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Entrevista
Manuel Alceu A. Ferreira

Titular de uma das bancas de advocacia mais renomadas do país, o professor Manuel Alceu Affonso Ferreira conhece de perto o problema da violência. Como ex-Secretário de Justiça do Estado de São Paulo do governo Fleury, teve oportunidade de acompanhar de perto os problemas latentes que ainda hoje assolam a sociedade paulista: violência, crimes hediondos, rebelião de presos. O doutor Manuel Alceu se mostra convencido da necessidade de tomar providências imediatas no campo da segurança pública, não só em São Paulo, como no Brasil. Ele defende a redução de idade, de 18 para 16 anos, para a responsabilidade criminal. "Por que se pode votar aos 16 anos e não se pode responder diante da justiça por crimes cometidos", questiona. Para o problema carcerário, evoca alguns exemplos de países desenvolvidos, onde também há o nó da superpopulação carcerária, e propõe que as prisões passem a receber condenados apenas por crimes contra a pessoa, como homicídios e estupros. Outros tipos de infrações, como roubos, seriam punidos fora das grades. Manuel Alceu cita ainda um dado alarmante: milhares de mandados de prisão não são levados a cabo pela polícia. Por quê? Não haveria lugar físico para colocar todos os criminosos.

Houve, recentemente, mais uma rebelião na Febem. O que está errado nessa situação toda no que diz respeito à relação do Estado com a criminalidade adolescente/infantil?

Em primeiro lugar, o que eu acho que está errado é que essa relação do Estado com o menor interfere num fator falso: a adoção da maioridade penal somente aos 18 anos. A criminalidade hoje é partilhada por quem está muito abaixo dessa idade. Você vê exemplos mundiais de crianças de treze e quatorze anos, na Inglaterra ou nos EUA, que são os cúmulos. Se nós estamos lidando com o efeito da miséria, do desequilíbrio social, da má distribuição de renda etc., é preciso teorizar o realismo em relação a isso. E uma visão realista não pode mais permitir que os infratores infantis sejam tratados diferentemente daqueles que têm mais de dezoito anos.

O senhor é a favor de reduzir essa pena para qual idade?

Eu diria que uma idade razoável seria a partir dos quinze ou dezesseis anos, pois não há investimento num estabelecimento prisional para menores. Em função disso, esses infratores ficam lá somente reunidos. É preciso que se diga que a revolta da Febem ocorreu num pavilhão determinado, que reunia os menores considerados mais perigosos.

A que o senhor credita o aumento de violência entre essa faixa etária? À miséria?

Antigamente, eu acreditava muito que a miséria fosse o principal fator. Mas hoje, com os discursos que vejo, começo a reavaliar esse pensamento. Ainda outro dia, eu verificava estatísticas que mostravam que o maior número de menores infratores que realizam assaltos provém da classe média. Há países onde o índice de criminalidade é muito reduzido e, no entanto, são lugares que vivem em uma pobreza impressionante, como o Paquistão, por exemplo.

Mas no caso de São Paulo há bairros distantes, como Jardim Ângela, onde as estatísticas mostram que há mais mortes que em Kosovo, por exemplo.

Sim, mas esses são crimes determinados. Morre mais gente pelo embate de homicídios e não pelo embate do assalto. Existem vários "Jardins Ângela" em São Paulo. Existem vários bairros com a mesma densidade populacional, com a mesma miséria e que não têm o mesmo número de crimes ocorridos. Eu acho basicamente que a grande responsável pela criminalidade é a consciência de impunidade. No Brasil, a prática do crime não leva sempre, aliás leva raramente, a um resultado punitivo.

Por que?

Porque não há e nem tem havido punição. O pessoal não tem medo. Eu fico revoltado quando ouço dizerem que o brasileiro não é civilizado, que ele joga papel na rua e essas coisas. No caso dos europeus e americanos, existe a consciência de que haverá punição se ele transgredir a regra.

Existe algum caso semelhante no mundo onde se usa a expressão "a Lei não pega"?

Existe. O Haroldo Valadão, um jurista carioca, dizia que a lei tinha sido revogada pelo desuso. Eu me lembro de quando o Código de Defesa do Consumidor entrou em vigor. Na época, havia o senso geral de que era uma lei feita para a Suíça. Ou seja, uma lei feita para um país muito avançado. Dizia-se que essa lei não pegaria no Brasil. No entanto, o Código é a primeira lei ordinária votada depois da constituição e, hoje, está em absoluto vigor. O Brasil não é mais o lugar do "a Lei não pega". Isso está mudando. É a consciência de cidadania que a população vai adquirindo.

Voltando à questão do menor. Caso se reduzisse a idade de punição de 18 para 16 anos, qual seria o impacto sobre o atual volume de criminalidade?

O impacto intimidativo seria grande. Se você responsabilizar o cidadão jovem de 16 anos, ele passa a ter mais medo porque sabe que não terá um tratamento privilegiado. Até porque eu não vejo como o mesmo sistema jurídico pode possibilitar ao jovem de 16 anos escolher o presidente da República e não lhe conferir uma responsabilidade criminal harmônica e congruente. O grande efeito, a meu ver, será o intimidativo: os menores de 18, que formam a grande parte dos infratores, vão passar a ter medo.

Há também o fato de que as penas no Brasil são pequenas. Por exemplo, uma pessoa comete um crime terrível e é condenada a 25 anos. Sempre tem um acordo de bom comportamento e o criminoso acaba saindo em tempo menor.

Isso é verdade. No Brasil, o sistema de repressão penal lida com a realidade de insuficientes estabelecimentos prisionais. Essa é uma realidade do Brasil. Calcular que um presídio custe algo em torno de 20 milhões de dólares para abrigar 500 pessoas, o número recomendado pela ONU, leva à avaliação da dificuldade que mesmo os estados mais ricos têm para conseguir manter preso todo mundo que tenha sido condenado à prisão. Só para fornecer um dado que impressiona: São Paulo tinha, na época em que eu era Secretário de Justiça, 167 mil mandados de prisão não cumpridos. E que não poderiam ser cumpridos, porque se o fossem não haveria onde colocar as pessoas. Não havia prisões suficientes. O que eu acho errado no Brasil é jogar na cadeia pessoas que não oferecem o menor risco à integridade física alheia estando nas ruas. Oferecem risco à integridade patrimonial, mas não à física. Seriam eles os estelionatários, os golpistas etc.

A progressiva diminuição das penas acaba estimulando a violência...

Claro. Agora, por que o sistema jurídico criou esses esquemas de redução? Porque ele estava lidando com um fato: a superpopulação carcerária. Você não consegue lidar com isso. Manter presos nas cadeias das delegacias de polícia, ou seja, próximos da população, é um absurdo.

Quando o senhor foi Secretário de Justiça, nós tínhamos um determinado volume de crimes no estado. De lá para cá, a coisa aumentou barbaramente. Tanto que o grande calcanhar de Aquiles do governador Covas seria a questão da segurança. O senhor acha que no caso da segurança há falta de pulso do Secretário José Afonso? Ou há motivos econômicos que atraíram pessoas que estavam fora de São Paulo?

Certamente o crescimento populacional ajudou no aumento da criminalidade. Acredito que as excelentes intenções que possam ter os Secretários de Segurança não escondem ou afastam uma providência elementar quando se fala em segurança pública: a polícia na rua. A grande polícia é a preventiva, fardada e ostensiva. É preciso deixar a questão das investigação para a polícia civil. Eu não estou vendo a polícia na rua como via há alguns anos. O dr. José Afonso é um notável professor de Direito, um homem digno do meu maior respeito, mas foi lidar com uma estrutura complicada, com duas corporações diferentes. Certamente encontrou muitas dificuldades inclusive burocráticas. Eu não digo que o governador Covas seja um homem despreocupado com a segurança pública. Ao contrário. O investimento feito em aparelhamento e equipamentos para a polícia militar tem sido muito grande. É ótimo que exista uma auditoria da polícia para apurar os abusos cometidos pelos policiais e que se ensine os direitos humanos nas academias de polícia. Hoje em dia, quando me aproximo de um sinal de trânsito e vejo algum carro de polícia, tenho uma sensação de alegria.

Existem pontos em São Paulo conhecidos pela, digamos, especialidade dos roubos. Por exemplo na esquina da Rebouças com a Faria Lima, rouba-se muito Rolex e assim por diante. Há casos de a pessoa ser assaltada mais de uma vez pelo mesmo ladrão no mesmo lugar. A população sabe disso, a imprensa noticia isso. Então, o que acontece?

Há, evidente, uma falha imensa da polícia nisso e por dois motivos: uma porque a polícia deveria estar presente nas regiões já visadas para desestimular os assaltos. Depois, deveria ter suficiente capacidade de investigação para que quando houvesse o primeiro assalto, o assaltante pudesse ser localizado e indiciado. O sistema judiciário deveria ter agilidade suficiente para condenar essa pessoa em curto espaço de tempo e observar tudo o que deveria ser observado. Todos nós vivemos muito a violência. Tudo isso faz com que hoje eu tenha medo de enfrentar essa cidade. Atrás da violência existem causas sociais, como a má distribuição de renda. Mas não temos tempo para resolver essas causas e, enquanto isso, deixamos que a criminalidade avance.

Onde estão os policiais, então?

Essa é a grande pergunta. No serviço burocrático? Eu não sei. A corporação tem 80 ou 90 mil homens, onde está esse pessoal?

Como coibir a corrupção policial?

O problema da corrupção policial não é diferente do problema da corrupção em geral. Só existe o corrupto porque existe o corruptor que, por sua vez, só existe porque acha que ou vai ganhar a vantagem lícita ou a ilícita. Para destruí-la é preciso atacar não só o corrupto mas principalmente o corruptor. Evidentemente, o salário dos policias está muito amarrado a esse problema da corrupção. Não é razoável imaginar que um policial possa ganhar R$600 por mês. Não é razoável imaginar alguém que arrisque a vida pela sociedade por esse salário de fome. Porém, sinto que o Brasil está mudando e vai mudar também em matéria de corrupção policial. As pessoas começam a se conscientizar de que vale a pena denunciar.

Do ponto de vista dos governantes, o senhor não sente que falta uma certa vontade política para melhorar a situação?

Eu acho que o Governo está concentrado nas grandes reformas, como a judiciária e a previdenciária. E vem governando por medidas provisórias. Eu noto que em matéria de Direito há falta de vontade política. Ela existe apenas em casos absolutamente necessários, como foi o da CPI do Judiciário. Contudo, a vontade política não impede que a CPI do Judiciário tenha o sabor politiqueiro e eleitoral. Há falta de coragem política. É preciso enfrentar o problema com uma política nacional de combate à criminalidade e sem medo de ser chamado de reacionário, de atrasado, de conservador.

O que o senhor acha da lei do fechamento dos bares à uma da madrugada em São Paulo?

Não acho que resolva. Acho que crime não tem hora. Essa lei veio para ocupar espaço nos jornais, para dar prestígio a seus autores etc. Isso não terá absolutamente nenhum efeito prático em termos de queda de criminalidade.

O nosso sistema eleitoral faz com que a população acabe elegendo parlamentares que não têm condições de administrar nem o próprio nariz. Por outro lado, personalidades que poderiam se envolver com a política se eximem dela. Com isso, abre-se espaço para que o oportunismo de plantão tenha uma janela para agir. O senhor concorda com isso?

Mais uma vez nós estamos dentro de um círculo vicioso. As pessoas de bem não querem entrar na política para não se sujarem e a política se ressente da falta dessas pessoas. A democracia é um processo de aperfeiçoamento contínuo. Ou seja, aprende-se com cada eleição, com cada derrota, com cada malogro, com cada desesperança e desencanto. Há uma idéia que me agrada que é a do voto de destituição. Da mesma maneira que pode eleger alguém, você poderia deseleger. Destituir aquele que estivesse desempenhando mal seu mandato. Acho que hoje já se vota melhor que ontem. Eu vejo o pessoal que trabalha comigo (boy, cozinheiras), eles têm mais consciência eleitoral hoje, até pelo aperfeiçoamento da comunicação, do que tinham antigamente. Mas, em todo o caso, será preciso que o povo adquira consciência e ele só vai conseguir através da educação e eu me refiro à comunicação. Quando Castelo Branco assumiu o poder no país, teve um ministério da mais alta respeitabilidade. Tinha gente realmente culta exercendo. No entanto, dali a pouco a política tomou conta. Tomaram conta interesses menores, rasteiros. A participação das elites intelectuais no governo do país ou do estado depende do eleitorado. O eleitorado vai ter de demonstrar que quer gente boa, desprezando o politiqueiro tradicional. Eu aposto que a próxima eleição para a Câmara de Vereadores de São Paulo será uma eleição mais meditada do que foi.

É verdade que o senhor não aceitou o convite para ser Ministro da Justiça?

Eu diria que além de navegar mal no mundo político, eu tinha problemas pessoas envolvidos. Eu tenho o meu escritório, tenho pessoas que dependem de mim, tenho clientes, eu não posso largar todo mundo de repente. Além disso, eu sou um aficionado pela minha liberdade. E acredito que ela ficaria restrita e condicionada se eu aceitasse um cargo público. Eu já dei muito de mim aos interesses coletivos. Quando advogo, eu exerço a defesa das coisas em que acredito. Por tudo isso eu não quis aceitar o ministério.