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Em depoimento exclusivo à Revista E, a cantora lírica Rosana Lamosa fala do começo da carreira e dos cuidados que a profissão impõe a seu dia-a-dia

 

Foto: Danilo Tanaka

 

Quando a reportagem chegou ao flat onde estava hospedada, próximo à Avenida Paulista, a soprano Rosana Lamosa tinha os ouvidos ocupados pelos fones de seu iPod [tocador de MP3] e usava chinelos de dedo daquela marca brasileira sensação no mundo. Acessível, falante, simpática. A antítese da diva? De certa maneira, sim. “Todo mundo gosta de vender essa imagem. É uma coisa da própria imprensa, que curte criar mitos e figuras”, sentencia. Rosana estudou arquitetura, se formou em jornalismo, trabalhou como publicitária, mas largou tudo pela música. Mesmo com os poucos créditos que a professora de canto depositava em sua voz – Rosana freqüentava as aulas só porque “sentia prazer em cantar” –, a soprano decidiu que se dedicaria integralmente à música erudita. E o tempo é sempre curto. “Mal tenho conversado com meu marido ultimamente”, conta. Sim, ela é casada – com o também cantor lírico Fernando Portari – e não tem filhos, mas já “gestou” várias personagens famosas no mundo da ópera, como as de La Bohème, La Traviata, La Sonnambula. Depois de estudar em Nova York, rodou mundo, trabalhou na Suíça, mas voltou ao Brasil, onde desenvolveu carreira sólida. “Não me arrependo porque tive grandes oportunidades aqui. Seria injusto reclamar.” A seguir, os melhores trechos da conversa.

 

 

Convite para As Bodas

O começo de carreira foi difícil. Fui para Nova York estudar com Franco Iglesias, que também foi professor do tenor Plácido Domingo, depois voltei ao Brasil para morar em São Paulo, em 1987 – época em que o Theatro Municipal passava por uma grande reforma. Quando foi reaberto, consegui uma vaga no coro e cantei em produções de 1988 e 1989. Mas logo percebi que, apesar de ser uma boa experiência, trabalhar no coro era muito pesado para a voz. É o tipo de atividade que não permitiria desenvolver a voz de uma maneira saudável. No coro não se escuta direito, é necessário cantar muito forte, estamos dentro de uma massa, fica difícil administrar a própria voz sozinha. Por sorte, eu poderia me sustentar mesmo não trabalhando lá. Então fui me preparar para começar a fazer audições. No ano seguinte, surgiu um teste para As Bodas de Fígaro [do compositor austríaco Wolfgang Amadeus Mozart, 1756-1791], com direção do Jorge Takla, e consegui um papel pequeno. Comecei, assim, ganhando uns papeizinhos e fui crescendo. Tive muita sorte de ter boas oportunidades. Comecei a conseguir trabalho e todo ano fazia uma ópera.

 

Em seguida, veio o convite do maestro John Neschling, [atual diretor artístico da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, Osesp] para eu trabalhar na Suíça. Fiquei por lá mais ou menos um ano e meio. Foi bom por um lado, mas difícil por outro. O intérprete lá é como um funcionário do teatro, então é preciso cantar um determinado número de produções estipulado de acordo com a temporada. O que inclui musical, opereta e as coisas mais variadas. É bom por um tempo, mas, no que diz respeito à voz, não é saudável. Por isso é comum vermos vozes que se desgastam antes do tempo lá fora. Enfim, voltei, e não me arrependo porque tive grandes oportunidades no Brasil. Seria injusto reclamar. Sempre consegui fazer primeiro elenco e já fiz todos os grandes papéis que qualquer soprano gostaria de cantar, como em La Bohème [do italiano Giacomo Puccini, 1858-1924], La Traviata [do também italiano Giuseppe Verdi, 1813-1901] e La Sonnambula [de Vincenzo Bellini, nascido na Sicília, 1801-1835].

 

 

Cuidando das cordas

Quando estou fazendo espetáculo, a rotina complica. Entro no fuso da noite, o que para mim é difícil. Sou uma pessoa diurna. De noite para mim é um parto quando tem espetáculo muito tarde. Fiz um em Campos do Jordão que começava à meia-noite. Às 8 da noite eu já estava desesperada, me perguntando como entrar no palco. Ou eu entrava nesse fuso, ou estava perdida. Resultado: dormia das 7 da manhã até as 2 horas da tarde, para conseguir fazer o espetáculo à meia-noite. Uma loucura. Nos períodos de ensaio, com orquestra, normalmente se começa às 9h30. Só que, para eu conseguir cantar às 9h30, tenho de acordar às 6 horas. Acho que a voz é a última coisa que acorda. Para a voz “subir” e eu conseguir ao menos falar – e ainda mais cantar – preciso acordar pelo menos três horas antes. Outro cuidado que tomo também é não beber bebidas alcoólicas, mas já não gosto muito mesmo. O álcool para a voz é bem complicado. Alguns artistas chupam gelo antes de cantar. O próprio Pavarotti mastiga gelo antes de entrar em cena. Falar ao telefone também é complicado. Por não ver o outro, tendemos a falar mais alto do que o normal. Se falamos por muito tempo, isso cansa a voz. Eu evito. O auge da voz se dá entre os 40 e os 50 anos, e estou com 45.

 

 

Saia-justa

Tenho uma intuição muito forte. Não sei se isso é exatamente bom ou ruim, mas às vezes ela é positiva. Quando estávamos fazendo Romeu e Julieta, no ano passado, por exemplo – uma produção supermoderna do Possi [José Possi Neto] –, as roupas eram todas modernosas e, no ensaio geral, tive um pressentimento de que teria problemas na grande cena final, em que eu, que fazia a Julieta, teria de me matar. Então me preparei. Quando sei que alguma coisa ruim pode acontecer, procuro manter o sangue-frio. E não deu outra. No dia da estréia, cena final, eu devia pegar a faca que estava no bolso do Fernando [Portari, marido de Rosana], ela não estava lá. Eu tinha de “me matar” na frente de 2 mil pessoas sem a faca! E o texto diz: “Ah, esse punhal” etc. Pois bem, coloquei a mão no bolso dele e fingi pegar uma faca que não existia, na maior cara-de-pau. Ninguém percebeu que não tinha faca. A gente tem de ter cara-de-pau na hora. Se eu tivesse ficado nervosa, todo mundo teria visto. Tive essa intuição quando, no ensaio geral, via a faca um pouco para fora do bolso do Fernando, fácil de perder. E o Fernando em cena é um monstro. Ele entra, pula. Eu logo vi que aquela faca não duraria no bolso dele. Pensei: “Duvido que essa faca vá estar aí quando eu precisar dela”.

 

Lugar nenhum

Percebia que eu gostava de cantar, que tinha grande afinação e muito prazer nisso. Mas nunca sonhei em ser cantora. Tanto que nunca tive coragem de fazer vestibular para música. Quando fui estudar canto, não era a mesma coisa que fazer vestibular. Ainda é um curso difícil de fazer, seja na universidade, seja no conservatório. Bons professores de canto são pessoas que se deram bem, ou referências que você viu cantar, que fizeram alguma carreira. Mas geralmente essas pessoas não estão dentro das escolas. São professores particulares, privados, ganham muito dinheiro. As minhas aulas com a Vera Canto custavam o equivalente, hoje, a 200 reais cada uma. Cantar é estudar a vida inteira. A Vera canta até hoje, deve ter uns 65 anos. É uma mulher muito bonita, culta e charmosa. Uma figura muito interessante. Lembro-me que, na época, ela foi absolutamente contra eu me dedicar exclusivamente à música. Dizia que minha voz não tinha tanto potencial assim. Na verdade, acho que ela tinha temor porque sabia que se tratava de uma carreira muito difícil. Nem mesmo entre minhas colegas de canto havia quem quisesse seguir pelo canto lírico. Pessoas como Marília Pêra, Paula Toller, Marina Lima e Marisa Monte – que naquela época ainda queria cantar ópera, mas depois enveredou pelo canto popular. É algo muito instável viver de música no Brasil, ainda mais erudita. Encontro com a Vera em concertos de vez em quando. Fico pensando o que se passa na cabeça dela. Nunca fiquei chateada com ela. Eu entendi. É uma carreira muito sacrificada mesmo. Não posso ficar em um lugar só, tenho de viver viajando. Sou nômade.

 

Rosana Lamosa participou da pocket opera de Arrigo Barnabé e Bruno Bayen Enquanto Estiverem Acesos os Avisos Luminosos, no Sesc Ipiranga, em agosto