentais e partidos verdes, propõe agora um convívio homem-natureza que respeite o ambiente e que assegure a qualidade de vida para as gerações presentes e vindouras.
Em decorrência desse movimento, em países desenvolvidos, como o Reino Unido, as emissões poluidoras estão sendo taxadas ou "precificadas" para induzir ações radicais no processo produtivo em determinados setores. Tais políticas respondem, assim, às mudanças climáticas provocadas por crescentes concentrações de gases de efeito estufa [GEE] na atmosfera. Esse fenômeno criou preocupações para a alta direção das empresas. Enquanto no passado elas se limitavam a tratar de restrições ambientais por meio de seus departamentos jurídicos e de meio ambiente, hoje muitas delas explicitam esses desafios em suas estratégias de longo prazo e programação de investimentos. A presente sessão deste conselho demonstra que a Federação do Comércio do Estado de São Paulo também se preocupa em abrir espaço para o tema em sua agenda institucional.
A idéia do livro Para Mudar o Futuro nasceu de um encontro em Buenos Aires, em dezembro de 2004, com diplomatas brasileiros, entre eles o embaixador Everton Vieira Vargas, e outros colegas de organizações multilaterais, como Lucas Assunção, da Unctad [Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento]. Em conseqüência de seu desenvolvimento tardio, o Brasil não tem, no corte das emissões de GEE, a mesma responsabilidade que os países desenvolvidos, principais causadores da concentração desses poluentes na atmosfera. Essas nações, como se sabe, obrigaram-se a reduzir o volume de emissões de gases de efeito estufa. Apesar disso, o Brasil já vem empreendendo voluntariamente, no âmbito governamental e no setor privado, importantes iniciativas que levam a essa redução.
Três leituras complementares
Focando essas ações voluntárias, a primeira parte do livro trata da leitura científica das mudanças climáticas. Esse estudo começou há mais de 300 anos, quando os cientistas passaram a perceber uma relação entre concentração de gases e mutações do clima, o que os levou a mensurar o fenômeno e apontar seus efeitos. A observação científica abrange horizontes de longo prazo e valores baseados no universalismo. Trata-se de uma percepção de ciclos longos, que abrange bilhões de anos. Haverá sempre dúvidas, por parte dos cientistas, sobre o que é parte inerente da construção do conhecimento. O seu debate centra-se no impacto da ação humana sobre a natureza e, em conseqüência, o que hoje chamamos de aquecimento global.
Inicialmente, foi a redução da camada de ozônio que teve uma atenção maior. A partir da década de 1980, cientistas de vários países se uniram para publicar levantamentos qüinqüenais sobre os gases de efeito estufa, os chamados relatórios do IPCC [Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas]. O último foi divulgado no início deste ano e deve ser publicado na sua versão definitiva até o final dele.
A segunda leitura trata das políticas públicas e envolve os mandatários do Estado. As políticas públicas dependem da ação governamental e, nas democracias, estão sujeitas ao debate associado às eleições periódicas. Diante do volume de suas emissões, os Estados Unidos constituem um caso de interesse. Nos seis primeiros anos de mandato de George W. Bush, o Executivo americano teve uma atitude negativa e arrogante em relação aos princípios norteadores do Protocolo de Kyoto. As eleições parlamentares de novembro de 2006 conferiram um novo perfil partidário ao Legislativo americano. O discurso do Estado da União, feito pelo presidente dos Estados Unidos em 20 de janeiro deste ano, revela uma atitude antagônica a tudo o que ele defendeu nos seis discursos anteriores.
O governo americano, a partir de 2007, torna-se aparentemente mais sensível aos desafios ambientais, a ponto de organizar em poucas semanas uma visita ao Brasil, ocorrida em março último, para discutir a colaboração Brasil-Estados Unidos na área dos biocombustíveis. Foi então anunciada a meta de reduzir em 20% o uso de combustíveis fósseis na frota automotiva americana em um período de dez anos. Na democracia, a lógica do poder leva à busca da conquista e preservação da maioria dos eleitores, respondendo às suas expectativas periodicamente. As decisões sobre políticas públicas envolvem correntes de idéias, grupos de interesses e prioridades de ação influenciadas pelas relações de poder.
A terceira leitura é feita no âmbito das empresas, cujo ciclo não é tão longo como o da ciência, nem tão curto como o do poder. A leitura da empresa tem um horizonte de três a cinco anos, dependendo do setor. O ciclo será mais longo no setor de celulose e papel e mais curto no de serviços. É bem verdade que a empresa geralmente tem um plano estratégico multianual, mas ela está igualmente sujeita ao ritmo dos balanços mensais, trimestrais e anuais, devendo responder às expectativas de seus acionistas. A empresa procura, então, conciliar a rentabilidade no curto prazo com sua perenidade de longo prazo. As oito companhias estudadas em survey na obra Para Mudar o Futuro foram escolhidas porque adotaram uma atitude proativa na redução da emissão de gases de efeito estufa, harmonizando rentabilidade e perenidade.
Uma das empresas escolhidas pertence à indústria de alimentos – derivados de carnes suína, bovina, de frango e de peru –, que está na origem de elevadas emissões de gás metano. A Sadia aperfeiçoou a tecnologia de uso de biodigestores para transformar resíduos sólidos em fonte de energia. Outra empresa, do setor sucroalcooleiro, criou ciclos de produção que lançam mão de tecnologias limpas – da plantação da cana até a queima do bagaço – para geração de energia. A Companhia Santa Elisa produz açúcar e álcool e vende o excedente de energia elétrica gerada para a distribuidora da região, no caso a CPFL. No setor siderúrgico, a Companhia Siderúrgica de Tubarão aperfeiçoou tecnologias para reduzir suas emissões de carbono e simultaneamente racionalizar seu consumo de energia, aumentando a lucratividade.
No setor das energias renováveis, iniciativas recentes levaram ao surgimento do "Selo Social" para os biocombustíveis, revelando a preocupação dos atores econômicos em se articular para antecipar ameaças comerciais vindas do exterior. A exportação do etanol, para a Europa e os Estados Unidos, induz o debate sobre as condições de trabalho e as relações trabalhistas, temas que estão, de forma crescente, na pauta das negociações internacionais.
O problema ambiental se vincula, cada vez mais, às questões econômicas e sociais. Na Europa, uma reportagem televisiva recentemente veiculada sobre o Brasil associou a produção de etanol ao trabalho escravo. Condições de trabalho inaceitáveis no século 21 têm servido de argumento para a fabricação do etanol extraído do milho nos Estados Unidos e da uva na França. Uma certificação brasileira dos biocombustíveis, que leve em conta os aspectos ambientais e sociais, poderá diminuir as resistências dos países desenvolvidos à importação do etanol brasileiro.
Depois das três leituras que acabo de comentar, o livro apresenta, em sua última parte, um encontro de idéias. Foram reunidos dez especialistas brasileiros, do meio acadêmico, da diplomacia e do meio empresarial, para discutir o que seria o regime pós-2012. Como já foi dito, o regime até 2012 determina a países desenvolvidos – que têm a maior responsabilidade na concentração de gases de efeito estufa – o cumprimento de seus compromissos de reduzir suas emissões até aquele ano. Com exceção dos Estados Unidos, os demais países desenvolvidos aderiram ao acordo. Do outro lado, as nações em desenvolvimento estão sendo induzidas também a reduzir a emissão de gases de efeito estufa pela via do incentivo positivo, representado pelo Mecanismo de Desenvolvimento Limpo. Se empresas – como as já citadas – conseguirem comprovar no Conselho Executivo do Mecanismo em Brasília e no Clean Development Mechanism Executive Board, sediado em Bonn, o rigor da metodologia utilizada, poderão receber certificados de redução de emissões e benefícios financeiros decorrentes. Comprados por países desenvolvidos, esses certificados serão utilizados para compensar suas emissões, cumprindo assim as metas de redução assumidas.
Dinâmica das negociações multilaterais
Para compreender a negociação do regime pós-2012, é preciso analisar a evolução recente das negociações multilaterais. Cabe voltar à década de 1980 e lembrar alguns movimentos que ajudam a entender o momento atual. Com o término da Guerra Fria, no final dos anos 1980, materializa-se o conceito, repleto de esperança, dos "dividendos da paz", que resultariam da redução dos gastos militares pelos países desenvolvidos. Já na preparação da Eco-92, realizada no Rio de Janeiro de 3 a 14 de junho de 1992, havia uma maior disposição entre os países em prol do desenvolvimento e do meio ambiente. A reunião contou com a presença de quase todos os presidentes e chefes de Estado, num momento em que o Brasil vivenciava o seu processo de redemocratização.
Como resultado dessa conferência mundial estruturou-se a Agenda 21, que almeja conciliar a preservação do meio ambiente e o desenvolvimento. Na segunda metade dos anos 1990, entretanto, com o avanço da tecnologia de informação, afirmou-se um deslocamento dos investimentos para algumas economias emergentes, tendo por conseqüência a redução da oferta de emprego em economias maduras. Com orçamentos deficitários, dívida pública elevada, inflação galopante e empresas públicas descapitalizadas, os países em desenvolvimento passaram a redefinir seu modelo de crescimento econômico. Foi durante esse período que multinacionais atuantes nos setores de produtos têxteis e calçados, por exemplo, migraram para países onde o custo da mão-de-obra era reduzido. Com o avanço das novas tecnologias, as oportunidades de emprego em setores tradicionais escassearam, tornando ainda mais difícil o ingresso ou a permanência no mercado de trabalho. A esperança despertada pelos dividendos da paz foi rapidamente substituída pela apreensão da falta de ocupação e renda.
No final de 1999 surge a ameaça, que se revelou infundada, do Bug do Milênio. Foi previsto para 31 de dezembro de 1999, na virada da noite do ano-novo, o colapso generalizado dos sistemas informatizados. O verdadeiro Bug do Milênio, no entanto, ocorreu algum tempo depois, com o ataque terrorista às torres do World Trade Center em Nova York, na manhã do dia 11 de setembro de 2001. Ressurge então a ameaça de uma guerra sem bandeiras, na qual as fronteiras deixaram de existir. A força militar e a segurança para combater o terrorismo voltaram ao topo da agenda. Durante cinco anos foi defendida a força como único meio de debelar o terrorismo que ameaça a maioria dos países. Em 2006, diante da vitória do Partido Democrata nas eleições para o Legislativo americano, tem início uma modificação nessa crença. Aguça-se, nos países desenvolvidos, a preocupação de integrar o meio ambiente ao desenvolvimento. Sem diminuir a importância do combate ao terrorismo, a Convenção do Clima e a Convenção da Biodiversidade – ambas resultantes da Rio-92 – retomam sua importância.
Já em 2005, na reunião do G8 realizada em Gleneagles, na Escócia, sob a liderança de Tony Blair, a agenda sublinhou a interdependência de todas as nações diante das ameaças ambientais. Naquela reunião anual do G8, impactada pelos atos terroristas praticados em Londres, as questões do meio ambiente e da pobreza, que se vinham impondo na agenda global, perderam momentaneamente a prioridade alcançada. A declaração final, entretanto, mesmo imprecisa em vários aspectos, manteve em foco as mudanças climáticas e a miséria do continente africano.
A Declaração de Gleneagles reitera alguns pontos importantes, entre eles a consolidação dos mecanismos de mercado para a redução de gases de efeito estufa e a disseminação das tecnologias de energia limpa, a estruturação de programas mobilizadores e a alocação de recursos financeiros através de agências multilaterais, como o Banco Mundial e a Agência Internacional de Energia. Essa declaração também prioriza outros desafios, como a elevação da eficiência energética, a promoção de pesquisa e desenvolvimento para tecnologias limpas, o financiamento da transição para essas tecnologias, a gestão do impacto ambiental e o combate ao comércio ilegal de madeira nativa, tendo em vista a preservação de sumidouros de carbono, como a Amazônia.
Enquanto no tema do terrorismo há o embate de interesses entre uma parte do mundo e outra, na pauta dessas convenções o interesse tem de ser convergente e global. Os holandeses sabem que a elevação do nível do mar nas suas costas decorre de eventos globais. Os observadores dos pólos Sul e Norte têm conhecimento de que a redução das calotas polares é efeito de fenômenos planetários. Os franceses lembram o verão de 2003, quando muitos perderam a vida, em decorrência das altas temperaturas. É nesse quadro que a busca de conciliação do meio ambiente e do desenvolvimento volta com força às mesas de negociação.
Em recente estada em Angola, por exemplo, pude observar o interesse pelo tema. Caberia a pergunta: por que Angola? Por que um país com tantos problemas urgentes está se dedicando à pauta ambiental, tendo ratificado, em março do corrente ano, o Protocolo de Kyoto? O fato é que se trata de uma nação que começou sua reconstrução poucos anos atrás, após 25 anos de guerra civil. Recentemente, Angola tornou-se o segundo maior exportador de petróleo para a China. É um país invadido por construtoras, algumas brasileiras, mas a maioria de origem chinesa.
O Produto Interno Bruto de Angola vem se expandindo 15% ao ano. Nos últimos quatro anos, o PIB angolano cresceu 90%. É verdade que a base é muito baixa, mas estamos falando de um país em reconstrução, com tradições e contrastes maiores do que nós, brasileiros, supomos. O que surpreende no caso de Angola é que hoje os maiores investimentos são feitos pelos chineses. A China negocia com a África da seguinte forma: em troca de fornecimento de recursos naturais de longo prazo – minérios e petróleo – são oferecidos resultados de curto prazo – moradia popular e infra-estrutura – com financiamentos a juros reduzidos. Esse foi o caso da construção do Centro de Convenções de Luanda, onde se realizou uma reunião da Opep [Organização dos Países Exportadores de Petróleo], já que, desde 1º de janeiro de 2007, Angola passou a integrá-la. Outros exemplos são os centros de formação e um projeto de 200 mil casas populares em construção por empreiteiras chinesas. A reforma do aeroporto de Luanda também está sendo feita com recursos financeiros e humanos chineses.
A elevada mão-de-obra chinesa na África opera de dois modos. Em Angola, os operários chineses aceitam modestas condições de trabalho, moram em contêineres e labutam mais de seis dias por semana. Já em outros países africanos, como na Nigéria e no Quênia, os trabalhadores em obras são prisioneiros chineses. Eles são levados de navio, moram em navios-presídios e trabalham em obras de infra-estrutura.
No quadro do Protocolo de Kyoto, Portugal tem percebido Angola como espaço facilitador para alcançar as metas estabelecidas nesse acordo. Como Portugal e Espanha não têm conseguido reduzir suas emissões, precisam adquirir certificados de redução de emissões de países em desenvolvimento. Assim, os angolanos estão sendo pressionados pelos portugueses a viabilizar projetos no Mecanismo de Desenvolvimento Limpo – o que foi um dos motivos que levaram a uma aproximação com o Brasil, para ajudá-los a se estruturar para essas negociações. Essa é uma evidência da crescente interdependência decorrente dos temas ambientais.
Fundamentos teóricos e políticas públicas
Antes de prosseguir na análise dos mecanismos de mercado propostos, cabe lembrar o fundamento econômico que está subjacente ao Protocolo de Kyoto e que tem como origem o pensamento do economista inglês Ronald H. Coase, Prêmio Nobel de Economia em 1991. Em seu artigo "The Problem of Social Cost" ["Journal of Law & Economics", outubro de 1960, páginas 1-44], Coase formula os fundamentos da teoria dos custos de transação, com aplicação à economia ambiental. Essa teoria se debruça sobre o estudo do uso de propriedade comum e fundamenta a política ambiental de vários países. O Reino Unido, por exemplo, tem desenvolvido mecanismos de mercado para a economia ambiental, como o sistema cap and trade, com o objetivo de mitigar as emissões de gases de efeito estufa. São esses mecanismos que deram origem ao Regime Comunitário de Comércio de Direitos de Emissão, aplicado na União Européia aos gases de efeito estufa, especialmente o dióxido de carbono. Esse regime comunitário, que entrou em vigor em janeiro de 2005, foi delineado para maximizar o valor dos recursos naturais de uso comum, como é o caso da atmosfera. Trata-se de um exemplo de incorporação pelo capitalismo das questões ambientais em seu modelo de formação de preços e de custo de capital.
Precificar as ameaças à natureza é estabelecer um limite para cada fonte emissora, o que é chamado de cap, e criar, então, um instrumento de trade, de comércio. Foi o que a União Européia implantou. Foram fixadas metas de redução para 11 indústrias poluidoras da União Européia, entre elas os setores de vidro, cimento, siderúrgico e de termoeletricidade. Os países fazem então seu balanço e cada uma das empresas desses setores elabora seu inventário. Ela analisa a própria evolução histórica e os países determinam um cap, isto é, o máximo de GEE que cada empresa poderia emitir até 2008 e depois até 2012. Determinado esse cap, a empresa busca elevar seu desempenho. Se ela emitir menos que o cap determinado, a diferença poderá ser negociada com outra empresa que emite mais do que a cota que lhe foi alocada.
Para algumas empresas pode ser mais rentável, por enquanto, emitir mais e então comprar certificados de emissões; para outras, mais empreendedoras, investir em tecnologias limpas, reduzir emissões e alcançar benefícios vendendo seus direitos de emitir. Em períodos de temperaturas extremas que pressionam a demanda por energia para aquecer ou para refrigerar, as termoelétricas ultrapassaram seus limites de emissões e compraram o volume necessário de certificados de redução de emissões que precisavam. O recém-implantado mercado de certificados de emissões é caracterizado por uma grande volatilidade. No momento, dois preços são praticados: um europeu, que tem por base o European Emissions Trading Scheme, e um americano, que decorre de uma iniciativa privada, baseada na Bolsa de Chicago.
Além dos mercados de carbono, em outubro de 2006 foi publicado o "Stern Review". Nicholas Stern, ex-economista-chefe do Banco Mundial, a convite do então ministro da Fazenda do Reino Unido, Gordon Brown, preparou uma releitura do conhecimento disponível sobre os impactos econômicos das mudanças climáticas. O relatório do IPCC, que trata da dimensão científica, já fora amplamente divulgado. Essa releitura de Stern inclui, além dos impactos econômicos, os custos da inação e os investimentos necessários para mitigar as emissões e estabilizar a concentração dos gases de efeito estufa na atmosfera. O "Stern Review" é um relatório denso, de 700 páginas. Segundo ele, com uma concentração de 430 partículas por milhão, a inação levaria a cada ano a um aumento. Em poucas décadas, com 550 a 750 partículas por milhão, a concentração na atmosfera provocaria uma elevação expressiva da temperatura em decorrência do efeito estufa.
A conclusão principal do "Stern Review" foi que os benefícios de uma ação rigorosa e antecipada ultrapassam, de longe, os custos econômicos da inação. Outras advertências também repercutiram fortemente e dizem respeito ao futuro. Sem uma significativa queda nas emissões, a concentração de GEE pode chegar ao dobro do seu nível pré-industrial. A estabilização dos índices de carbono atmosférico exige que as atuais emissões sejam reduzidas em pelo menos 25%. O setor de energia em escala mundial precisa ser "descarbonizado" em 60%, no mínimo, até 2050. Utilizando modelos econômicos formais, Stern calculou que as alterações do clima provocarão, a cada ano, uma perda correspondente a 5% do PIB global, enquanto os custos de redução limitam-se a cerca de 1%.
Antes de abordar os três possíveis cenários pós-2012, cabe destacar alguns países. China e Estados Unidos tornaram-se protagonistas decisivos na evolução das negociações. Os Estados Unidos respondem por 75% das emissões de gases de efeito estufa concentrados na atmosfera, e a China marcha para alcançá-los. Os Estados Unidos, dado o elevado consumo de energia per capita, representam 30% das emissões correntes, além da sua responsabilidade histórica, que resultou na atual concentração na atmosfera. A China, com seu ritmo acelerado de desenvolvimento e sua expressiva população, assumiu a liderança em volume de emissões correntes. Os Estados Unidos sinalizaram que aceitariam a meta de reduzir em 50% até 2050 o volume de emissões, desde que os países emergentes assumissem compromisso semelhante. Essa condição anularia por completo a responsabilidade histórica dos países desenvolvidos, inibindo assim os países de desenvolvimento tardio. A China considera o estabelecimento de metas nos seus planos de desenvolvimento, desde que sejam voluntárias. Já a Índia tem se recusado a estabelecê-las, priorizando em seu território as iniciativas de adaptação às mudanças climáticas.
No caso da Suíça, país que fixou metas com o compromisso de efetivamente cumpri-las, observa-se uma ampla mobilização nestes últimos dois anos. A EconomieSuisse, uma espécie de CNI [Confederação Nacional das Indústrias], se reuniu com os distribuidores de petróleo e com o Touring Club local, este na condição de representante dos usuários de automóveis. Foi então criada a Fundação do Centavo Climático. Essa fundação de direito privado recolhe de cada litro de gasolina vendido 1,5 centavo. O preço hoje do litro de gasolina na Suíça é algo em torno de 1,55 franco, o que corresponde a mais ou menos US$ 1,40. O recolhimento feito resulta em US$ 80 milhões por ano, destinados a várias ações que conduzem à redução das emissões de carbono. Uma primeira iniciativa é a melhoria da eficiência energética de prédios e moradias. Isso significa uso racional de energia para sistemas de iluminação, ar-condicionado, comunicação. Convém lembrar que muitos prédios foram construídos há várias décadas, com padrões de isolamento térmico obsoletos. Prioriza-se, então, a reforma de prédios históricos, almejando a racionalização energética. A segunda forma de utilizar esses recursos é financiar o desenvolvimento da bioenergia. Por exemplo, o transporte urbano, em muitas cidades suíças, é movido a óleo de colza, extraído das sementes da couve-nabiça (Brassica napus). As folhas da planta servem também de forragem para o gado.
Além disso, esses recursos são utilizados num percentual de 20% para financiar projetos do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo em países em desenvolvimento. No Brasil, um projeto financiado por essa fundação é a Precious Wood, empresa que gera energia elétrica utilizando cavaco de madeira. O setor privado suíço tomou parte da responsabilidade de reduzir a emissão dos gases de efeito estufa. O governo local, de seu lado, já decidiu adotar medidas indutoras, que incluem a imposição de uma taxa de carbono. Como a Suíça vive um problema grave de financiamento dos fundos de pensão, a decisão levaria a utilizar a receita da carbon tax para aliviar a pressão sobre esses fundos.
A América Latina como um todo emite 3,3% dos gases de efeito estufa do globo. As emissões do Brasil se dividem da seguinte forma: 25% provêm do setor industrial e de transporte e 75% das queimadas e desmatamento da nossa floresta amazônica. Portanto, políticas públicas voltadas para a solução desses problemas podem atrair investimentos para o Brasil, diferentemente do que ocorre com outros países. Refiro-me, por exemplo, à China, onde a poluição pode inibir em certos casos o volume de investimentos. É preciso, no entanto, relativizar esse papel que o setor privado poderá desempenhar, diante da necessidade de políticas públicas muito mais potentes para a redução do volume de queimadas.
Cenários para mudar o futuro
Três cenários para os próximos dois anos podem agora ser antecipados. No pior deles, não haveria entendimento nenhum. Sem um acordo global que comprometa os Estados Unidos na redução de gases de efeito estufa não existiria um regime pós-2012. Outro, pouco animador, mas não de todo negativo, é chegar-se a um acordo na 25ª hora do último dia, exaurindo todos os prazos, o que inibiria uma ação proativa, que a situação exige. O terceiro cenário, que efetivamente contempla o interesse da humanidade, é um acordo firmado até 2008, isto é, com a antecedência necessária para induzir medidas estratégicas e redutoras das emissões.
Na reunião que se realizará em dezembro de 2007, poderão ocorrer avanços sobre um novo princípio. Os países desenvolvidos aceitariam metas correspondentes ao esforço necessário e os países emergentes assumiriam compromissos vinculados à transferência de tecnologias limpas e aos recursos provenientes do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo. Com o Japão interessado em ver o Protocolo de Kyoto prosperar, surge para o final de 2008 a possibilidade de um entendimento sobre o regime pós-2012. Empresas dos setores de energia, cimento e transporte, que estão mobilizadas para reduzir suas emissões, teriam tempo para se ajustar ao regime pós-2012. Esse cenário otimista, entretanto, infelizmente tem pequena probabilidade de ocorrer.
O cenário mais pessimista, mas também de menor probabilidade, é que não ocorra um regime pós-2012. Os Estados Unidos permaneceriam em sua posição reativa, e a China e a Índia continuariam a não assumir metas, todos levando as negociações para um buraco negro, onde a Convenção do Clima continuaria prevalecendo, mas o Protocolo de Kyoto não teria um sucessor.
Um dos elementos que evidencia que esse cenário pessimista tem menor probabilidade de ocorrer é a ratificação do Protocolo de Kyoto pela Rússia. O país resistiu por vários anos a tomar essa decisão. Em 2004, Pascal Lamy, atual diretor-geral da OMC [Organização Mundial do Comércio], então comissário da União Européia para o comércio internacional, apresentou-se em Moscou para discutir o endosso da União Européia à entrada da Rússia na OMC. Num encaminhamento sutil, ele condicionou esse ato à subseqüente ratificação do Protocolo de Kyoto pela Rússia, o que ocorreu meses depois. Com isso, o protocolo entrou em vigor em 2005, contra a expectativa dos Estados Unidos.
Um cenário pouco animador, porém o mais provável, é chegar-se a um regime pós-2012 depois de exauridos todos os prazos. Isso inibirá uma ação proativa que a situação exige para induzir medidas estratégicas e redutoras das emissões. Mas o futuro está para ser construído. É grande, como nunca, o dever dos atores sociais (governos, empresas e ONGs) na busca de um regime pós-2012 capaz de reduzir as concentrações de GEE e evitar que conflitos de interesse adiem ou paralisem decisões urgentes. Os habitantes do planeta esperam que suas lideranças atendam aos clamores da comunidade científica e não deitem a perder as grandes esperanças nascidas em Kyoto.
Debate
JOSUÉ MUSSALÉM – A Anistia Internacional divulgou recentemente que há 200 milhões de chineses trabalhando em áreas urbanas com visto de permanência dado pela polícia. Ou seja, o chinês do interior é como se fosse um estrangeiro na cidade. E essas pessoas trabalham até 11 horas por dia, sem nenhuma legislação social. Quanto à Amazônia, tenho ouvido de algumas personalidades da área de segurança que a reunião do Rio de Janeiro de 1992 permitiu que o Brasil recebesse ONGs estrangeiras em grande quantidade, e isso hoje começa a preocupar fortemente os militares. Essas ONGs – já são 800 – seriam espiãs, que roubam parte da biodiversidade da Amazônia. Imaginem a quantidade de estrangeiros que estão lá, enquanto as forças armadas, com limitações orçamentárias, tentam manter presença na região. A questão amazônica é preocupante, até porque Pascal Lamy, como também o vice-presidente dos Estados Unidos, Al Gore, tem idéias muito próprias sobre essa área, que não são do interesse do Brasil. Gostaria de ouvir sua opinião sobre isso.
MARCOVITCH – A Amazônia é uma grande extensão territorial compartilhada por oito países soberanos, entre os quais o Brasil, que está empenhado em assumir suas responsabilidades em prol do desenvolvimento sustentável naquela região. A presença de ONGs ocorreria independentemente da Rio-92, desde que muitas delas são financiadas por correntes religiosas e confessionais.
A Amazônia e a questão ambiental de forma mais abrangente estão hoje na pauta das agências de financiamento e das empresas globais. Novos atores do sistema financeiro internacional priorizam a dimensão ambiental em seu processo decisório. Fundos de pensão, companhias de seguros e fundos soberanos vêem na questão ecológica um grande risco para seus negócios futuros. O Protocolo Verde, acordado entre agentes financeiros, determina o cumprimento de regras mínimas na área ambiental. Não é por acaso que mídias raramente atentas aos temas ambientais em tempos passados – por exemplo o "Financial Times" e "The Economist" – têm tratado dessa pauta com freqüência crescente, respondendo assim às prioridades das empresas. Os partidos verdes e as esquerdas passaram a ver a sua causa absorvida também pelos partidos de centro, de direita e pelas correntes conservadoras.
Recentemente, em palestra realizada no curso de relações internacionais da USP [Universidade de São Paulo], o general Eduardo Villas Bôas, da Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais, abordou o tema da Amazônia do ponto de vista da segurança. Foi uma leitura precisa dos movimentos religiosos e das organizações não-governamentais que atuam na região. Ele sublinhava a preocupação das forças armadas brasileiras com os vazios demográficos, a distância dos centros de poder e a ausência do Estado, que resultam na presença sem receios das guerrilhas provenientes de países vizinhos, como as Farc [Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia], assim como dos narcotraficantes oriundos em especial da Colômbia, Peru e Bolívia.
JANICE THEODORO – Conheci um pouco a China, e uma das coisas que considerei básicas é que para os chineses o elemento homem não é uma categoria. Diferentemente do que ocorre no Ocidente, os chineses não trabalham com nenhum referencial humanista. Isso gera problemas complicados. Por exemplo, a questão dos idosos não é resolvida pela aposentadoria, mas incentivando o serviço médico a promover a morte mais rápida daqueles que envelhecem, aumentando horas de trabalho, enfim, adotando condutas extremamente violentas. Eles achavam muito estranho Macau ter políticas de saúde, porque a seu ver todo deficiente deveria morrer logo. Então deportavam para Macau as pessoas portadoras de deficiência, uma vez que para eles não tinham serventia. São políticas trabalhistas extremamente diferentes da nossa. Estive visitando obras em que incentivavam o trabalho além das 12 horas. Os andaimes eram de bambu e eles diziam que a morte eventual desses trabalhadores seria mais barata do que a montagem de uma estrutura mais segura. Para nós é uma política incompreensível. Como negociar com os chineses?
MARCOVITCH – Há duas formas de analisar esses fatos. Para alguns analistas, a China vive uma fase de transição. Esse país-continente esteve fechado ao Ocidente durante várias décadas. Os seus processos de desenvolvimento e sua abertura econômica datam dos anos 1990. Segundo esses analistas, à medida que convive mais intensamente com a comunidade internacional, a China tende a se modernizar. A sociedade chinesa levaria em conta regras do convívio internacional, pois se trata de um país que no momento evita assumir posições singulares. A proposta desses analistas é oferecer à China o tempo de que necessita para se integrar à comunidade internacional.
Uma segunda abordagem corresponde ao que o Brasil deveria fazer para fundamentar a sua política externa. Negociar com os chineses exige um olhar de longo prazo. Um horizonte que se estende pelo menos a 2030. Até lá, a presença econômica da China na América Latina tenderá a crescer de forma significativa, com tecnologias bem mais sofisticadas do que a dos produtos têxteis e calçados. A China, dentro de 15 anos, já estará exportando carros, computadores e aviões. A partir dessa compreensão cabe-nos tomar a decisão, hoje, quanto à forma de negociar nas áreas política e econômica. Trata-se de abordagens distintas. Por isso os estudos sobre a evolução da China e seus impactos na economia global e no Brasil em especial são temas a ser continuamente aprofundados.
ISAAC JARDANOVSKI – Jacques, existem alguns institutos de pesquisa que estão prevendo o esgotamento do petróleo como recurso energético dentro de 40 ou 50 anos e por força disso há pessoas imaginando o Brasil como superpotência daqui a 50 anos, graças ao etanol. Como é que você vê isso?
MARCOVITCH – Quanto mais o preço do petróleo aumentar, mais rentável se tornará procurá-lo. Por isso, haverá sempre uma oferta que responde a preços mais elevados. Esses preços, além de viabilizar a busca de petróleo em áreas mais remotas, também favorecem a produção de biocombustíveis, como o etanol e o biodiesel. Com o petróleo em valores superiores a US$ 70 o barril, vejo no horizonte de 2030 uma diversidade maior na matriz energética mundial, porém ainda haverá um segmento significativo atendido por energias fósseis. O que ocorrerá a partir de 2100 é muito difícil prever. Seria como voltar à Revolução Francesa, quando se fez uma projeção do que ocorreria se o número de cavalos que circulavam nas ruas de Paris fosse multiplicado por um fator dez, num exercício prospectivo de 50 anos. A cidade de Paris estaria coberta de dejetos orgânicos. Projeções de longo prazo não levam em conta a capacidade do ser humano de inovar, de responder às ameaças com soluções tecnológicas. Agora, no horizonte de 2050, antecipo uma tendência de elevação do preço do petróleo, com um conseqüente aumento de volume na demanda, até porque Índia e China se tornaram grandes consumidores. Simultaneamente, serão incorporadas fontes energéticas renováveis, em especial biocombustíveis.
EDUARDO SILVA – Em relação a meio ambiente, penso até que o Brasil já avançou bastante, porque se fala disso há seguramente uns 30 anos. O ideal seria fortalecer a educação nas escolas, ensinando às crianças e jovens o que é o meio ambiente, o valor da terra em que vivemos, para que servem as árvores. Penso que, com o passar do tempo, o Brasil será um dos líderes na manutenção do meio ambiente.
MARCOVITCH – Com uma elevada proporção de jovens na população, uma grande extensão geográfica rica em biodiversidade, o Brasil tem uma expressiva possibilidade de contribuir para isso. Cabe às nossas universidades e empresas oferecer à juventude as oportunidades e desafios. Exemplos disso estão nas chamadas "carreiras verdes". Tivemos no passado os colarinhos-brancos, isto é, pessoas que se distanciaram do chão da fábrica para trabalhar em escritórios. Tratava-se de carreiras estruturadas em torno de atividades administrativas e de serviços. Hoje, diante dos desafios ambientais materializados em duas convenções, tanto a da biodiversidade quanto a do clima, surge a necessidade de desenvolver profissionais com novas qualificações, como, por exemplo, a agrometeorologia, que combina as competências da meteorologia à agronomia, para assegurar os conhecimentos necessários à agropecuária brasileira. Para desenhar uma estratégia agrícola para o país, a agrometeorologia é um dos fatores determinantes. Não basta pesquisar. O Brasil é hoje capaz de plantar e produzir. É preciso projetar a evolução do clima e analisar as condições para as atividades agropecuárias nas microrregiões. Na arquitetura e na construção civil, o tema da energia e da redução dos gases de efeito estufa induz essa cadeia setorial a se repensar. Sua reestruturação inclui desde os processos de produção do aço e do cimento até os sistemas de iluminação e refrigeração nas construções.
Além de "prédios inteligentes", cuja arquitetura prioriza o uso racional de energia, toda a cadeia de produção de insumos é induzida a assumir maior responsabilidade socioambiental. Jovens talentos acadêmicos e profissionais adquirem novas competências. Surgem carreiras, exigindo ciclos de formação renovados. A USP, por exemplo, criou seis programas novos na área ambiental, na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, em Piracicaba, no Instituto de Geociências, na Escola Politécnica, na Escola de Engenharia de São Carlos, na USP-Leste e na própria Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade. São novas disciplinas e carreiras que estão surgindo. É desejável agora que essas formações sejam valorizadas pela empresa. Que os perfis dos profissionais que estão sendo recrutados valorizem essas competências. Os jovens deveriam perceber que no mercado de trabalho existem oportunidades de realização profissional e pessoal.
MÁRIO AMATO – Gostaria que você me respondesse o seguinte: não acha que o maior predador é o ser humano? Será que não vai chegar o dia em que a explosão demográfica que verificamos em países atrasados ameaçará a sobrevivência do ser humano? Vai chegar o tempo em que se proibirá a reprodução humana para garantir o equilíbrio da natureza?
MARCOVITCH – Na própria China, onde há décadas o controle de natalidade limita as famílias a um filho por casal, essa política está sendo revista. Hoje o país se confronta com estabilização demográfica associada a desequilíbrio entre gêneros. Há um número maior de homens, em decorrência dos freqüentes infanticídios de meninas. O governo chinês está revendo sua política, autorizando os casais a ter um segundo filho, caso o primeiro seja do sexo feminino. Isso mostra que interferências como a de proibir a natalidade têm seus limites. No Brasil, na Copa do Mundo de Futebol de 1970 éramos 93 milhões. Já na Copa da Alemanha, em 2006, passamos a 186 milhões. Em 35 anos houve um acréscimo de outros 93 milhões. Em 1970 tínhamos dois terços de população rural e um terço de urbana e, agora, um terço de rural e dois terços de urbana. Os 30 milhões de moradores que havia em 1970 nas regiões urbanas passaram a 120 milhões em 2006. Dentro de 25 anos, a população brasileira deve se estabilizar em aproximadamente 230 milhões, sem considerar os fluxos migratórios imprevisíveis. Isso torna muito importante o que fazemos hoje. Estamos fincando os fundamentos ou as formas de convívio, que se podem perenizar com uma população estabilizada.
CLÁUDIO CONTADOR – O Brasil neste momento está entrando no chamado "bônus demográfico". Existe uma grande conspiração a favor da demografia no Brasil. Não podemos perder isso. A taxa de fertilidade já está próxima de duas crianças por mulher. Não sei se vamos chegar aos 230 milhões, talvez seja menos do que isso, mas a população brasileira vai se estabilizar muito rapidamente. O significado disso para as políticas públicas é fundamental. Vamos precisar de menos escolas, ou seja, teremos de mantê-las, com melhores professores, mais qualidade. Serão necessários mais hospitais geriátricos. E o mercado de seguros terá desafios gigantescos, haverá previdências quebradas etc.
MARCOVITCH – Concordo quanto à importância de discutir o bônus demográfico. Sobre a questão urbana, destaco um problema muito sério, já tratado na revista Problemas Brasileiros, que abordou a falta de saneamento em muitas cidades. Nessa área temos um passivo a ser enfrentado e resolvido rapidamente. Caso contrário, a contaminação de águas e da terra pode ser irreversível, e esse bônus demográfico poderá ser ameaçado.
ZEVI GHIVELDER – Venho acompanhando, com bastante perplexidade, uma situação que ocorre hoje no país. O governo pretende construir hidrelétricas mas um órgão oficial se opõe a isso. Como é possível conciliar desenvolvimento e meio ambiente?
MARCOVITCH – Nos foros internacionais que acompanho, inclusive de empresários, a política ambiental brasileira é elogiada, sendo considerada pertinente e correta. A crítica feita diz respeito ao despreparo dos quadros responsáveis por sua implantação. São dirigentes e funcionários cujo perfil é inconciliável com a qualidade dessa política. Os desacertos que circulam na mídia diária não decorrem da política ambiental discutida, debatida, aprovada no Congresso, mas dos quadros humanos, que não estão preparados para lidar com temas dessa complexidade. Isso inclui também o Judiciário, já que muitas ações são paralisadas por falta de estrutura da Justiça. Com relação mais especificamente às hidrelétricas, algumas delas podem provocar impactos ambientais em outros países. Passamos a ter, além do problema nacional, o de nações vizinhas, como acontece no caso das hidrelétricas do rio Madeira. Ouvi de um ministro boliviano: "Nunca deixaremos as hidrelétricas do rio Madeira serem construídas". Isso cria outra lógica. O governo brasileiro sempre entendeu que o que estava dentro de seu território poderia ser feito sem consulta prévia. No caso de Itaipu era diferente, porque o rio era compartilhado. Resumindo, é um tema complexo que só se resolve com profissionais competentes implementando uma política ambiental de qualidade.
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