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A educação no horário nobre Street

Carlos Lombardi
Fala-se muito no poder da televisão para influenciar o público e que seria uma de suas obrigações sociais educá-lo. Eu, que vivo do lado de dentro do aparelho, admito que há um certo poder - mas ele está longe de ser o Godzilla que tanto se teme. Quem escreve novelas sabe: há um limite claro do que o público aceita. Esse limite é estabelecido pelo código de valores médio de uma sociedade.Quando o público se envolve com uma telenovela, é porque se identifica com alguns de seus personagens e toma como suas as aspirações e desventuras desses personagens. Essa identificação só ocorre quando há um código moral comum a público e personagens. Não há mocinho de novela que continue sendo apoiado pelo público se, de repente, sair batendo em sua mãe velhinha. Para a sociedade em geral, bater na mãe é muito feio.
Esmiuçando mais: nos anos 60, as heroínas sempre eram virgens - o que combinava com o socialmente aceito para as moças da época. Nos 90, a virgindade não é mais um pré-requisito - mas a mocinha não pode encarar o sexo como uma atividade recreativa. Uma heroína só pode ir para a cama com o homem que ela ama e com quem pretende viver. Se o amor acaba, tudo bem. Ela não tem um "pecado" a esconder. Mas só poderá frequentar outra cama se acreditar ser a do seu novo amor eterno - por mais que só seja infinito enquanto dure.
Não adianta, por exemplo, tentar modificar um valor social por uma ação. Colocar uma heroína grávida que resolve abortar não faz o público automaticamente mudar de posição sobre o aborto. Faz apenas o público mudar de posição sobre a mocinha, que deixa de ser alguém admirável e aceitável. Isso não faria o público rejeitar um valor nele arraigado, só o faria rejeitar a heroína e a novela.
Abaixo desses limites dramáticos, porém, a repetição em uma série de novelas diferentes de alguns valores pode provocar uma mudança social - obrigatoriamente lenta. Hoje em dia, por exemplo, é consenso na classe média que bater na mulher é algo condenável. Não era há uns dez anos. A telenovela foi decisiva na alteração desse valor - mas foi uma mudança lenta. A mulher que trabalha fora também deixou de ser alguém sob suspeita para ser hoje a mulher moderna, que luta para progredir na vida e garantir mais conforto e possibilidades de felicidade para si, seu amado e seus filhos - e a telenovela ajudou nessa modificação também, mas de uma maneira tão lenta que quase se torna imperceptível. Além dessas importantes, mas lentas mudanças, a novela é eficiente ao "vender" informações educativas no merchandising social, ou seja, na divulgação de agendas específicas que podem partir de seu autor ou da ação integrada com órgãos públicos. No período de seis meses em que fui o responsável pelo texto de Malhação em 97, insisti na massificação do uso de camisinhas pelos personagens adolescentes. As consequências de uma gravidez indesejada ou do risco de doenças (tanto Aids como as venéreas mais tradicionais) foram exploradas em conflitos dramáticos e/ou cômicos. Não adiantava apenas falar a mensagem. Importava que usar ou não camisinha podia mudar o rumo da vida das personagens. Nesse sentido, é real a influência que a tevê pode exercer, em termos educativos, sobre o público.
Nada, porém, funcionará se a mensagem que se passa estiver completamente distante do código de valores e das crenças mais arraigadas do público. Conhecer os limites do nosso poder é condição fundamental para podermos usá-lo de maneira inteligente e também nos defendermos das frequentes acusações tipo "a tevê está destruindo a família e os valores morais". É uma acusação conveniente para quem a faz, mas completamente descabida para quem conhece nossa realidade. Há limites na nossa capacidade de influenciar - limites tanto para o bem como para o mal.
Carlos Lombardi é escritor
Wilson Martins
O papel do jornalismo cultural na educação sempre foi indireto e difícil de avaliar. Claro, quando se fala hoje de "jornalismo cultural" ou outro, devemos pensar antes nos meios de comunicação eletrônica do que no "jornalismo de papel". Há quem se refira ao "livro sem papel", vitória final da galáxia do computador sobre a galáxia de Gutenberg. Como dizem os profetas de rua, envolvidos entre dois cartazes: "Rezem, porque o fim está mais próximo do que pensamos!".
Basta dizer que grande parte dos livros atualmente publicados vêm em companhia do seu pleonástico CD, à espera do momento em que os discos acabarão por substituí-los e torná-los obsoletos, objetos de museu, vestígios de civilizações desaparecidas. Número cada vez maior de "leitores" prefere a tela do computador, mais que o volume tipográfico, de forma que, se o jornalismo cultural tem, já agora, ou vier a ter, alguma influência na educação, será, creio eu, pela informação virtual, cuja identidade com conhecimento propriamente dito está sendo cada vez mais contestada. É o grande debate intelectual dos nossos dias.
De fato, o que nos fornece a bem chamada "informática" são informações fragmentárias sobre a organicidade dos assuntos a que se referem. Algum especialista em ficção científica poderá imaginar que logo recomeçaremos a história da civilização a partir desses fragmentos e começando pelos rudimentos - tudo com auxílio dos meios tecnológicos mais avançados e surpreendentes.
Pondo ao alcance imediato dos interessados as referências culturais de que necessitam, o computador democratiza a cultura, no sentido amplo da palavra, e assume o papel de educador supremo - educando, com certeza, para uma nova civilização que bem pode não ser a nossa. Já se disse que estamos, em face do mundo eletrônico, na mesma perplexidade com que a Idade Média se defrontou de repente com as novas estruturas mentais abertas pela tipografia. De repente, porque em menos de cinquenta anos a imprensa já se havia espalhado pela Europa, assim como em menos de meio século o computador ocupou o seu lugar, cada vez mais predominante no século 20. Que dizer do século 21?
Wilson Martins é crítico literário do jornal O Globo
Laerte
É difícil definir apenas com um termo minha atividade profissional. Fortuna disse que a palavra certa é "humorista", sentido básico de todas as atividades (com desenho ou texto) que fazemos. Então, eu acho o seguinte: existe uma briga de interesses entre o humor e a educação.
Educar é abrir; o que se produz entre educandos e educadores multiplica-se pelas possibilidades de cada um, é matéria de livre uso.
O humor fecha. Opera com preconceitos, idéias prontas. Boas piadas não transformam e, sim, ratificam seja lá o que for.
Nos anos 70 e 80, participando da imprensa sindical, produzi peças que, aliadas ao esforço da militância, atingiram o objetivo de trazer muitos trabalhadores para assembléias e mobilizá-los em campanhas vitoriosas, que resultaram em benefícios materiais e aprendizado social.
Havia um outro lado. Vi criações das quais participei, por exemplo, o Décio Malho (personagem criado para os metalúrgicos de São Paulo), serem invocadas como símbolo em brigas eleitorais - espancamentos, inclusive - e assumindo um lado de algoz da oposição. O produzido fugia do controle, como na educação. Passa a ser ferramenta pessoal de outro, ou outros.
A piada não foge do controle. É um feitiço seguro.
Uma vez, quando bateu a crise no meu trabalho na imprensa sindical, o Fortuna me passou uma entrevista da Nadine Gordimer, na qual ela opinava sobre a literatura dos jovens escritores negros na África do Sul. Ela falava dos limites naturais de vôo de um trabalho em realidades tão urgentes, como lá. A nossa realidade também era urgente, mas eu larguei a linha "militante-educativa" assim mesmo.
Henfil também falava bastante sobre isso. Para ele, o nosso papel no rolo era bem claro. Em primeiro lugar, "trabalho na retaguarda" - cataclimas, captar movimentos, sentimentos, trazer isso para o papel.
Prestar serviço. Coisa que muitas vezes não cabia dentro da exuberância pessoal dele. E manter a mira no inimigo. Sempre - e só - no inimigo.
O chato é que ao manter a mira no inimigo passamos a ser condescendentes com as nossas próprias fileiras. Millôr disse que humor é oposição - o resto é secos e molhados. E essa oposição se estende a TUDO.
Uma vez produzi um material para ilustrar um caderno sobre o construtivismo. Era uma série de tiras que se passavam numa escola, com alunos e professores como personagens. Procurei não deixar o didatismo governar - fazer o tema teórico servir apenas como rampa de acesso para o circo. Mas a dificuldade era clara, como uma gosma invasiva que precisava ser mantida afastada de cima do papel.
Claro, Henfil fez isso a vida inteira, e muito bem - o que prova que essa conexão é possível. Não prova que seja necessária, mas possível, tudo bem.
Até hoje não cheguei a uma conclusão definitiva. Balanço entre dois vereditos: a) não dá para usar o humor como ferramenta para propósitos educacionais; b) dá, mas requer um extra de talento, esforço, atenção e delicadeza da parte do humorista. E, dificilmente, poderá se cobrar esse extra em dinheiro.
Laerte é cartunista, quadrinhista, chargista, roteirista, enfim, humorista
Alcione Araújo
Não dá mais para sofismar. A baixa escolaridade e a propriedade da formação humanista - mesmo entre aqueles que passam pela universidade - estão prejudicando o debate cultural no Brasil. Em decorrência, empobrecem a própria produção da cultura. Restringe-se a constatação ao aspecto cultural, pelo viés profissional do comentarista.
É evidente que não será diferente se o assunto for política, economia, direito, saúde, agricultura, tecnologia - enfim, qualquer das bases em que se fundamentam a construção do futuro de um povo. E, à rigor, a autonomia dessas disciplinas é limitada apenas ao que lhe é específico, pois estão todas envolvidas pelo conceito vigente de cultura e pela escala de valores que ela lhes atribui.
A ignorância é vizinha da barbárie. Onde a educação não é uma conquista, o saber é um ócio, a cultura uma futilidade e não há princípios nem hierarquia de valores, perde-se o discernimento entre o que é certo e errado, justo e injusto, honesto e desonesto. Sem valores nem princípios, não há indignação nem revolta, apenas o silêncio da resignação, a servidão voluntária. Estamos caminhando para essa fronteira.
No âmbito da universidade, a formação humanista genérica desapareceu no pós-guerra, quando abandonamos a orientação européia, especialmente francesa, para aderir à formação pragmática dos americanos. Com a cultura e os valores confiados à igreja protestante e à família, a universidade americana podia se permitir o mais radical pragmatismo. O modelo, porém, não se adequava ao Brasil.
Hoje, a universidade brasileira, à guisa de priorizar a formação profissional, transformou-se num espaço de adestramento para a produção. Desincumbiu-se da formação do homem e nunca se engajou na formação do cidadão. E até mesmo na prioridade escolhida, tem formado profissionais inadequados às demandas do mercado de trabalho.
Entregue ao mercado da indústria de entretenimento, a população entronizou a televisão como sua principal referência cultural. A baixa escolaridade, a precária formação humanística e a falta do exercício da cidadania levaram a audiência brasileira a derrubar um saudável princípio da competição capitalista: o de que a competição melhora a qualidade do produto. Na disputa pela audiência da televisão, quanto pior o programa, maior a audiência. Estamos na faixa do baixo-instinto.
Não vejo outra saída: o artista e/ou intelectual responsável tem que se aproximar da educação, que não é mais que o braço sistematizado da cultura, e da mídia, estrategicamente fundamental numa sociedade de massas, hoje confiada quase que exclusivamente a técnicos em comunicação, identificados com os princípios e valores da indústria cultural.
Omitir-se perante essas duas instituições significará ao artista/intelectual brasileiro a perda de qualquer função no futuro, seja cultural ou social.
Alcione Araújo é escritor
Newton Cunha
Sem possibilidades de nos estendermos sobre cada uma das idéias aqui envolvidas, vale pelo menos nos lembrarmos do que elas sugerem. Teoricamente, a figura do intelectual deveria ser a de alguém comprometido não apenas com a "sensibilidade" (o primeiro estágio da estrutura racional), mas, sobretudo, com a possibilidade superior do "entendimento". O que nos leva, por força das circunstâncias, à investigação racional, à dúvida, ao conhecimento e sua inseparável companheira, a crítica. Se assim é (ou deveria ser), a atividade intelectual pressupõe que, para além da vontade, do sensível ou do emocional, as ações humanas estão necessariamente envolvidas com significados, finalidades e suas inevitáveis consequências posteriores. Por esse motivo, torna-se inimaginável haver uma conduta intelectual, no sentido rigoroso do termo, sem "responsabilidade".
Passamos, pois, ao terreno da ética, da conduta ou do agir moral. Ela não nos impõe apenas o que deve ser feito ou dito (o conteúdo), mas também a forma como uma ou outra ação se exterioriza. Mais ainda. Aconselha o que, em hipótese alguma, não deve ser expresso ou realizado. Trata do bem e do mal, do justo e do injusto, da virtude e dos vícios, discriminando-os e lhes atribuindo valores. Leiga ou religiosa, propõe-se universal, civilizatória e, portanto, não exclusiva da categoria dos intelectuais. Mas por ser também resultado de reflexões ou de uma atividade intelectual sobre a vida comum dos homens, de "entendimento", enfim, cabe-lhes aqui um papel destacado, algo como uma responsabilidade mais refinada e vigilante, pois decorre de sua própria atividade cotidiana e profissional. Pelo menos no uso público de suas "linguagens", quaisquer que sejam, já que sem elas não pode haver comunicação.
E chegamos ao terceiro termo da rede: a "mídia". Dela tudo já se disse, cansativamente. E, na verdade, não há apenas uma. São várias que se refletem mutuamente. Onipresentes, disseminadas, conduzem todas as instituições (a familiar e as civis), tanto quanto os poderes públicos. Abstraindo-se as exceções louváveis, permanece o fato de que todas elas pouco têm a ver com aqueles ideais e exigências anteriores. Mercadológica, publicitária, hedonista (prefere o estágio inicial da "pura sensibilidade"), promíscua (os níveis culturais são fundidos até a indistinção), fragmentada, ruidosa e voraz, mantém-se regida pelo espetáculo técnico e por aquele espírito argentário que Francisco Quevedo já encontrava nos incipientes negócios de sua época: "Poderoso caballero es Don Diñero". É jovem no conteúdo e nos ideais de seu público. Ou seja, raramente transcende o estilo de vida que ajudou a criar e a idolatrar nos últimos cinquenta anos, a juvenilidade "pop", que hoje se estende a todas as "bioclasses". Trata-se agora de se sentir cool ou agitado. A cultura, ao contrário, envelhece as pessoas, por ligá-las ao passado. Nessa situação, "era uma vez os mass media; eram maus, é sabido, e havia um culpado. Depois, havia as vozes virtuosas que acusavam os seus crimes. E a Arte (ah!, por sorte), que oferecia alternativas para quem não fosse prisioneiro dos mass media. Pois bem, tudo acabou. Temos que começar de novo e nos perguntarmos o que está acontecendo" (Umberto Eco, Viagem na Irrealidade Cotidiana).
Obviamente, a responsabilidade crítica e "educativa" dos intelectuais pouco espaço tem para se afirmar. Uma grande parte sente-se perfeitamente à vontade e imbuída desse irracionalismo contemporâneo.
Newton Cunha é sociólogo e técnico do Sesc