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“Temos de sacudir o marasmo”

O professor Marco Antonio Villa, doutor em história social, fala de política brasileira

CECÍLIA PRADA


Marco Antonio Villa
Foto: Beatriz Pontes

"Essa não é a república dos meus sonhos." A frase é de Joaquim Saldanha Marinho, senador da República de 1890 a 1895, e parece repercutir ainda hoje pelos brasílicos céus, condensando o que uma grande maioria da população pensa, nestes tempos difíceis. Ninguém melhor do que Marco Antonio Villa, doutor em história social pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), para comentar a complexidade do momento que vivemos e nos ajudar a recuperar a esperança naquela famosa "luz no final do túnel" – de tão bruxuleante chama, atualmente. Aos 50 anos, o professor Villa é autor de mais de 20 livros, entre os quais destacam-se Vida e Morte no Sertão (sobre o problema das secas), Canudos – O Povo da Terra e Jango – Um Perfil.

Problemas BrasileirosComo caracteriza o momento histórico e político que vivemos hoje, no Brasil?
Marco Antonio Villa – É um momento singular. Temos uma estabilidade na economia, o presidente, segundo as pesquisas, é popular, porém há uma fratura em relação aos setores mais informados do país. Desde 2005, especialmente, foi aumentando a tensão entre o governo e os chamados "formadores de opinião". Isso não teve influência nas eleições presidenciais de 2006, mas poderá ter em 2010, quando Lula, ao que tudo indica, não será candidato – será a primeira vez desde 1989 que ele não entrará na disputa.
A oposição parlamentar é frágil e sem idéias. Não há sequer um esboço de projeto nacional elaborado pelo governo ou pela oposição. O país cresce a um ritmo inferior ao que poderia apresentar. Na história do capitalismo dos últimos 200 anos, nunca a economia internacional teve tanta expansão como agora. Boa parte de nosso crescimento deve-se ao céu de brigadeiro internacional. E pior: não aproveitamos para dar um salto no desenvolvimento, melhorando a infra-estrutura, a educação, a saúde etc. Se a China deixar de crescer no ritmo avassalador atual, teremos sérios problemas. Nossa pauta de exportações não é a de um país emergente. Temos de agregar valor às vendas externas.
Em síntese: o país cresce lentamente, não sabe para onde ir e perdeu – sem ter depois reencontrado – aquele élan que marcou nossa história no século 20, até o final dos anos 1970.

PB Há algum outro momento na nossa história, ou na de outros países, que possa ser comparado com este?
Villa – Sinceramente, não sei. Mesmo na América Latina, cada país tem suas particularidades. Veja que a Argentina tem uma história muito diferente da brasileira. Na Ásia, cada um vai seguindo seu caminho. O mais trágico é que em 1960, por exemplo, a Coréia do Sul, comparada ao Brasil, não era nada. Agora é uma potência. Perdemos a capacidade de inventividade, de ousadia. A intelectualidade, que sempre teve um papel importante na nossa história, hoje é de uma pasmaceira invejável. As universidades não são um centro de questionamento, uma espécie de consciência crítica da nação. Acabaram se transformando em repartições públicas – e com tudo o que há de pior nessa categoria.

PBComo foram resolvidas outras crises semelhantes?
Villa Com rupturas. Veja 1930 e 1964. No caso de 1930, pelo rompimento com a velha ordem oligárquica e a criação do moderno Estado brasileiro. Em 1964, poderíamos ter dado um salto para atualizar aquele Estado criado em 30 e mudar nosso padrão de desenvolvimento, tudo dentro de uma ordem democrática. Infelizmente, boa parte dos atores políticos apostou no confronto e não na democracia, e deu no que deu: 21 anos de regime militar. Falo sobre isso no meu livro Jango – Um Perfil.

PB É conhecida sua posição por assim dizer "anti-republicana"... Pode comentar?
Villa Quando falo da dicotomia monarquia-república, estou me referindo a 1889. Um Terceiro Reinado, provavelmente com uma regência de Isabel em nome de seu filho mais velho – que seria maior depois de uns cinco ou seis anos –, seria melhor para o país do que a república oligárquica. Claro, desde que a monarquia fizesse as reformas defendidas, por exemplo, por André Rebouças e Joaquim Nabuco, e também pelo visconde de Taunay, como casamento civil, separação Igreja-Estado, descentralização administrativa, transformação do ex-escravo em cidadão, com o levantamento da questão do regime de propriedade da terra etc. Não era mais possível ter um senado vitalício e escolhido em lista tríplice pelo imperador. O país havia mudado, o progresso do café tinha alterado a geografia econômica e política, com a transferência do eixo para o sul.
Faltou ousadia ao imperador, embora deva ser lembrado que ele estava muito doente desde 1888 e sem condições de ser um bom articulador, isso num momento de crise política, não econômica.

PB Isso significa que se poderia lucrar com uma eventual volta da monarquia?
Villa A volta da monarquia é carta fora do baralho. Até 1910, mais ou menos, se poderia falar nessa possibilidade, embora remota. O herdeiro dom Luís era o segundo filho da princesa Isabel e tinha boas articulações com os intelectuais brasileiros. Mas, com sua morte, esse assunto virou tema do ultraconservadorismo.

PB Parece que houve mesmo um certo "arrependimento", por parte dos líderes republicanos, nos anos pós-proclamação.
Villa – Muitos republicanos da época da propaganda (1870-89) logo ficaram desiludidos com a República. Como disse Saldanha Marinho: "Esta não é a república dos meus sonhos". Imaginavam uma república reformista, democrática, e acabaram em meio ao domínio das oligarquias estaduais e do voto de cabresto. Uma das primeiras medidas da República foi retirar os negros do serviço diplomático, deixando claro o sentimento antinegro, antipovo, do novo regime. Vale recordar a rebelião dos marinheiros em dezembro de 1889 – a quase totalidade dos marinheiros eram negros e mulatos – e a repressão, com fuzilamento e prisão dos rebeldes. Do mesmo mês e ano data a lei que impunha a censura à imprensa, isso após o empastelamento de jornais monarquistas no Rio de Janeiro. O empastelamento, por sinal, foi prática da República Velha, como meio de impor o terror aos opositores. Na Guerra de Canudos, quando da notícia da derrota da terceira expedição e da morte de seu comandante, o coronel Moreira César, vários jornais do Rio de Janeiro e de São Paulo foram empastelados e líderes monarquistas perseguidos. O coronel Gentil de Castro foi barbaramente assassinado no Rio, em março de 1897.

PB Havia uma "ala esquerda" no movimento republicano que foi dominada pelo grupo conservador?
Villa Sem dúvida alguma. A "ala esquerda" era defensora de uma série de reformas sociais, mas acabou isolada e sem influência, como Silva Jardim, o mais expressivo propagandista da república lá pelos anos de 1887/89. Foi candidato em 1890 à Constituinte pelo estado do Rio de Janeiro e não foi eleito, ele, que imaginava presidi-la. Morreu jovem, sem sequer ter exercido um cargo importante no novo regime – de morte trágica, pois ao visitar o Vesúvio, na Itália, aproximou-se demais da cratera e acabou caindo nela.
Outros líderes importantes, como Euclides da Cunha ou Raul Pompéia, também fizeram duras críticas à República. Pompéia, ainda na época da propaganda, ironizava: "Vosso barrete frígio é um saco de coar café". Barrete frígio é aquele gorro, símbolo da Revolução Francesa, usado pelos sans-culottes de Paris – muitas cidades paulistas o têm como símbolo, como São José do Rio Pardo. Os mais avançados não aceitavam que seus correligionários tivessem escravos e defendiam a abolição imediata.

PB Se estamos em um momento pré-ruptura, pelo que parece, já que a atual apatia não pode continuar para sempre, é possível prever como ela se processará?
Villa – Não sei se estamos próximos a alguma ruptura. Acho que temos de dar uma sacudida no marasmo em que vivemos. Falta indignação, falta projeto nacional, falta um compromisso mais efetivo com o país. O momento parece desfavorável. Mas política é surpreendente. Pode ser que por alguma denúncia ou por alguma medida adotada pelo Congresso Nacional – estamos no terreno das hipóteses –, ocorra uma reação nacional, de mobilização, que chegue até às ruas. O que não dá é para aceitar o conformismo.
Se Macunaíma teve de enfrentar o gigante Venceslau Pietro Pietra, Lula tem de lutar contra opositores bem cordiais. A oposição não sabe ser oposição – mesmo quando não faltam motivos para criticar, enfraquecer o adversário e ganhar espaço político. Afinal, o governo Lula fracassou em todos os campos. Fez o jogo do capital financeiro, não enfrentou o grave problema das dívidas interna e externa e manteve "os de baixo" sob controle, transformando o Bolsa Família em uma forma nova de coronelismo e de domínio eleitoral dos grotões. A ampla reforma ministerial, anunciada com o objetivo de buscar a eficiência administrativa, acabou de forma pífia, com a entrada de parte do PMDB, que já apoiava o governo. Lula foi sobrevivendo às crises, aguardando ser reeleito.

PB O que diz da pretensão do Brasil de se tornar uma grande potência mundial?
Villa – Até o final da década de 1970, isso estava colocado, até pela diplomacia brasileira. Com os problemas econômicos do início dos anos 1980 acabou sumindo da agenda política. O "país do futuro" foi substituído pelo "país do pessimismo", filho da crise econômica, da corrupção e da falta de perspectiva. Creio que, antes de pensarmos em ser uma potência mundial, temos de ter um projeto nacional. O mais curioso é que o Brasil tem um Ministério do Planejamento e uma Secretaria de Planejamento de Longo Prazo e não consegue planejar absolutamente nada.

PB Tivemos recentemente dois episódios com sinais contrários: de um lado o indiciamento pelo Supremo Tribunal Federal dos 40 envolvidos no "mensalão", de outro a "absolvição" pelo Senado do presidente Renan Calheiros. Pode comentar?
Villa – Os dois acontecimentos mostram a contradição que vivemos. As instituições democráticas são frágeis. Quando digo "frágil" não me refiro a um golpe de Estado. Isso está fora de cogitação. Frágil em termos de garantir direitos efetivos aos cidadãos, de coibir a violação dos valores republicanos, de combater a corrupção. Devemos lembrar que as sessões do Supremo Tribunal Federal que julgaram os mensaleiros foram públicas e televisionadas, e a do Senado, para apreciação do processo de Calheiros, foi clandestina. O terrível é perdermos tempo com um personagem tão pequeno da política brasileira. Quem vai lembrar dele em 2050? O que ele fez durante 25 anos de carreira política? Algum projeto? Apresentou ao menos alguma idéia? Nada. É um vazio. É uma espécie de Pacheco, aquele personagem medíocre de Eça de Queirós.

PBPor falar em Senado... como vê essa instituição?É realmente necessária?
Villa – O Parlamento unicameral era tema da Constituinte de 1987/88 e não de agora. Não é porque o Senado agiu daquela forma que vamos propor sua extinção. E se a moda pega? O que é necessário é que ele cumpra suas funções constitucionais. Mas algo pode ser feito, como mudar o regimento e acabar com o suplente. Isso é importantíssimo. Deve ser lembrado que em 2010 serão renovados dois terços do Senado. Os senadores não estão lá por vontade própria ou porque foram impostos pelo Executivo. Foram eleitos. Daí a importância de uma boa escolha.
Não podemos esquecer, entretanto, que os gastos de funcionamento do Senado são exorbitantes. A casa tem 13.536 funcionários – um aumento de 77% em relação a dezembro de 2002. Isso dá mais ou menos 167 funcionários por senador. A média salarial é superior a R$ 10 mil, e o orçamento de 2006, por exemplo, foi de R$ 2,333 bilhões – dos quais R$ 600 milhões só para pagar aposentadorias, R$ 42 milhões para assistência médica e R$ 30 milhões de auxílio-alimentação.

PB O presidente Lula tem classificado a crise atual de "fabricação da imprensa e de privilegiados descontentes". O que acha disso?
Villa – O presidente Lula está equivocado. Vivemos uma crise de representatividade e a desmoralização dos valores éticos no trato da coisa pública. Quando sai em defesa de algum acusado de corrupção, o presidente da República presta mais um desserviço à democracia. O "mensalão", os "aloprados", a crise que envolveu o senador Renan Calheiros terão efeitos lá no futuro, pode registrar. É como um fumante inveterado – pode parar de fumar, mas o mal que já foi feito é irreparável.

PB Parecem acentuar-se as diferenças entre dois Brasis – uma oposição mais nítida do tipo norte-sul. Ou, antes, nordeste-sudeste, já que a base eleitoral de Lula é essencialmente nordestina. Como vê esse problema?
Villa – O discurso dos dois Brasis tende a ser recuperado nas eleições de 2010. Vai haver candidato se autoproclamando representante do nordeste, em oposição "aos paulistas". Por outro lado, vão tachar um ou outro de "paulista" ou "sulista". Para o país isso é péssimo, mas temos políticos que sempre privilegiaram seus projetos pessoais em detrimento de qualquer interesse nacional.
Efetivamente, Lula tem larga influência no nordeste, em especial no sertão, graças ao Bolsa Família. Vai chegar um momento em que ficará evidente que esse programa não abre caminho para nada, a não ser para a manutenção do assistencialismo. Digo isso porque estudo a região, e no semi-árido não há qualquer atividade econômica relevante. As pequenas cidades vivem da aposentadoria rural e do Bolsa Família. E só. Isso quando o governo tem nas mãos o BNB [Banco do Nordeste], a Sudene [Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste], a cuja recriação sou, aliás, contrário, a Embrapa [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária], a Codevasf [Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba], a Chesf [Companhia Hidro Elétrica do São Francisco], o Dnocs [Departamento Nacional de Obras contra as Secas], o BB [Banco do Brasil], a CEF [Caixa Econômica Federal], mas sem nenhuma integração para que atuem organizadamente na região.

PBComo vê a aliança ideológica Chávez-Morales-Lula em relação ao futuro do Brasil e da América Latina?
Villa – Chávez veste um figurino típico do caudilhismo latino-americano. Não é de esquerda ou direita: é um tirano sem ideologia clara e que só pensa em manter seu poder pessoal, asfixiando homeopaticamente todas as formas de oposição, reais ou imaginárias. E só sairá do poder por uma rebelião popular, após um conjunto de manifestações e muita pressão, ou por golpe militar. Isso depois de alguma crise econômica, acusações de corrupção e muito culto da personalidade (logo começará também a mudar nomes de cidades – já trocou o do país e até alterou a hora).
Lula, que não é bobo, sabe que uma aliança mais estreita com Chávez é um barco furado. Porém, sente que pode ser um bom negócio, no sentido comercial, ter a Venezuela no Mercosul. O bloco estava minado por críticas da Argentina, com o Uruguai querendo sair e se alinhar com os Estados Unidos via um tratado comercial bilateral, e brigando com a Argentina por causa das "papeleras". E o Paraguai vive reclamando e terá eleições presidenciais com uma polarização entre o monsenhor Lugo e o general Oviedo. Resumindo: a relação com a Venezuela vai ter muitas idas e vindas até 2010. Depois, caso eleito um candidato de oposição aqui, pois lá Chávez vai ser presidente por vários lustros, a política externa e comercial deve mudar, mas nada que altere profundamente as relações econômicas já estabelecidas. Cumpre não esquecer a loucura que será a construção do gasoduto e os sérios problemas ambientais decorrentes.

PB Existe algum sentido em insistir ainda hoje na dicotomia esquerda-direita ou há necessidade de ampliar a visão política para uma inserção plena na política mundial? Como fica a utopia no mundo globalizado?
Villa – Continuamos a ter direita, centro e esquerda. Esse balizamento clássico se mantém. No Brasil, o grande desafio é ter um governo de centro-esquerda com tinturas de socialdemocracia no sentido europeu, moderno e ousado. Tivemos governos de direita, centro-direita e centro, como o atual. Aqui ainda imaginamos que assistencialismo é programa gerador de renda...
Acredito na utopia. Creio em um país desenvolvido, que cresça de forma sustentada, com um projeto nacional de longo prazo que melhore as condições de vida da população, no combate à corrupção e na moralidade pública. Não acho que isso é irrealizável. Depende do funcionamento das instituições. Depende de todos nós. 

 

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