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Em Pauta
Ilustrações: Marcos Garuti
Diretamente ligadas, a valorização da educação física nas escolas e a criação de condições favoráveis para o surgimento de talentos nas várias modalidades esportivas existentes são algumas das ações que apontam o caminho para a tão sonhada e discutida renovação sistemática dos atletas brasileiros no cenário esportivo nacional e mundial. Em artigos exclusivos para a Revista E, o medalhista olímpico Robson Caetano e a jornalista Soninha Francine comentam dificuldades e propostas para transformar o sonho em realidade.
Pensar e repensar as estruturas escolares - por Robson Caetano
Quando eu era atleta, enxergava no esporte a chance de ser uma pessoa melhor. Isso ainda é uma realidade no Brasil, um País com mais de 180 milhões de habitantes que ainda não possui uma política esportiva sólida, na qual regras sejam seguidas e normas criadas para termos um esporte de mais qualidade e mais democrático. Os profissionais de educação física tentam, no papel de educadores, mudar tal situação, mas, enquanto não tivermos o esporte caminhando junto com a educação, ainda iremos amargar situações difíceis. A pergunta que se faz é como podemos reverter esse quadro, na tentativa de que os jovens possam ter a chance de praticar as modalidades esportivas para as quais tenham aptidão, sejam elas olímpicas ou não. E a resposta é simples: o segredo está na parceria entre esporte e educação, que deve ser incentivada em todas as escolas da rede pública.
Assim como as matérias do ensino fundamental e médio se fazem necessárias, devemos fomentar a prática esportiva nas mais variadas modalidades dentro da escola. É preciso entender que o esporte possui grande valor e deve ser tratado como assunto de Estado, para que todos os envolvidos – sejam os profissionais da área, sejam as pessoas que encontram no esporte uma chance – possam realmente ver aumentadas suas chances de obter êxito na prática esportiva. Para que se multiplique o orgulho sentido pelos nossos atletas no pódio cada vez que o hino nacional é tocado.
De certa forma, a renovação de gerações no esporte acontece. No entanto, temos de avaliar cuidadosamente esse movimento, garantir o suporte técnico e aumentar o campo de pesquisa. Dessa forma, poderemos trabalhar melhor com os recursos humanos que temos. Por exemplo, o recorde mundial dos 100 metros foi quebrado cinco vezes em menos de dez anos – três vezes por atletas norte-americanos, uma vez por um canadense e em seguida por um jamaicano. No Brasil, o recorde nacional nessa modalidade é o mesmo há quase 20 anos. Isso revela não somente que a renovação de nossos atletas é lenta, mas também que a pretensão de quebrar recordes praticamente não existe. Uma questão de falta de motivação que se agrava com ídolos ganhando cada vez mais dinheiro, deixando de lado o sonho de alcançar o melhor resultado. É fundamental não esquecer o objetivo principal da prática esportiva, que é formar indivíduos melhores. Estimular a busca pelo grande resultado ainda é a mola propulsora de tudo. Talvez o marketing esportivo tenha contribuído com a nova realidade do esporte, afinal quantos meninos não sonham em ser o próximo Robinho, Ronaldinho ou Kaká? Por outro lado, possivelmente ser um Ademar Ferreira da Silva [atleta bicampeão olímpico, em 1952 e 1956, e recordista mundial do salto triplo], mesmo com seu histórico de medalhas olímpicas, não tenha o mesmo peso de alguns milhões de euros ou dólares, mas com certeza será importante para abrir portas.
O sonho de ser rico e famoso toma conta do imaginário das crianças e adolescentes e essa cultura do futebol contribui para isso em grande parte. O risco é que nem todos se tornam ricos ou famosos. Além disso, o que vejo é a busca desse sonho levando à evasão escolar em muitos casos. O que nós, educadores, queremos é oferecer a oportunidade da prática de cada vez mais modalidades esportivas na escola – além do futebol –, para que as habilidades e os talentos naturais do indivíduo possam ser potencializados e direcionados para o sucesso no esporte de alto nível. Acredito que um professor de educação física busca a excelência, mas essa jornada torna-se mais difícil quando não há conscientização por parte dos órgãos públicos.
Atualmente, a realidade que vejo é difícil: não temos hoje condições de ser uma potência em outro esporte que não seja o futebol. Uma declaração do presidente do Comitê Olímpico Internacional (COI), Jacques Rogge, deixou uma porta aberta para que o Brasil seja a possível sede da copa de 2014 dizendo que o País deve concentrar esforços na realização do que ele chamou de “um grande evento esportivo”. Ou a Copa do Mundo de Futebol de 2014 ou ainda os Jogos Olímpicos de 2016. Claro que a mensagem foi entendida pela comunidade esportiva, afinal realizar uma copa é mais fácil em teoria, pois já temos os estádios prontos, é só dar “uma maquiada” e está tudo certo... Pois está errado.
Quem esteve na Copa da Coréia, em 2002, viu que a educação é de extrema importância para o sucesso de um evento, seja ele cultural, seja político ou esportivo.
Já demos prova de que o brasileiro tem vocação para o esporte. Quem é que não se lembra da passagem da tocha olímpica pelo Brasil? A multidão se aglomerando para ver nossos ídolos conduzirem um artefato de simbologia mundial. Por mais que se diga, é importante lembrar que as pessoas deste Brasil gigante querem uma vida melhor e, se pudermos fazer com que mais brasileiros tenham a chance de realização profissional por meio do esporte, como eu tive, nós deixaremos de contar apenas com ações isoladas na busca pela excelência no esporte de competição e de lazer. Uma população mais saudável é o resultado de uma equação simples: educação + esporte + pesquisa. O que, de quebra, ainda elevaria nossa auto-estima.
Robson Caetano, medalhista olímpico, é também professor de educação física e jornalista
Como ser atleta no Brasil? Se no futebol já é difícil... - por Soninha Francine
“Agora vai.” Um brasileiro ou brasileira sobe ao pódio, abaixa a cabeça compenetrado e orgulhoso para receber sua medalha e vê subir a bandeira nacional. Ao mesmo tempo em que revê os anos de treinamento e os segundos decisivos da disputa recente, projeta um futuro mais tranqüilo para si mesmo e seus colegas: “Agora vai”.
Não é fácil ser atleta de ponta; competidores de alto nível têm de conviver com a dor, a disciplina rigorosa, a exigência de superar limites. E é particularmente difícil ser atleta no Brasil...
O futebol movimenta valores vultosos em patrocínios e direitos de transmissão e imagem (muito mais do que em bilheteria e licenciamento de produtos, mas isso é tema para outra discussão). Nem por isso ser futebolista é fácil. Ser jogador profissional é mais difícil do que a exposição de alguns astros superbem-sucedidos faz crer. Há muito mais profissionais vivendo em condições difíceis do que em situação confortável.
Imagine nos outros esportes... – ou no mesmo! A seleção feminina de futebol certamente suspirou “agora vai” quando conquistou a prata em Atenas 2004. Tente achar alguma notícia sobre nossas meninas no site oficial da Confederação Brasileira de Futebol (www.cbfnews.com.br) – no dia 9 de setembro, quando fiz uma consulta, encontrei até a escalação da equipe de cozinha da Granja Comary – composta pela simpática Lea Cristina e suas ajudantes –, mas nenhuma referência a nossas jogadoras.
Insisto: imagine a vida de quem quer praticar tênis de mesa, lançamento de disco, levantamento de peso, canoagem, esgrima, badminton...
E quem quer ser atleta, afinal? – Para querer praticar um esporte, é preciso tê-lo experimentado. Ao futebol, e uma ou outra modalidade, como o vôlei, somos apresentados muito cedo. Algumas são tão naturais que parecem nascer com a gente: correr, saltar, desafiar para ver quem chega primeiro. Crianças o fazem com naturalidade. Ou faziam – nos grandes centros urbanos, são cada vez mais raros os espaços para brincadeiras; as ruas são perigosas, os poucos terrenos vazios também. E muitas escolas, infelizmente, já não garantem a educação física como parte de sua rotina.
Embora o artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases afirme que a educação física é “componente curricular da Educação Básica”, sendo “facultativa” apenas nos “cursos noturnos”, e o artigo 27 inclua “a promoção do desporto educacional e o apoio às práticas desportivas não-formais” como “diretriz da educação básica”, sabemos que, na prática, isso não se confirma. Qualquer pesquisa informal em escolas da periferia de São Paulo comprova: meninos e meninas passam anos sem aulas de educação física e esporte. Com isso, crianças deixam de conhecer atividades que poderiam ser fonte de prazer e realização.
Não podendo praticar, ou ao menos ver as diversas modalidades – a TV aberta, cujo alcance dispensa comentários, pouco exibe dos esportes ditos “olímpicos” ou “amadores” –, como essas crianças haveriam de querer ser atletas? Assim, sem que meninos e meninas se interessem por essas modalidades, não se forma também o público necessário para que os eventos esportivos sejam atraentes para patrocinadores e redes de televisão – o que torna tudo mais difícil para quem já estava decidido a seguir carreira como esportista.
Mas... tem jeito ou não tem? – Tem. Existem inúmeros programas de incentivo para o desenvolvimento do esporte. O Programa Solidariedade Olímpica, de iniciativa do Comitê Olímpico Internacional, reverte parte da verba dos direitos de transmissão dos jogos olímpicos para que os Comitês Olímpicos Nacionais invistam em treinamentos, organização e participação em competições, concessão de bolsas e estágios e realização de cursos e intercâmbios visando a identificação, recrutamento e preparação de jovens atletas e o aprimoramento de treinadores.
O Comitê Olímpico Brasileiro (www.cob.org.br) também tem convênios com os comitês dos Estados Unidos, de Cuba e do México. A cooperação com os Estados Unidos prevê o intercâmbio de atletas e técnicos, e também de oficiais, árbitros, especialistas e cientistas para participação em seminários, cursos e conferências, com temas que vão do aperfeiçoamento de métodos de treinamento à arrecadação de fundos.
Por falar em fundos, a Lei nº 10.264, conhecida como “Agnelo/Piva”, sancionada em julho de 2001, estabelece que 2% da arrecadação bruta de todas as loterias federais do País sejam repassados ao Comitê Olímpico Brasileiro (COB) e ao Comitê Paraolímpico Brasileiro (CPB). Embora a lei represente a maior injeção de recursos no esporte olímpico em todos os tempos, há quem se queixe do fato de boa parte deles ser empregada na manutenção das confederações (nem sempre há transparência na prestação de contas dessas despesas) à custa do fomento da atividade-fim – o desenvolvimento do esporte, claro.
Da parte do governo federal, houve uma boa notícia neste ano: o lançamento do muito esperado Programa Bolsa Atleta. O objetivo é “garantir uma manutenção pessoal mínima aos atletas de alto rendimento”, para que possam “se dedicar aos treinamentos, participar de competições e desenvolver plenamente sua carreira esportiva”.
Existem quatro categorias, que vão da Bolsa Atleta Estudantil, que destina R$ 300 por mês a atletas maiores de 12 anos, regularmente matriculados em instituição de ensino pública ou privada, que tenham obtido resultados significativos em competições recentes, à Bolsa Atleta Olímpica e Paraolímpica (R$ 2.500 mensais), para atletas que tenham integrado a delegação brasileira na última edição dos Jogos Olímpicos ou Paraolímpicos.
A exigência comum para a concessão de qualquer uma delas é que os atletas não possuam patrocínio ou recebam salário pela prática do esporte. Os critérios exatos e demais informações (como se inscrever, prazos etc.) podem ser encontrados no site do Ministério do Esporte: www.esporte.gov.br.
E quem ainda não é vencedor? – Como se vê, esses são programas voltados para talentos “testados e aprovados”. Mas como chegar a ser um deles? Há um consenso de que o investimento na base, isto é, na massificação da prática esportiva, é essencial para o despontar de talentos. Chega a ser ululante: quanto maior o número de praticantes, maiores as chances de surgir um atleta com potencial para ser campeão...
Para esse fim existem programas como o Segundo Tempo, parceria dos Ministérios do Esporte e da Educação, “destinado a possibilitar o acesso à prática esportiva aos alunos matriculados no ensino fundamental e médio dos estabelecimentos públicos de educação do Brasil, principalmente em áreas de vulnerabilidade social”. Outra parceria entre esses ministérios acontece na realização dos Jogos Escolares Brasileiros. Participam diretamente dos JEBs aproximadamente 2.700 atletas, regularmente matriculados nas escolas de ensino fundamental e médio. Considerando as fases classificatórias municipais, regionais e estaduais, participam cerca de 1 milhão de alunos – sem contar as seletivas e jogos internos das escolas (dados do Ministério do Esporte).
Há também os Jogos da Juventude, criados em 1995 pelo governo federal e realizados (quase) todo ano em capitais diferentes pelo Brasil. Os jogos reúnem as seleções estaduais – o que faz com que os técnicos das seleções brasileiras prestem muita atenção neles... Entre as revelações dos Jogos da Juventude estão os medalhistas mundiais e/ou olímpicos Daniele Hypólito (ginástica artística), Carlos Jayme (natação) e Tiago Camilo (judô).
Além dessas iniciativas, os governos e as prefeituras, as universidades, clubes, federações, entidades como o Sesc e o Sesi, e ONGs de portes muito diferentes têm as próprias ações para proporcionar o acesso à prática esportiva e o desenvolvimento do esporte. Muitas delas, é verdade, procuram mais oferecer o esporte como alternativa de lazer e recreação, fator de saúde e bem-estar ou instrumento de inclusão e promoção da cidadania, e não tanto como o esporte de rendimento. Mesmo assim, talentos podem despontar e ser lapidados e encaminhados para projetos voltados mais especificamente para ele.
Esforço desde o começo – Apesar de haver algumas portas de entrada, ainda não temos uma política consistente e consolidada para o esporte – em comparação com Cuba, por exemplo, que tem resultados expressivos, apesar de suas precárias condições econômicas. A oferta de oportunidades ainda não dá conta do imenso potencial da população brasileira. Por isso, a primeira grande eliminatória a disputar, a primeira prova é conseguir agarrar uma chance de competir. Grandes atletas são enfáticos em dizer que os campeões são necessariamente aqueles que tiveram disposição e capacidade para superar obstáculos de todos os tipos – determinação e persistência são tão necessários a um esportista quanto força e velocidade...
É preciso aproveitar os canais que já existem e exercer pressão no sentido de ampliá-los – exigir condições para a prática de esporte na escola, por exemplo. Não se deve abrir mão de uma ação local por duvidar de seu alcance e efetividade. Assim como uma fração de segundo em uma prova de alto nível, uma pequena iniciativa pode fazer toda a diferença. E aí o negócio “vai”.