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Cursos de direito: 180 anos de Brasil
Cláudio Lembo fala da instalação das faculdades de direito no país
Abram Szajman (à esq.), Ives Gandra e Cláudio
Lembo / Foto: Bruno Leyte
Seis meses depois de proclamada a Independência do Brasil, instalou-se a Assembléia Geral Constituinte e seus integrantes tiveram a nitidez de consciência de que, para conceber um Estado nacional, são necessários bacharéis em direito. Dessa forma, os cursos jurídicos no Brasil nasceram do mesmo processo político em que se estabeleceu o Império. Isto é, vieram ao mundo juntos o Estado nacional e os cursos de direito.
Esse foi o ponto principal da palestra que o professor e ex-governador de São Paulo Cláudio Lembo proferiu no dia 9 de agosto de 2007, na reunião do Conselho Superior de Direito comemorativa dos 180 anos da instalação dos cursos jurídicos no Brasil, com a criação das faculdades de direito de São Paulo e do Recife, então de Olinda. O conferencista foi saudado pelo presidente da Federação do Comércio do Estado de São Paulo (Fecomercio), Abram Szajman, que ressaltou a importância da "verdadeira aula do professor Lembo". O presidente do conselho, Ives Gandra Martins, lembrou que "a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco é a primeira de todas as do Brasil e sua importância está no fato de ter influído decisivamente nas letras, na política e no direito do país. E é extremamente interessante como a história do Brasil está profundamente ligada a essa instituição".
Feliciano, paulista importante
Lembo contou que houve várias tentativas de instalação de cursos superiores no Brasil antes de 1822. Recife teve um momento de apogeu com os holandeses, que lá pretenderam criar uma universidade, em 1654. Mais tarde, durante o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve, comerciantes do Rio de Janeiro apoiaram a abertura de estabelecimentos de ensino, mas não garantiram os fundos necessários. Em 1820 e 1821 ocorreram novas tentativas, também no Recife, por solicitação do ouvidor-geral da comarca, Venâncio Bernardino de Uchoa, à corte de dom João VI. Ambos os pedidos foram recusados sob a alegação de que algumas escolas primárias bastariam. A corte temia a ilustração dos súditos, especialmente os brasileiros. Restaram, assim, os colégios maiores dos jesuítas, os seminários das ordens religiosas e das dioceses para a transmissão de conhecimento metodizado.
No Brasil independente coube a um paulista, José Feliciano Fernandes Pinheiro, o visconde de São Leopoldo, a primeira iniciativa para a instalação de cursos jurídicos, o que possibilitou o desenvolvimento social e econômico de seu estado. A Faculdade de Direito teve muita importância porque criou uma elite intelectual, que é o que faz as sociedades mudarem. José Feliciano foi presidente da província do Rio Grande do Sul, fundou São Leopoldo, mas São Paulo, ironicamente, não tem rua ou logradouro com seu nome. Ele também foi deputado, e representou São Paulo na Assembléia Geral Constituinte e Legislativa. Na época, só havia uma Câmara (o Senado surgiria depois). Supõe-se que ele, de fato, queria criar uma universidade na cidade, que tinha 23 mil habitantes. Mas o Brasil e a província de São Paulo tinham poucos recursos em razão da guerra da Província Cisplatina contra os argentinos, à qual a Guarda Cívica de São Paulo (atual PM) mandou 2 mil homens.
Ocorreram debates acirrados na Assembléia Constituinte e o maior adversário da Faculdade de Direito em São Paulo foi o deputado baiano Francisco Gê Acaiaba de Montezuma, o visconde de Jequitinhonha, que a queria na Bahia. Ele alegava a suposta "fragilidade de São Paulo", apoiado em vigorosos pronunciamentos na tribuna. Por exemplo: "Não sei por que São Paulo deva merecer semelhante preferência. Não sei por que aqui [no Parlamento] sempre se anda de São Paulo para cá, de São Paulo para lá e nada aqui se fala que não venha de São Paulo. Um só colégio não deve ser criado em São Paulo, mas na Bahia".
Nada contra a prosperidade econômica de São Paulo, na época, aliás, com problemas financeiros. A questão era política. Possivelmente, ainda ecoassem as palavras da Fala do Trono do imperador Pedro I, em 3 de maio de 1823, data do início dos trabalhos constituintes: "Quando em São Paulo surgiu dentre o brioso povo daquela agradável e encantadora província um partido de portugueses e brasileiros, parti imediatamente para a província, entrei sem receio, porque conheço que todo o povo me ama. E porque conheço que todo o povo me ama, dei as providências que me pareceram convenientes, a ponto que nossa independência lá foi primeiro que em parte alguma proclamada, no sempre memorável sítio do Piranga [Ipiranga]. Foi na pátria [São Paulo] do fidelíssimo e nunca assaz louvado Amador Bueno de Ribeira [aquele que não quis ser rei de São Paulo] aonde pela primeira vez fui proclamado imperador".
Em 14 de junho de 1823, José Feliciano indicava à comissão de instrução pública "que no Império do Brasil se crie antes uma universidade pelo menos, para seio da qual parece dever ser preferida a cidade de São Paulo, pelas vantagens naturais e razões de conveniência geral. E que na Faculdade de Direito, que será sem dúvida uma das que comporá a nova universidade, em vez de múltiplas cadeiras de direito romano (...), se instituam duas cadeiras, uma de direito público constitucional e outra de economia política". Eles tinham visão histórica e, já no primeiro ano, havia a cadeira de análise de direito constitucional, considerando a estruturação do Estado de direito e do Estado nacional.
Foi um lento processo o da Assembléia Constituinte, porque havia outros temas, como a questão indígena, do negro e da liberdade religiosa, o que foi importante para o Brasil, para sua história e para sua consciência cívica, porque percebeu-se a importância da liberdade religiosa e muito claramente a das múltiplas seitas. A situação dos judeus dá nitidez à idéia: "Se, pois, o princípio é geral, por que razão se permitirá o culto público às comunhões cristãs e se denegará às outras seitas? Uma vez que fiquem salvas a moral, a paz e a tranqüilidade do Império, o culto dos judeus, por exemplo, não deverá ser tolerado nas sinagogas?", pergunta um dos constituintes, o deputado Carneiro. Que responde: "Eu digo não ter encontrado no Evangelho o conselho ou o preceito para fazer guerra de perseguição aos judeus, pelo contrário, estou persuadido que ali só se prega a mansidão e a tolerância e que os judeus devem achar todo o favor entre nós".
A "Bucha"
Segundo o professor Cláudio Lembo, liberdade de imprensa foi outro tema da primeira Assembléia Geral Constituinte, a respeito do qual o deputado Xavier de Carvalho escreveu em latim: "Esse paládio da liberdade civil, esse forte baluarte já contra o despotismo aviltador, já contra a desorganização anárquica, esse alimento vital dos governos livres e sem o qual eles perecem, bem como nós quando nos falta o ar que respiramos. Todo cidadão é livre de falar, escrever e imprimir, ficando obrigado a responder pelos abusos dessa liberdade". A Constituinte também tratou das sociedades secretas – a maçonaria, principalmente. A polícia tentava prender os integrantes dessas organizações, mas eles se refugiavam nos navios atracados no porto do Rio de Janeiro, uma vez que eram território estrangeiro, onde os policiais não podiam entrar. O imperador estava num dilema, pois, se tinha de garantir o direito de as pessoas se reunirem, não podia arriscar a integridade do Estado. Essas sociedades secretas da corte chegariam a São Paulo com a instalação da Faculdade de Direito, por meio da Burschenshaft, a associação dos jovens alemães – conhecida por Bucha, devido à dificuldade de pronunciar seu nome –, sociedade envolvida em mistério e sombra, ainda hoje uma lenda na Faculdade de Direito.
O baiano Montezuma era tão manifestamente contra instalar uma escola em São Paulo que permitiu a seus colegas apresentarem sugestões quanto à localização da faculdade. Cada um a queria na própria província: Rio de Janeiro, onde ficava a corte; Vila Nova da Rainha de Caeté ou Mariana, em Minas; Paraíba (hoje João Pessoa), na Paraíba; Vila da Cachoeira, na Bahia; Olinda, em Pernambuco. Todas essas cidades foram candidatas à faculdade de direito. A proposta de José Feliciano, já transformada em projeto de lei, voltou à pauta dos trabalhos na sessão de 4 de novembro de 1823, véspera da dissolução da Assembléia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil. O deputado paulista Paula Sousa incluiu Olinda na proposta. E assim foi aprovada, em primeiras discussões, a criação de faculdades de direito no norte e no sul do Brasil.
Com a localização das duas escolas eles definiram bem o Império, pois naquele tempo consideravam-se o norte, o sul e o litoral. Isso possibilitou a integração dos estudantes das províncias do Brasil nas duas escolas. Rui Barbosa, por exemplo, foi reprovado em Olinda. Mudou para São Paulo e concluiu os estudos aqui. Por que foi reprovado? Talvez os pernambucanos tenham transferido a ele o ódio pelos baianos, a quem acusam pela morte de frei Caneca, além de ter sofrido as revoluções. Em São Paulo, Rui passou de ano. O pernambucano Joaquim Nabuco também estudou em São Paulo. Havia um intercâmbio de gente de qualidade entre as províncias do Brasil. Castro Alves não gostava de São Paulo porque aqui foi caçar, deu um tiro no pé e perdeu a perna. O visconde do Rio Branco estudou no Largo de São Francisco, assim como Fagundes Varela. Com a dissolução dos trabalhos constituintes, o vácuo legislativo permitiu aos defensores de uma escola de direito na corte uma vitória parcial. O decreto imperial de 9 de janeiro de 1825 autorizou uma Faculdade de Direito no Rio de Janeiro, mas ela não foi instalada. O visconde de Cachoeira redigiu para essa escola um minucioso estatuto de ensino universitário – em substituição ao de Coimbra –, que acabou sendo aplicado em São Paulo e em Olinda.
Outorgada a Constituição de 1824 pelo imperador Pedro I, reabriram-se os trabalhos legislativos. Na sessão de 4 de julho de 1827, o projeto de José Feliciano foi aprovado em terceira discussão. Em 11 de julho, após novos debates, foi elaborado ofício ao imperador. Houve divergências na redação e na constituição da delegação que o levaria. Afinal, era uma faculdade de direito no Brasil de 1827. O texto: "Senhor, somos enviados pela Câmara dos Senadores [já havia as duas Casas e só dois senadores] para apresentar a vossa majestade imperial, com o mais profundo respeito e devido acatamento, um decreto para estabelecimento de dois cursos jurídicos nas cidades de São Paulo e Olinda. Decreto que a Assembléia Geral julga vantajoso e útil ao Império e para o qual pede a sanção de vossa majestade imperial". O imperador sancionou a lei no dia 11 de agosto de 1827. O deputado José Feliciano, autor do projeto, em seu livro de memórias diz o seguinte: "Ao tempo deste meu ministério pertence o ato que reputo o mais glorioso de minha carreira política, o que penetrou-me do mais íntimo júbilo que pode sentir o homem público no desempenho de suas funções. Refiro-me à instalação dos dois cursos jurídicos de São Paulo e Olinda, consagração definitiva da idéia que eu aventava na Assembléia Constituinte em sessão de 14 de junho de 1823".
Desde os seus primórdios, o currículo das duas escolas tinha a disciplina Análise da Constituição Pátria, o que significa desde cedo aprender a respeitar o Estado de direito que sempre prevaleceu durante a monarquia. Afirma Lembo: "Sou republicano, presidencialista, a república é irreversível e própria dos tempos contemporâneos. Mas o Império foi extremamente democrático. Eles chamavam de poder real. Pedro I deu o nome de poder moderador. Ele não quis ser o poder real, ele foi muito mais liberal que os parlamentares. Na monarquia houve muita liberdade de expressão, talvez porque só houvesse minoria branca, e, na minha visão sociológica, era mais fácil. Mas, quando Deodoro proclamou a república daquela forma, o visconde de Ouro Preto, o último primeiro-ministro do Império, escreve O Advento da Ditadura Militar no Brasil".
A Faculdade de Direito alterou a fisionomia de São Paulo. A pacata cidade tornou-se alegre e barulhenta. Os estudantes de direito tomavam todos os espaços, e segundo relatos da época perturbavam os 23 mil tranqüilos habitantes da cidade. Foi a escola de São Paulo a primeira a iniciar suas atividades, no dia 1º de março de 1828. Hoje, no entanto, as instituições espalhadas por todo o território nacional não são homogêneas na transferência do conhecimento. Aliás, quando a escola completou 80 anos, Pedro Lessa, que estudou o problema das escolas de direito, escreveu: "Os cursos vão muito mal, o ensino no Brasil é péssimo, os professores são incompetentes, os alunos vagabundos". Por outro lado, há instituições de vanguarda que transmitem conhecimento científico e experiência prática. Há pessoas que se ofendem com a designação "operadores do direito", mas os formados pelas escolas de direito poderão optar por carreiras jurídicas, advocacia liberal, magistratura, magistério. Todos os bacharéis em direito, em qualquer posição em que se encontrarem, utilizarão os ensinamentos recolhidos nos cursos jurídicos em suas práticas cidadãs.
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