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Um palco e uma vida

O Festival Sesc de Teatro da Terceira Idade, realizado em São Carlos, revelou talentos, provocou emoções e mostrou que o idoso está mais ligado às artes do que se possa imaginar

De 3 a 8 de agosto, a unidade do Sesc São Carlos se viu tomada por cerca de 550 animados idosos que estavam lá para se tornarem, literalmente, o centro das atenções. E eles não deixaram por menos. Ocuparam as mesas da Área de Convivência da unidade, formaram a platéia dos espetáculos e oficinas que lá aconteceram e, principalmente, dominaram o palco para participar do Festival Sesc de Teatro da Terceira Idade. Nessa cidade do interior paulista, os idosos foram atores e espectadores da própria integração social. O evento teve como principal objetivo valorizar e incentivar atividades criativas e, é claro, ajudar a derrubar o preconceito que ainda vigora muito arraigado. Ao conceber um festival voltado para a terceira idade, o Sesc propiciou a milhares de idosos agir. "As pessoas tendem a pensar que a terceira idade é um momento da vida que se constitui em um tempo de inutilidade, incompetência e vazio", comenta Marcelo Antônio Salgado, gerente de Estudos e Programas da Terceira Idade do Sesc. "Não se pode categorizar um grupo de pessoas enquanto esse grupo está estigmatizado". Marcelo explica que, dentro das atividades voltadas a esse público realizadas pela instituição, o teatro é uma das que melhor chama a atenção da sociedade na tentativa de mudar essa visão. "A importância de um evento como esse festival se ressalta sobretudo pelo fato de que 1999 foi instituído pela ONU o ano internacional do idoso. Um momento no qual o mundo inteiro faz questão de tornar as contribuições e as necessidades do idoso uma realidade". Ainda segundo o gerente, que atua junto ao público de terceira idade há trinta anos, quando se reúne um grande número de profissionais ligados a teatro para um festival dessa natureza, "cada pessoa envolvida se torna um portador da mensagem".

José Carlos Ferrigno, gerontólogo e assistente da Gerência de Estudos e Programas da Terceira Idade do Sesc São Paulo, a Geti, ressalta o caráter pioneiro do evento: "Já há pequenas outras mostras de teatro feitas pela terceira idade. Mas com esse tamanho e número de espetáculos é a primeira vez". Com uma experiência de dezoito anos, José Carlos acredita que esse evento é um acontecimento inédito na história social para idosos no Brasil. As peças apresentadas são amadoras, e foi justamente esse o intuito da entidade ao organizar o festival. Não houve, em momento algum, a pretensão de que os participantes se tornassem profissionais um dia, embora a idéia agrade a muitos deles. O objetivo é promover a participação social das pessoas idosas, como ele mesmo disse, "criar oportunidades para que elas desenvolvam outras formas de expressão, de idéias e de sentimentos".

O público da terceira idade, em virtude de vários fatores, tem uma carência que ultrapassa as deficiências financeiras. Segundo Ferrigno, trata-se de uma carência social e afetiva que, através do teatro, pode ser substituída por uma saudável sociabilização. Em todas as atividades para a terceira idade desenvolvidas nas unidades do Sesc, os freqüentadores se encontram, fazem novas amizades, entram em contato com outras gerações e, o mais importante, saem mais de casa, o que as faz sentirem-se mais úteis e ativas.

Os Espetáculos

Nesse sentido, uma ótima oportunidade para respirar novos ares e passar momentos emocionantes foram os seis dias nos quais ocorreram as peças e as oficinas do festival em São Carlos. O evento começou com a recepção dos grupos no dia 3, início da tarde. Em seguida, na Área de Convivência da unidade, o grupo de Ribeirão Preto trouxe as cores e a ludicidade da Commedia Dell’Arte, originária da Itália, e apresentou o espetáculo Animação do Fora do Sério. Às 15h foi a vez de Mário Lago entrar em cena com seus Causos e Canções. Num cenário que recriava o clima dos antigos cafés cariocas, o ator de 87 anos relembrou fatos, parceiros e amigos que conheceu ao longo da vida. Com muito humor e sem nostalgia, o espetáculo abriu com chave de ouro o festival com noventa minutos de muito riso, poesia e emoção.

As presenças ilustres de Mário Lago e Bibi Ferreira, que encerrou o festival, vieram somar experiências de uma vida bem vivida e prestigiar os participantes amadores na arte teatral. "Na nossa cabeça, o festival não deveria ser apenas uma vitrine de trabalhos em desenvolvimento", explica José Saffioti Filho, assistente técnico da unidade de São Carlos, um dos organizadores da mostra. "O evento deveria ter também momentos de reflexão, aprendizado e troca de experiências. Quando pessoas como Lago e Bibi se apresentam aqui, com seu testemunho de vida e qualidade de suas obras, estamos dignificando nosso próprio trabalho."

Os dias que se seguiram trouxeram diferentes interpretações de textos, que iam de Machado de Assis a Monteiro Lobato, mostrando resultados de diversos processos de criação. "Tivemos trabalhos da mais alta categoria do ponto de vista artístico", avalia Saffioti. "Dentro da proposta amadora, afinal ninguém aqui é profissional, com a humildade e as condições às vezes precárias de alguns grupos, tivemos grandes revelações de atores, histórias e direção. Algumas peças, inclusive, foram resultado de sensacionais trabalhos de pesquisa."

Os assuntos abordados em cena não se restringiram apenas a questões referentes ao universo do idoso, mesmo porque o universo do idoso é, na verdade, o de todos nós. Uma sociedade complicada na qual temos de lidar com a violência, a injustiça social, o preconceito e a Aids. Esses aspectos da existência humana foram levados ao palco com uma dramaticidade emocionante e, algumas vezes, um realismo chocante. "A surpresa foi geral", resume o organizador. "Houve peças com mensagens para idosos, outras voltadas para as crianças e espetáculos para o público em geral." Na platéia, integrantes de outros grupos dividiram espaço com crianças, jovens, alguns familiares e até profissionais da área, como foi o caso do cenógrafo J. C. Serroni que, a convite do Sesc, assistiu às peças. O cenógrafo chamou a atenção para a simplicidade tocante com a qual alguns grupos apresentaram seus espetáculos. "O teatro é assim", resume. "Não necessita de parafernálias. Acho que as soluções apresentadas aqui emocionaram em muitos momentos." No entanto, a simplicidade também cedeu espaço à suntuosidade e até à polêmica. Foi o caso do grupo de teatro da terceira idade de Santos, que marcou presença com uma peça impressionante devido à riqueza do figurino, à expressividade dos atores e à controvérsia do tema. Nossa História é Assim, um roteiro baseado nos textos do escritor Raul Bopp, equacionou religião e preconceito, racismo e hipocrisia, usou sangue, hóstia e humor. No palco, três bruxas representavam a Terra. Logo em seguida, numa espécie de andaime que lembra uma carruagem, um rei e uma rainha chegavam a um território recém-conquistado. "Vamos para as Índias", gritava o capitão do navio. A cada troca de cena, duas impagáveis faxineiras "limpavam" a sujeira deixada. Limparam a terra espalhada pelo lavrador, lavaram o tablado sujo pelo "sangue" do índio e saíam cada vez mais cansadas, aos xingos. A reação da platéia? Silêncio e reflexão, sem falsos moralismos, como alguns insistem em esperar dos mais velhos. "O grupo de Santos teve apenas quatro meses para se preparar para o festival e apresentou um trabalho completamente desestabilizador e polêmico", comenta Saffioti. "Ou seja, esse festival teve até polêmica!"

O Dia-a-Dia dos Grupos

Os ônibus vindos de outras cidades do interior e de algumas unidades da capital de São Paulo causavam uma certa comoção especial em frente à unidade de São Carlos. Os integrantes dos grupos participantes do festival estavam animadíssimos e não queriam perder um só detalhe dos acontecimentos. Na fila de uma das peças, uma simpática senhora elogiava o espetáculo apresentado pelo grupo do Sesc Santos, enquanto uma outra parabenizava uma colega do Sesc Pinheiros e um senhor era lembrado pela mímica que fez no palco em sua apresentação junto ao grupo de Ribeirão Preto no espetáculo Animação do Fora do Sério. Marcelo Salgado avalia a animação e a energia dos idosos como uma resposta ao reconhecimento recebido pela oportunidade de mostrar que ainda são capazes de colaborar muito com o crescimento da sociedade. "Essa animação é uma realidade em tudo o que eles fazem. Eles se envolvem emocionalmente com seus projetos". Esse é o caso de dona Zulmira, de 72 anos, que faz parte do grupo de terceira idade do Sesc Pompéia. Comunicativa como ela só, não se apresentou em nenhum espetáculo, mas fez questão de vir conferir o que era levado aos palcos de São Carlos. Freqüentadora do Sesc há 46 anos, dona Zulmira, agora viúva, diz que "não pára em casa". E mais, namora há um tempão. "Todo mundo namora no Sesc", conta se referindo aos colegas de unidade antes solitários. "Há um senhor de 80 anos, amigo meu, que também namora", revela, satisfeita com a delação. Já dona Elza Garcia, de Catanduva, freqüenta o Sesc apenas há quatro anos, mas já tem sua turma, com a qual, inclusive, apresentou a peça Pó de Pirlimpimpim, baseada na obra de Monteiro Lobato. Ainda sob o fascínio de ter vivido Dona Benta, Elza contou que nunca pensou em fazer teatro mas que, agora que tinha experimentado, sente-se profundamente entediada nos dias em que não há ensaio. Plano para se tornar profissional? "Planos, não. Mas se pintar, eu topo", garantiu.

Para encerrar em grande estilo e consolidar o sucesso do Festival Sesc de Teatro da Terceira Idade, a grande dama dos palcos, Bibi Ferreira, encantou a todos com o espetáculo Piaf. Uma apresentação dramático-musical na qual a atriz traz de volta o glamour e o talento de outro grande nome do mundo das artes, a cantora francesa Edith Piaf. Foi um êxito absoluto.

Para Sérgio Lago, gerente do Sesc São Carlos, muito embora a unidade já esteja acostumada a trazer à cidade eventos que "fogem ao tradicional do interior", o porte e o sucesso do festival são inegáveis. "É uma alegria para todos nós do Sesc."

Grupos Participantes

O Festival Sesc de Teatro da Terceira Idade mobilizou grupos de teatro de todo o país. Foram 30 grupos, dos quais 26 eram do estado de São Paulo e os demais de Novo Hamburgo, Rio Grande do Sul; Fortaleza, Ceará; Lages, Santa Catarina; e Salvador, Bahia. Abaixo, a lista de todos os grupos que ajudaram a fazer do festival um sucesso:

• Associação de Teatro Piracema, Pirassununga, SP
• Companhia de Teatro da Terceira Idade, Vinhedo, SP
• Companhia de Teatro Fênix, Sesc Carmo, SP
• Delirum Teatro de Dança, São Simão, SP
• Grupo Alegria de Viver, Sesc Taubaté, SP
• Grupo Antes Arte do que Tarde (Sesi), Araraquara, SP
• Grupo Antes Tarde do que Nunca, Sesc Campinas, SP
• Grupo Coará, Sesc Piracicaba, SP
• Grupo de Teatro, Sesc Pinheiros, SP
• Grupo de Teatro da Terceira Idade, Sesc São Carlos, SP
• Grupo de Teatro da Terceira Idade Renascer, Novo Hamburgo, RS
• Grupo de Teatro Sesc Consolação, São Paulo, SP
• Grupo FATI da Universidade São Judas Tadeu, São Paulo, SP
• Grupo Faz de Conta, Sesc Araraquara, SP
• Grupo Fazendo Arte, Sesc São José dos Campos, SP
• Grupo Idade Luz, Sesc Sorocaba, SP
• Grupo Mímicos do Ipiranga, Sesc Ipiranga, SP
• Grupo o Theatro Musical da Terceira Idade, Valinhos, SP
• Grupo Oficina de Teatro Físico, Sesc Santos, SP
• Grupo Provocando a Realidade, Sesc Catanduva, SP
• Grupo Real-Idade, Sesc Pompéia, SP
• Grupo Renascer, Sesc Birigüi, SP
• Grupo Teatral Magia, Sesc Bauru, SP
• Grupo Teatral Vida, Sesc Lages, SC
• Grupo Teatro dos Habilidosos, Sesc Ribeirão Preto, SP
• Grupo Velho é a Vovozinha, Sesc São José do Rio Preto, SP
• Grupo Vida Nova, Artur Nogueira, SP
• Grupo Viver Bem a Idade Que Tem, São Bernardo do Campo, SP
• Teatro de Animação da Terceira Idade, Sesc Nazaré, Salvador, BA
• Grupo de Teatro do Sesc Fortaleza, CE

A Família do Artista

Imagine que em uma bela tarde você chega em casa e seu avô não está no cantinho dele vendo televisão. "Mãe, cadê o vô?" "Está ensaiando para a peça que irá apresentar daqui a uma semana", responde a mãe. Como a família reage a essa mudança de um idoso que passa a ser mais requisitado fora de casa do que pelos filhos que gostariam que ele cuidasse dos netos num sábado à noite? Ferrigno responde: "Os idosos são pessoas que durante muito tempo permaneceram em suas casas totalmente disponíveis para cuidar dos netos ou ajudar a filha nos afazeres domésticos. Notamos que muitas famílias têm sua posição invertida. Ou seja, se antes insistiam para que os idosos saíssem mais de casa, hoje ficam um pouco incomodados com a agenda cheia deles". Em lugares como o Sesc, por exemplo, a terceira idade encontra atividades para todos os gostos e todos os dias da semana. Não é raro encontrar pessoas que segunda-feira têm ginástica; terça, oficina de cerâmica; quarta, viagem com os amigos; quinta, um baile imperdível e, talvez, na sexta sobre um tempinho. "Passa a haver uma negociação entre a família e o idoso sobre a sua disponibilidade para cuidados com os netos e outras tarefas domésticas", analisa o técnico. Porém, com o tempo, os familiares vão se adaptando a essa nova realidade e, além de respeitar o fato de o idoso ter tomado o controle de sua vida, vão desenvolvendo um sentimento de admiração. "Além disso, a pessoa de terceira idade fica menos implicante, deixa os filhos e netos viverem a própria vida, torna-se menos ociosa, mais satisfeita consigo mesma e isso resulta numa melhoria do relacionamento", conclui Ferrigno.

Workshops, Vivências e Depoimentos

Durante todos os dias do evento, com exceção do dia de abertura, foram realizadas, pela manhã, atividades que complementaram o festival expondo os bastidores do fazer teatral. Foram discutidas técnicas de estudo de personagens, direção, interpretação, cenografia e figurinos em workshops que funcionaram como verdadeiros cursos dinâmicos de teatro. Nas vivências, o trabalho com o corpo foi explorado através de aulas de expressão corporal, a gesticulação, além do uso da voz e de mímicas. As oficinas e vivências foram coordenadas pelos mais gabaritados profissionais da área que, com seus ensinamentos, enriqueceram ainda mais o aspecto informal/didático do festival. Já nos depoimentos, momento de grande troca de experiências, os convidados eram mais que especiais. Grandes nomes do teatro brasileiro e que são prova viva de que o vigor da juventude está mais na arte que na idade marcaram presença. Entre eles, Sérgio Mamberti, Celso Frateschi, Carlos Alberto Sofredini, Jairo Mattos, J. C. Serroni, Hugo Possolo, Eudósia Acuña, Fernando Vieira, Ariclê Perez, Gianni Ratto e Esther Góes.