Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Órfãos de Betinho

Sem o carisma e a força da imagem de Herbert de Souza, campanha contra a fome ainda tem muito a realizar no país

Os números são da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO): no mundo inteiro, a vida de 840 milhões de pessoas está comprometida pela fome e pela desnutrição. Desse total, 200 milhões são crianças abaixo de 5 anos.
No Brasil, a realidade não é menos dramática. As estatísticas são contraditórias, mas hoje vivem abaixo da linha de pobreza milhões de brasileiros. Viver abaixo da linha de pobreza é uma forma excessivamente suave de dizer que essas pessoas não podem se alimentar regularmente e por conta disso contraem doenças que reduzem drasticamente sua expectativa de vida.
A causa da fome, pelo menos no Brasil, é reconhecidamente a péssima distribuição de renda. Um problema complexo, cuja solução depende de gigantescas reformas estruturais.
Mesmo, porém, com uma estrutura viciada, várias são as iniciativas que procuram minorar o drama dos famintos. O melhor exemplo é o movimento iniciado por Herbert de Souza, o Betinho, recentemente falecido, que deixou como herança uma verdadeira lição de cidadania.
A campanha de Betinho continua dando frutos, ao lado de outras iniciativas que registramos nesta matéria, todas sem dúvida ainda insuficientes para acabar com a desnutrição no país.
A própria FAO reconhece as dificuldades: na campanha iniciada este ano, com a participação de governantes do mundo inteiro, inclusive do Brasil, a meta é reduzir à metade aqueles 840 milhões de famintos hoje existentes no mundo. Até o ano de 2015.
Até lá muitos terão sucumbido à própria miséria.

A FAO lançou em 19 de outubro uma campanha mundial de arrecadação de fundos para o combate à fome. A estratégia principal de divulgação da iniciativa foi o TeleFood, um programa televisivo produzido na Itália - sede da FAO - e retransmitido em 60 países, entre eles Argentina, Bolívia, Chile e Uruguai. No Brasil, a única emissora a exibir parte do programa foi a TV Cultura de Tocantins, estado que abriga apenas 0,65% da população do país.

Posteriormente, a campanha foi também lançada em outros estados. Mas isso não torna menos significativa a omissão inicial do país, justamente no ano da morte de Betinho. O sociólogo, que morreu de Aids, chegou a ser indicado em 1994 para o Prêmio Nobel da Paz por sua liderança num movimento de grande repercussão, a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida.

A pergunta é inevitável: se Betinho estivesse vivo, os brasileiros estariam mais engajados na luta contra a fome e, conseqüentemente, na campanha da FAO? Talvez. Contudo, antes mesmo da morte do sociólogo o envolvimento da população no movimento criado por ele já havia diminuído bastante. Em 1994, havia quase 5 mil comitês da Ação da Cidadania espalhados por todos os estados do país. Em 1997, permanecem em atividade menos de 1,5 mil.

Há várias explicações possíveis para essa retração. Uma delas está relacionada à superexposição do assunto e do próprio Betinho nos meios de comunicação durante os primeiros anos da campanha - em 1994, só na "Folha de S. Paulo", o nome do sociólogo apareceu em 478 textos. Depois de explorar exaustivamente a incomum participação da sociedade no movimento, a mídia precisou obedecer a uma das regras básicas do seu negócio: mudar de assunto.

Sem o estímulo dos meios de comunicação, os níveis de adesão diminuíram. Se os famintos do Brasil deixaram de ser um problema para a televisão, também não incomodavam mais a parcela do público movida pela influência da mídia. É como se as montanhas de sacos de arroz, feijão, farinha, etc. arrecadadas nos shows em benefício da campanha e mostradas epicamente nos noticiários tivessem satisfeito em definitivo as carências do país.

Outra razão para a queda do interesse na causa do combate à fome é mais positiva: os brasileiros hoje comem mais que em 1993. O Plano Real, ao reduzir drasticamente a inflação que corroía o poder aquisitivo da população, causou uma elevação considerável no consumo de alimentos, inclusive entre as classes C e D. Muita gente passou a levar para casa alimentos que antes não faziam parte de seu cardápio, caso do iogurte, por exemplo, cujo consumo aumentou 87,2% de 1994 a 1996, segundo dados do governo. No mesmo período, registrou-se elevação importante na venda de outros alimentos, como o queijo (51,4%), a carne suína (31,1%), o frango (27,8%), a carne bovina (19,4%) e o pescado (12,3%).

Paralelamente, problemas crônicos do país, como a desnutrição e a mortalidade infantil, estão em declínio. Pesquisa realizada na capital paulista pelo Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) revelou que, de 1985 a 1996, a porcentagem das crianças menores de 5 anos com crescimento inferior ao potencial genético - um dos principais indicadores de desnutrição infantil - caiu de 30,6% para 13,7%.

No âmbito federal, a mais recente Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde (PNDS) concluiu que, de 1974 a 1996, houve uma redução de 69% no número de crianças da mesma faixa etária desnutridas.

Desníveis

Dito dessa maneira, pode parecer que um milagre está se operando no país. Não é bem assim. Na verdade, os próprios números da PNDS não permitem tanto otimismo. Em primeiro lugar, porque o maior recuo da desnutrição deu-se de 1974 a 1989, período em que o índice ficou 61% menor. Depois disso, ele continuou diminuindo, mas num ritmo mais lento.

Em segundo lugar, porque as diferenças regionais continuam muito graves. Embora o nordeste tenha melhorado seus indicadores, o desnível em relação ao sudeste, que já era grande, aumentou. A porcentagem de crianças nordestinas desnutridas em 1974 não chegava ao triplo da verificada no sudeste. Em 1996, passou a ser mais de quatro vezes maior que a da região mais rica do país.

Segundo a mesma pesquisa, de 1989 até 1996, apesar de ter havido uma diminuição considerável na mortalidade infantil, praticamente não se alterou o índice de crianças com baixo peso ao nascer - fator que pode trazer problemas de saúde às crianças e revela má nutrição na gestação (ver matéria sobre infância em Problemas Brasileiros nº 322).

Além disso, há mais números que mostram uma situação nutricional ainda muito longe do aceitável. Exemplo disso é um estudo realizado pela Sociedade Brasileira de Alimentação Enteral e Parenteral, que constatou algum grau de desnutrição na metade dos pacientes internados em hospitais do Sistema Único de Saúde (SUS). E entre os desnutridos, prossegue a pesquisa, há uma ocorrência 38% maior de óbito hospitalar.

Outra pesquisa, realizada em Campinas, Ouro Preto, Goiânia e Rio de Janeiro pelo extinto Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição (Inan), detectou na população de todas essas cidades déficits de elementos fundamentais como calorias e ferro, o que predispõe a vários tipos de moléstias.

Guerra de números

Quanto às estatísticas oficiais sobre o número de brasileiros famintos, há duas hipóteses. Ou elas não existem, ou são contraditórias. O programa Comunidade Solidária, do governo federal, se baseia até hoje no número de miseráveis indicado pelo Mapa da Fome, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), com dados do início dos anos 90. Isso é o que diz a secretária executiva do programa, Anna Peliano, que trabalhava no instituto na época em que foi feito o Mapa da Fome. A publicação afirmava a existência de 32 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza absoluta no país. Em outras palavras, essa seria a quantidade de brasileiros cuja renda não permite adquirir o mínimo de alimentos necessário para sustentar sua saúde.

Mas, de acordo com Vilmar Faria, secretário de coordenação de outro órgão oficial, a Câmara de Políticas Sociais, esses 32 milhões "certamente não são o dado do governo". A julgar pelo discurso proferido na ocasião do terceiro aniversário do Plano Real, o presidente Fernando Henrique Cardoso prefere as estimativas mais recentes de Sônia Rocha, pesquisadora também egressa dos quadros do Ipea. Segundo ela, de 1993 a 1995, período da implantação do Plano Real, 13 milhões de pessoas teriam superado a linha de pobreza. Mas o fato de ter sido usado como argumento no discurso do presidente não significa, segundo Faria, que seja este o número endossado pelo governo: "O que é um dado oficial?", pergunta o secretário.

A resposta é difícil. Duas cifras são geradas no mesmo órgão de pesquisas, oficial. Uma é utilizada na ação de um programa do governo, outra no discurso do maior responsável pelo mesmo governo. No entanto, elas não podem ser nem mesmo comparadas. Não apenas por se referirem a períodos diferentes, mas principalmente porque - para não entrar em detalhes - cada uma coloca a linha de pobreza num ponto distinto.

Mas, discussões à parte, mesmo pela perspectiva mais otimista ainda restam 16 milhões de miseráveis. Um contingente muito grande, que tende a aumentar caso persistam os altos índices de desocupação na cidade e no campo. "O problema da fome ainda é muito sério, e a solução definitiva passa pelo emprego e pela renda," diz Anna Peliano.

Em declarações como essa, o Comunidade Solidária mostra o que tem em comum com a outra grande frente nacional de combate à fome, o movimento criado por Betinho. Para ambas as iniciativas, não adianta atacar a fome isoladamente. Daí o próprio nome da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida e sua insistência na "trilogia" alimento, emprego e terra, temas das campanhas de 1994, 1995 e 1996 do movimento.

Daí também o caráter articulador do Comunidade Solidária, que desde seu lançamento propõe-se a integrar ações sociais de ministérios tão distintos como o da Agricultura e o da Educação, entre outros.

Essa visão do combate à fome como uma missão abrangente não significa que haja preconceitos contra a doação pura e simples de alimentos, que ambos os programas consideram justificável em situações emergenciais. É famosa a frase de Betinho, ao responder aos que o chamavam de "assistencialista": "Prefiro ser assistencialista para que a pessoa possa continuar viva e lutar".

Mas as características comuns mais importantes talvez sejam a descentralização e a ênfase na participação ativa da comunidade. Essas estratégias foram - e ainda são - muito bem-sucedidas nos comitês da Ação da Cidadania e serviram como modelo para a formulação das diretrizes do Comunidade Solidária.

Energia canalizada

A Ação da Cidadania nasceu de uma campanha de mesmo nome, em abril de 1993. Foi fundada pelo grupo de intelectuais - entre eles Betinho - que havia articulado o Movimento pela Ética na Política, em protesto contra as irregularidades ocorridas no governo Collor. "Com o impeachment de Collor, pensamos que aquela energia deveria ser canalizada para diminuir as injustiças no Brasil", conta o sociólogo Maurício Andrade, que participou da fundação do movimento e coordena o Comitê Rio da Ação, o primeiro do Brasil e uma espécie de célula-mãe dos atuais 27 comitês estaduais e cerca de 4 mil municipais (menos da metade em atividade).

A Ação da Cidadania funciona como entidade informal do ponto de vista jurídico. Os comitês surgem espontaneamente, por iniciativa das pessoas que se sensibilizam com a causa. Os comitês não prestam contas a nenhum escritório central, mas recebem apoio logístico para a realização das campanhas. Cada comitê municipal ou de bairro ganha o direito de usar o logotipo do movimento e declarar-se parte dele. A adesão de empresas e instituições de âmbito nacional - como o Banco do Brasil, por exemplo, que em 1994 estimulou as associações de funcionários a empenhar-se na campanha - foi decisiva para ampliar a abrangência da Ação.

A campanha da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida consistia em divulgar pelos veículos de informação e cultura dados sobre a fome e a miséria no Brasil e sensibilizar a sociedade a fazer doações, que eram recolhidas especialmente em eventos artísticos e culturais, que reuniam grande número de pessoas. O comitê articulava a ação, e os doadores sabiam para onde e para quem os donativos seriam destinados. "Esse aspecto da Ação continua, mas com menos visibilidade na mídia. O melhor exemplo é o Natal sem Fome", diz Maurício Andrade.

Três outros aspectos são destacados como fundamentais no trabalho da Ação. O movimento conseguiu reavivar a discussão e a reflexão sobre a solidariedade no Brasil. Com isso, as lideranças da Ação acreditam haver estimulado a inquietação diante da fome. Por fim, segundo Maurício Andrade, nunca houve registro de denúncia sobre desvio de donativos ou de recursos.

Disque denúncia

Não se pode dizer o mesmo do Comunidade Solidária. Desde que se divulgou um número telefônico para denúncias de irregularidades no programa governamental (0800 61-1995), foram registradas 94 acusações, das quais 24 foram consideradas procedentes, informa Anna Peliano. Em 1996, mais da metade dos municípios mineiros atendidos pelo programa foram alvo de investigações, cujo motivo variava de insuficiência de documentação a suspeitas de uso eleitoreiro dos recursos do programa.

O Comunidade Solidária atende hoje a 2,9 milhões de famílias em 1.368 municípios, escolhidos por apresentar índices de miséria especialmente altos, entre outros critérios. O atendimento é viabilizado por meio da nomeação de comitês locais que fazem, entre outras coisas, o trabalho de cadastramento das famílias a serem beneficiadas.

O trabalho direto contra a fome - uma das várias atribuições do programa - se dá em duas frentes, explica a economista: a administração de merenda escolar e a distribuição de cestas básicas nos municípios mais carentes do interior do país por meio do Programa de Distribuição Emergencial de Alimentos (Prodea).

No que se refere à merenda, Anna Peliano comemora o aumento na freqüência anual do atendimento às escolas, que ela atribui em grande parte também à descentralização, que já havia sido implantada no governo Itamar Franco. Antes disso, segundo ela, o governo federal administrava todos os recursos, "ou ele mesmo comprava e distribuía os alimentos às escolas". Pode-se imaginar os problemas que isso acarretava ao abastecimento dos rincões mais distantes do país. Nos melhores anos de distribuição de merenda, relata Anna Peliano, o governo repassou às escolas, via Ministério da Educação, recursos suficientes para cem dias de merenda. A média, contudo, era de 60 dias de atendimento e, em 1992, houve a pior marca: 32 dias. Em 1994, o Comunidade Solidária assumiu a gestão dos recursos da merenda, que hoje chega aos alunos 160 dias no ano, de acordo com a secretária executiva.

No que diz respeito à distribuição das cestas básicas, vinculada em última instância ao Ministério da Agricultura, satisfez-se uma antiga reivindicação da opinião pública: a utilização dos estoques estratégicos do governo, que costumavam fazer a festa - freqüentemente mostrada na TV - de ácaros, fungos e bactérias, para não citar seres ainda menos simpáticos. Em 95, segundo a economista, foram entregues 3 milhões de cestas, em 96 foram 7 milhões, e neste ano a distribuição deve ultrapassar os 10 milhões de cestas, beneficiando 1,5 milhão de famílias nos municípios mais pobres, acampamentos de famílias sem-terra e áreas indígenas.

Iniciativas

Enquanto isso, alheias ao que faz ou deixa de fazer o governo, felizmente ainda há, aqui e ali, iniciativas louváveis, colhendo bons resultados.

É o caso do Projeto Cesta Alimentar para Geração de Emprego e Renda, promovido desde 1994 pela ONG Ágora. Flávio Schuch, coordenador da iniciativa, conta que ela foi elaborada a partir de uma discussão muito freqüente no auge do movimento Ação da Cidadania. De um lado, aqueles que defendiam a distribuição emergencial de alimentos. Do outro, os que preferiam buscar alternativas de longo prazo. "Concluímos que devíamos fazer as duas coisas", diz Schuch. Daí a idéia básica do programa: utilizar o alimento não como um fim, mas um meio para estimular a organização comunitária e a busca de alternativas.

A aplicação prática disso é uma relação de troca. Nas comunidades carentes escolhidas pela Ágora, são oferecidas cestas alimentícias a preços subsidiados, mas somente às famílias vinculadas à associação de moradores. Além disso, alguém da família deve estar engajado em um trabalho comunitário e as crianças precisam estar na escola.

As cestas, pagas pela ONG, não são doadas. Inicialmente são vendidas a 40% do preço de custo. Ao longo dos quatro anos de duração do programa, o subsídio vai sendo reduzido.

O dinheiro da venda das cestas é depositado num fundo destinado a financiar, com juros também subsidiados, iniciativas dos próprios moradores para aumentar sua renda. Os interessados nos empréstimos devem formar grupos de cinco pessoas, que se avalizam umas às outras. Se um dos beneficiados pelo empréstimo não honrar seus compromissos, os outros quatro assumem o débito.

Paciência

Schuch admite que o mecanismo do projeto é complexo e não é nada fácil fazer as pessoas entenderem seu funcionamento. "É uma tarefa que exige muita paciência", diz. Mas depois de um certo esforço as idéias são assimiladas. O programa já atendeu 2,6 mil famílias em 45 comunidades carentes de Feira de Santana (BA) e Brasília. Uma delas é acompanhada de perto por Schuch. Trata-se da comunidade do Lixão, na capital federal, onde estão 520 famílias, cem delas atendidas pela iniciativa.

Além de conviver com o grande depósito de lixo que dá nome ao local, a comunidade não conta com saneamento básico. Mesmo depois de anos visitando o local com freqüência, Schuch ainda se incomoda com o mau cheiro. E isso não é tudo. Como não há nem asfalto nem vegetação, nos dias extremamente secos do planalto Central a área é coberta por nuvens de poeira. Com isso, há grande incidência de problemas respiratórios.

Em 1994, o projeto foi implantado como piloto nessa comunidade. "Dissemos à época que, se desse certo ali, funcionaria em qualquer lugar", afirma Schuch. E, segundo ele, os resultados são fantásticos. A associação foi fortalecida. Hoje há entre 80 e 90 pessoas realizando ações comunitárias. A freqüência escolar aumentou, não há mais registros de desnutrição infantil - oito casos graves detectados no início do programa foram revertidos -, e o padrão alimentar dos moradores melhorou.

No que se refere à geração de renda, o fundo formado pelo dinheiro da venda das cestas já financiou 72 iniciativas, que variam desde a montagem de uma oficina por um mecânico desempregado até a construção de uma "pamonharia" (local para venda de pamonhas) de madeirit por uma moradora.

Debaixo do viaduto

Outra iniciativa com o objetivo de conciliar alimentação e alternativas de trabalho é o restaurante Cascudas, que funciona debaixo de um dos mais movimentados viadutos de São Paulo desde 1993. O nome vem de uma das palavras básicas do vocabulário dos moradores de rua. "Cascuda" é uma lata vazia ou uma garrafa de plástico cortada ao meio, artefato indispensável à tarefa diária de pedir comida na rua. No Cascudas, entretanto, ela não é necessária. Ali os clientes, na maioria moradores de rua, comem em pratos e, o que é raro em sua rotina, sentados num local limpo.

Por R$ 1,20 - o preço médio de um cachorro-quente na metrópole paulistana - o restaurante serve um almoço caseiro. "Já sabemos o gosto do pessoal", conta Clélia Maria dos Santos Cuer, uma das cozinheiras do restaurante. Como os outros funcionários do Cascudas, Clélia também já viveu na rua. "Fiquei seis meses sem ter onde morar. E, muitos dias, não tinha o que comer." Sua primeira visita ao restaurante foi para pedir trabalho. "Não arrumei o serviço, mas logo me ofereceram um abençoado prato de comida." Alguns dias depois, surgiu uma vaga e Clélia entrou para a equipe.

Hoje, são 12 pessoas que vivem no andar de cima do local e se revezam nas tarefas: cozinhar, servir as mesas, cuidar do caixa, lavar a louça, limpar as bandejas. A limpeza é um ponto de honra, inimaginável para quem olha de fora e vê uma porta debaixo do viaduto. "Quando chegamos, não dava nem para entrar. Estava cheio de entulho e papéis esquecidos por alguma prefeitura", lembra a irmã Leni Albuquerque, coordenadora do projeto. Aos poucos, foram dando vida ao lugar. "Quando já estava ficando bonito, descobrimos os comitês da campanha contra a fome. Era o empurrão que precisávamos." Naquela época, ganharam os fogões, conseguiram apoio e não faltavam doações de alimento. Hoje, a situação é bem mais incerta. "Sobrevivemos graças a poucas pessoas, que continuaram nos ajudando a comprar os alimentos", diz Leni.

Todas as manhãs, uma pessoa da equipe vai até o Mercado Central recolher, entre as frutas e verduras desperdiçadas, o que ainda pode ser aproveitado. "Mesmo assim, temos que comprar parte dos produtos com o dinheiro do caixa. O que faz com que cada um dos que trabalham receba, hoje, apenas um pouco mais de R$ 100 por mês", conta Leni. Assim mesmo, Clélia, por exemplo, não pensa em procurar outro trabalho. "Aqui, somos tratados como gente." E ela faz questão de tratar os fregueses da mesma forma. "Eles ficam aqui só na hora do almoço, mas a gente senta, conversa. Eu sei do sofrimento deles e sofro junto."

Comentários

Assinaturas