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Exposição
Comemorações do bicentenário de nascimento de Hans Christian Andersen, autor de clássicos da literatura infantil, como O Patinho Feio e João e Maria, reiteram atualidade da obra do dinamarquês
Ele conseguiu falar sobre problemas de um jeito tão mágico...”, responde, com segurança de especialista, Bruna Dias do Carmo Costa, de 11 anos, quando questionada sobre o que mais a fascina na obra do escritor dinamarquês Hans Christian Andersen, morto em 1875, cujo bicentenário de nascimento é celebrado este ano. Considerado um dos mais populares autores da literatura infantil, Andersen escreveu histórias que fazem parte do imaginário de crianças e adultos de diversos cantos do globo. Quem não conhece o Patinho Feio, as aventuras do Soldadinho de Chumbo, os irmãos João e Maria ou a romântica Pequena Sereia – que serviu de inspiração para o último desenho animado feito à mão pelos Estúdios Walt Disney, em 1989? Bruna conhece e adora. Aluna da 5ª série da Escola Municipal Vinicius de Moraes, a estudante cresceu acostumada com a velocidade da internet, com a variedade de opções da TV a cabo e com a adrenalina do videogame – uma realidade bem diferente da vivida pelas crianças da época das narrativas de Andersen. No entanto, o efeito do tempo e as sedutoras parafernálias eletrônicas não afastaram sua obra dos leitores mirins. Tanto é que, mais de um século depois, as fábulas foram o passaporte para a empreitada que Bruna está prestes a realizar: em outubro, ela embarca para a terra do autor, o distante reino da Dinamarca. Ela é vencedora – junto com outro estudante, Gabriel Cosme da Costa, de 20 anos – do Prêmio Hans Christian Andersen, realizado pela 11ª Jornada Nacional de Literatura, em agosto, no Rio Grande do Sul, parte das comemorações do aniversário do autor.
Magia e esperança
No país escandinavo, Bruna visitará a pequena Odense, onde Andersen nasceu, e a cidade de Copenhague, a capital, onde ele viveu parte da vida. “Para concorrer era preciso escrever um texto com uma releitura de duas histórias escritas por ele”, conta Bruna, entusiasmada. “Primeiro passei pela seleção na escola. Um dia o telefone tocou e era o pessoal da Jornada avisando que eu tinha vencido.” A menina, que já havia lido parte da obra de Andersen, não tem muita idéia do que vai encontrar na Dinamarca, mas como autêntica pré-adolescente está curiosa. “Deve ser um país diferente do Brasil”, afirma. “É muito menor, muito mais frio e muito mais desenvolvido, não é?” E ressalva em tempo: “Ah, e deve ser também mágico e especial”. A professora de Bruna, Juliana Bittencourt Andrade, acompanhará a aluna nessa aventura. Foi dela a idéia de, aproveitando as comemorações do bicentenário do autor, trabalhar a obra do mestre com a classe. “Os alunos já conheciam algumas histórias, mas não sabiam quem era o autor”, explica. “Depois das atividades, ficaram superinteressados por diferentes aspectos da vida de Andersen e curiosos sobre como deveria ser a Dinamarca.” Para a professora, o caráter mais motivador das histórias é a capacidade de despertar as crianças para diversos assuntos. “Além de literatura e artes, a obra de Andersen rende discussões em várias outras matérias, como história, geografia e até matemática. Sem contar as questões mais atuais, como preconceito, exclusão social, solidariedade, como lidar com as diferenças, o trabalho infantil. E o diferencial é que, embora nem todas as histórias tenham final feliz, a magia e a esperança estão sempre lá.”
Popular
Prova da popularidade do escritor dinamarquês é a quantidade de países envolvidos nas comemorações que marcam seu bicentenário. No site oficial do evento, as páginas são traduzidas em 14 idiomas, entre eles o chinês, o russo e o espanhol. Em todo o mundo são cerca de 550 eventos. Um dos maiores aconteceu aqui. E deu-se na avenida, no melhor estilo brasileiro: no desfile da escola de samba carioca Imperatriz Leopoldinense, que, no Carnaval deste ano, fez uma homenagem a Andersen. Segundo o dinamarquês Jens Olesen, há 28 anos no Brasil e “embaixador” da obra de Andersen na América Latina, o número de pessoas envolvidas no espetáculo da Sapucaí foi recorde. “O desfile foi televisionado para 125 países”, conta. “Ou seja, pessoas em todo o mundo puderam ver essa linda comemoração.” A oficial aconteceu meses depois, lá na Dinamarca. No dia 2 de abril, aniversário de Andersen, a pequena Odense parou para celebrar o filho ilustre com direito a presença da família real dinamarquesa, nobres da Europa e mais 200 outros embaixadores de sua obra. Os convidados foram do rei Pelé à primeira-dama da Rússia, Ludmila Putin. Nesse mesmo dia, em Copenhague, o show Once Upon a Time (o famoso “era uma vez...” com o qual começam as fábulas) reuniu no palco nomes como a cantora norte-americana Tina Turner e o ator britânico Roger Moore – um dos que viveram James Bond na série 007.
O pato que virou cisne
Comemorações entre reis e celebridades parecem coisa de conto de fada e, de certa forma, a vida de Andersen tem elementos de faz-de-conta mesmo, daqueles em que o impossível acontece. A mãe foi lavadeira, não sabia ler nem escrever. O pai trabalhava como sapateiro e também não conseguiu estudar – no entanto, ao perceber o interesse do filho pela literatura e pelo teatro, foi o primeiro a incentivá-lo a seguir por esse caminho. Foi assim que, com apenas 14 anos, e uma vida quase miserável, Andersen convenceu a mãe – o pai havia morrido três anos antes – a deixá-lo ir para a capital tentar a sorte. Lá conseguiu um emprego no Teatro Real, onde iniciou sua jornada no mundo das artes. Primeiro tornou-se cantor, depois ator e em seguida dramaturgo. Mas em todas as tentativas foi malsucedido. A aparência não ajudava: alto, magro e narigudo, ele não tinha muito carisma. Entretanto, a sorte do jovem um dia mudou. Percebendo seus esforços, um dos diretores do teatro resolveu patrocinar seus estudos. Foi quando começou a escrever contos, romances e poemas e, aos 17 anos, publicou seu primeiro livro. Apropriadamente intitulado Tentativas Juvenis (1822), teve tiragem de 300 exemplares e vendeu apenas 17 – o encalhe foi repassado a um merceeiro que o usou como papel de embrulho. No entanto, depois de realizar longas viagens pela Europa, Andersen reuniu farto material para suas histórias. Em 1835, seu Histórias de Fadas Contadas para Crianças alcançou certo sucesso e as fábulas que vieram em seguida finalmente o tornaram conhecido internacionalmente como mestre em um estilo que mistura fantasia e realidade. “Andersen escreveu histórias que representavam sua situação existencial”, afirma Tania Rossing, professora de literatura brasileira da Universidade de Passo Fundo e coordenadora da Jornada Nacional de Literatura – aquela mesma que premiou Bruna. “Ele era pobre, filho de um sapateiro com uma lavadeira, queria ser cantor e bailarino e várias vezes foi rejeitado.” A professora explica ainda que daí vem o fato de seus contos falarem tanto de crianças pobres que conseguiram sublimar essa situação. “O patinho feio é encontrado em múltiplas situações do cotidiano em pleno século 21”, compara.
Hans Christian Andersen produziu 156 eventyr – palavra dinamarquesa que significa “contos maravilhosos”. Obra que o deixou conhecido para sempre em diversos idiomas. O típico patinho feio transformado em cisne.
No mundo de Andersen - Evento no Sesc Pompéia comemora bicentenário do autor com exposição, peça de teatro e instalação
As homenagens pelo bicentenário do autor dinamarquês Hans Christian Andersen também chegaram a São Paulo. De 8 de outubro a 13 de novembro, as comemorações do Sesc Pompéia serão marcadas por contadores de história, apresentações da peça Patinho Feio – O Vôo de Andersen, com a Cia. Teatro Por Um Triz e uma exposição com imagens do escritor, sua biografia e ilustrações de seus personagens. Para completar, uma instalação idealizada pelo cenógrafo Márcio Tadeu reproduzirá imagens desenhadas pelo próprio Andersen, que no Sesc Pompéia se transformaram em divertidos brinquedos para o público-alvo do escritor: a molecada. “O inusitado é que ele é muito conhecido como escritor e pouca gente sabe que ele também desenhava”, conta o cenógrafo. “No Museu Andersen, na Dinamarca, há uma grande área dedicada somente a essa faceta dele.” Segundo Tadeu, a descoberta de mais esse talento do escritor acabou ocupando na mostra mais espaço que o previsto. “Cada peça tem algo com que a criançada possa interagir. Ou são sininhos, ou cordas que quando puxadas movem os braços dos bonecos. Enfim, essas coisas para ficar puxando que as crianças adoram”, conta o cenógrafo, que se inspirou na Dinamarca, ao utilizar muita cor e muita madeira, para construir a ambientação. As curiosidades sobre a vida e a obra de Andersen serão apresentadas de duas maneiras para quem passar pelo galpão da unidade: na exposição e também no espetáculo idealizado pela Cia. Teatro Por Um Triz, que traz a trajetória do autor desde a infância pobre até a consagração como escritor. Com atores e bonecos, três de suas histórias – O Valente Soldado de Chumbo, A Roupa Nova do Rei e O Patinho Feio – farão paralelo entre vida e obra do dinamarquês. “Andersen tinha muita crítica social e também ao comportamento vigente”, diz Cris Lozano, diretora do espetáculo. “Mas os contos dele não se concentram entre o bem e o mal, não existe esse pensamento binário em suas histórias. E elas também são muito esperançosas, não terminam com final feliz, mas com esperança.”
Algumas obras*:
O Patinho Feio
Todos os seus irmãos eram amarelinhos e pequenininhos, e ele era feio, cinza, grandão e desengonçado. De tão rejeitado por ser diferente, resolveu fugir. Correu o mundo, ou, melhor, teve de correr de todo mundo que cruzou em seu caminho de tanto espanto que sua feiúra causava. Sofreu muito até que um belo dia cresceu e descobriu a verdade sobre si próprio: ele não era um pato feio e diferente dos outros, era na verdade um lindo cisne. Desde então, todos passaram a admirá-lo e a se curvar diante de sua beleza.
A Pequena Vendedora de Fósforos
Era tão pobre a menininha que, mesmo no último dia do ano, enquanto todos jantavam com suas famílias e esperavam o novo ano chegar, ela saiu às ruas geladas para vender palitos de fósforos. O frio intenso causou-lhe alucinações: viu a avó já falecida e junto com ela alçou vôo para o céu, onde já não havia nem fome nem solidão. No dia seguinte, o povo, curioso, olhava seu corpo na rua e tentava imaginar como teria morrido a menininha. Mal sabiam todos quanta beleza ela conseguiu vislumbrar antes de partir...
O Valente Soldado de Chumbo
Ele tinha dezenas de irmãos, todos soldadinhos de chumbo valentes e garbosos. Mas com ele havia algo de diferente: era o único com apenas uma perna, e todos o desprezavam por isso. No entanto, no mesmo quarto de criança em que morava vivia também uma linda bailarina de cartolina que lhe despertou o amor. Mas, por obra de um boneco travesso, o soldadinho caiu pela janela e teve de enfrentar uma longa jornada até reencontrar a amada. E, quando isso finalmente aconteceu, foram ambos atirados na lareira. A felicidade durou pouco? Talvez. Outros, porém, diriam que ela durou para sempre.
*Fonte: Histórias Maravilhosas de Andersen (Companhia das Letrinhas, 2003)
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