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A travessia de João

Guimarães Rosa, nosso grande escritor, era um homem tímido e solitário, que tinha o "poder de ir até o rabo da palavra"

CECÍLIA PRADA

A morte de João Guimarães Rosa - em 19 de novembro de 1967 - privou a literatura brasileira da única real ocasião de ver atribuído a um de seus representantes o Prêmio Nobel. Naquele ano, Rosa estava no auge da consagração mundial. Acabara de representar o Brasil no I Congresso Latino-Americano de Escritores, realizado no México, no qual atuara como vice-presidente. As traduções de suas obras para as principais línguas - francês, inglês, espanhol, italiano e alemão - haviam espalhado sua fama de tal maneira que ensaístas estrangeiros vinham ao Brasil especialmente para estudá-lo. A nomeação para o Nobel, pela França, era o máximo da glória, que infelizmente o artista e o país não colheriam.

Outra glória, nacional e menor - embora também importante e revestida para o escritor de um significado até exagerado -, isto é, sua posse na Academia Brasileira de Letras, foi fator determinante para que o coração daquele emotivo, daquele ser estranho e raro, de sensibilidade extrema, deixasse de bater, apenas três dias depois da festa - cumprindo com requinte fatalístico uma premonição que ele próprio tinha. E que o fizera ir adiando sempre, desde que fora eleito em 1963, aquela cerimônia.

Rosa tinha 59 anos, e havia apenas dez anos conquistara enfim, depois da dedicação da vida toda, o reconhecimento. Seus livros, que, como acontece a todos os grandes criadores, contam-se nos dedos de uma só mão, conseguiram concentrar a expressividade máxima do seu talento, vertendo numa linguagem nova, revolucionária, a essência da brasilidade, a transfiguração do regional no universal, empurrando os limites do seu sertão, dotando-o de abrangência espiritual/intelectual para que nele se situasse a grande odisséia metafísica do homem - sua travessia.

Tardes no Itamaraty

Existiriam dois Guimarães Rosa? É a pergunta que se faz quando se confronta a figura do diplomata sorridente, simpático e refinado, com tudo o que se sabe dele hoje como escritor: a força, o ímpeto narrativo, a grandeza e o vigor dos temas e dos personagens.

No Itamaraty, o escritor ia levando aqueles anos longe de toda agitação social, empenhado no trabalho literário, numa das divisões daquela casa que definiria como "o meu Itamaraty, mansão de equilíbrio e mourejo, fiel e febril, muito mais do que fora se crê". Alto e corpulento, com cabeça e pés que pareciam pequenos em comparação com o resto do corpo, caminhava de maneira muito característica, como se escorregasse, silenciosamente. Como se não lhe agradasse fazer-se notar. Mas a gravata-borboleta anacrônica que usava sempre era uma espécie de signo característico, sublinhando o rosto afável. Havia nele um jeito de observador permanente da vida - e assim se confessava, curioso de tudo e de todos. Mas de uma curiosidade benévola, uma ingênua curiosidade de rapazinho, parecia - melhor, de artista.

A identificação com o personagem Miguilim, de um de seus contos, ocorria - aquele menino míope que um dia, quando lhe dão óculos, descobre repentinamente o mundo e, para compensar a visão até então vaga e esfumada que tinha das coisas, começa a ver demais, a ver até mesmo aquilo que os outros não vêem.

Todas as tardes Rosa vinha tomar o lanche do meio da tarde no restaurante do Itamaraty. Gostava de sentar-se com as datilógrafas, com os funcionários menores do ministério, ou com os jovens alunos do Instituto Rio Branco. À mesa de "João" (queria ser chamado assim), nunca se falou de literatura, nem de temas importantes - era a riqueza do cotidiano, a linguagem solta das pequenas histórias, que lhe interessava. Parecia tomar notas mentalmente, de tudo. Pontuava a conversação, ou contava também historinhas de "uma pessoa que conheci em Minas". Quem participava dessas conversas pôde reconhecer mais tarde, nos seus grandes livros, essas mesmas pessoas que eram entregues ali, servidas ao café e ao sabor da conversação daquele grande contador de casos.

O tema da morte o fascinava. "As pessoas não morrem, ficam encantadas", dizia. Ele contava alguma "bela morte" a que assistira nos seus tempos de médico, antes da entrada na carreira diplomática. Era muito religioso, um espiritualista, mas de maneira poética, personalizada, como testemunhariam seus grandes amigos, Augusto Meyer, Afonso Arinos. Meyer dava-o como "homem que ao deitar-se rezava sempre o seu rosário". Afonso Arinos diz: "Era profundamente religioso e tinha o apoio maior da fé católica, mas sofria a influência considerável de todas as religiões espiritualistas e das crenças orientais".

Segundo testemunho de sua mulher, Aracy, escreveu Grande sertão: Veredas de uma só vez, em noites sucessivas, como num transe, transpirando muito e arrancando o pijama para trocá-lo por outro, dizendo que se sentia "tomado por um espírito" - talvez a necessidade inadiável de expressão experimentada por todo grande escritor.

Como intelectual, ia pois contra a corrente do seu tempo, o seco materialismo realista que predominou em nossa literatura a partir dos anos 30. Basta ver no seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, "O verbo e o logos", que ele não hesita em recorrer à astrologia para explicar traços de caráter do seu predecessor na cadeira, João Neves da Fontoura: "Seu era o signo do Escorpião, sob cujo influxo hoje transpiramos, campo de força de Marte... O sujeito do Escorpião desfaz no risco, não alui por temor nenhum, defende-se atacando, nutre-se do conflito, dele extrai renovada sustância ao contrário de despender energia nervosa, resiste até a morte".

E, defendendo o caráter supersticioso de João Neves, diz: "Supersticioso, sim; e claro. Superstição não preconceito, o ilusório; antes quase poesia. Percepção e arejo, defensivo psíquico automatismo, uma respiração cutânea do espírito, talvez. Soubesse que poesia é remédio contra sufocação".

A solidão do artista

Extremamente tímido e sensível às críticas, descrevendo a si próprio como "lento e desacostumado mineiro capiau", Rosa fez a sua grande literatura naquelas condições de "exílio, silêncio e habilidade" que James Joyce definiu como parâmetros da criação literária. Uma solidão agravada pelo seu trabalho de diplomata, pelas ausências repetidas do país e pela própria natureza de uma obra que o fazia apartado da vida literária comum, privado do sucesso imediato, entregue de maneira obsessiva ao trabalho de pesquisa e de inventividade lingüística e formal, que o fez caminhar, ao longo de 30 anos, da expressão lógica, clássica, de seus primeiros escritos à magia das grandes obras - que hoje o colocam no mesmo nível dos maiores criadores, como Joyce, Cervantes, Dante, Thomas Mann, Camões.

Na Editora José Olympio, anos mais tarde, falava-se do sofrimento imenso que provava quando alguém recusava a publicação de um conto seu: "Quase chorava. Depois se afastava, mantinha-se distante às vezes anos a fio". Sabe-se como o fato de ter perdido em 1938 para o escritor Luís Jardim o prêmio do concurso Humberto de Campos, da própria José Olympio, o abalou - foi de Graciliano Ramos o voto contrário, decisivo por acarretar outros incertos, estabelecendo polêmica acirrada. Mestre Graça achava a arte de Rosa "extremamente difícil" - como confessou anos mais tarde, com remorso.

Naquele ano de 1956 em que Corpo de baile apareceu em janeiro e Grande sertão: Veredas em maio, a grande sensibilidade do escritor estava posta à prova máxima. Porque a recepção aos seus livros dividia-se em extremos: os que detestavam seu estilo e o ridicularizavam, como hermético e maneirista; e os que, felizmente mais numerosos e que acabaram por se impor, reconheciam já a excepcionalidade do seu gênio. Mas enquanto os críticos, aturdidos, hesitavam, seus livros ganhavam o público, os grandes prêmios se enfileiravam, a fama internacional se firmava. Onze anos mais tarde, ao recebê-lo na Academia, Afonso Arinos compararia a literatura de Rosa à moderna arquitetura brasileira, que havia permitido "a maior aventura da liberdade formal do mundo moderno, que é Brasília". E diria: "Despertastes as inusitadas palavras que dormiam no mundo das possibilidades imaturas. Fizestes com elas o que Lúcio Costa e Oscar Niemeyer fizeram com as linhas e os volumes inexistentes: uma construção para o mundo, no meio do Brasil... Vosso prestígio de escritor é, com efeito, hoje, como a arquitetura do planalto, uma das conquistas mundiais da cultura brasileira".

Mesmo com o estrondoso sucesso de suas obras e a fama que ia conquistando naquele ano de 1958, Rosa mantinha ainda aquela simplicidade de menino, aquela timidez surpreendente num ser que sempre teve a consciência da importância do que escrevia. Dois episódios podem testemunhar o feitio singular do escritor. Na ocasião em que foi promovido a ministro de primeira classe (embaixador), recusou os cumprimentos dizendo: "Veja só, me fizeram embaixador... Agora vou ter de sair daqui, escolher um posto. Tudo o que quero é ficar sossegado aqui, escrevendo minhas coisas".

Concederam-lhe o que ele queria - deram-lhe a chefia da Divisão de Fronteiras, onde permaneceu tranqüilo mas empenhado no cumprimento de suas funções. Basta ver a atuação que teve em 1965 em dois episódios que envolveram limites, o do pico da Neblina e o de Sete Quedas.

Reinaldo Jardim, que era o editor do famoso Suplemento Literário do "Jornal do Brasil", pediu-me que, como colega de carreira, conseguisse o que diziam ser impossível: uma entrevista com Guimarães Rosa. Ele me recebeu com a maior gentileza e a mais simpática recusa, curiosamente usando a terceira pessoa para falar de si próprio: "Mas, filhinha, Guimarães Rosa não dá entrevistas. Mas não se preocupe, Guimarães Rosa vai lhe indicar pessoas que falarão sobre ele, para você realizar o seu trabalho".

Indicou dois de seus grandes críticos, Manuel Cavalcanti Proença e Oswaldino Marques, a cujos depoimentos juntei o do poeta Alberto da Costa e Silva.

A forma impessoal usada por Guimarães Rosa para falar da sua obra deve ter desconcertado muita gente. Ele era de uma objetividade tal que podia recomendar a leitura de seus livros como fizera comigo mesma, anteriormente: "Ainda não leu Grande sertão? Mas deve ler, é um livro muito importante". Foi esse seu modo de ser, a convicção absoluta do que fazia, que levou Marques Rebelo - que por ele lutou no mencionado concurso de 1938 - a descrevê-lo como amável, sorridente, simpático e inteligentíssimo, "uma das criaturas que mais amava a si mesma".

Naquele encontro com o escritor, a maior surpresa me esperava no fim. Quando me despedia, ele me reteve um momento mais, para dizer, timidamente: "Escute... o seu jornal às vezes publica contos. Até faz uns concursos... Você acha que publicariam um conto meu? Penso às vezes em mandar algum, mas não sei..."Aquilo parecia até uma brincadeira, uma ironia de Rosa. Mas era tão sincero, tão tímido, aquele grande homem à minha frente, que só consegui balbuciar: "Mas, embaixador... o senhor... ora, imagine!", e coisas que tais. Trinta anos mais tarde, deixo aqui registrada minha emoção em recordá-lo, tão humano, tão forte e grande, e no entanto tão sensível e frágil.


Veredas do sertão rosiano

"O senhor tolere, isto é o sertão. O sertão está em toda a parte."

"Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem - ou é o homem arruinado ou o homem dos avessos."

"Surgiu o silêncio deles todos... - me enfezei. Ali naquel'horinha foi que eu lambi a idéia de como às vezes devia ser bom ter grande poder de mandar em todos, fazer a massa do mundo rodar e cumprir os desejos bons da gente."

"Lugar-sertão que se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive o seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade."

"Diadorim é minha neblina... Que vontade era de pôr meus dedos, de leve, de leve, nos meigos olhos dele, ocultando, para não ter de tolerar assim o chamado, até que ponto esses olhos, sempre havendo, aquela beleza verde, me adoecido, de tão impossível."

"Viver é muito perigoso... Porque aprender a viver é que é o viver mesmo... Travessia perigosa, mas é a da vida. Sertão que se alteia e abaixa... O mais difícil não é um ser bom e proceder honesto, dificultoso mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até o rabo da palavra."

"Sertão. Sabe o senhor: senhor é onde manda quem é forte, com as astúcias... sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar. Sertão é dentro da gente."

"Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia."

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