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Hoje tem marmelada

No dia 10 de dezembro comemora-se o Dia do Palhaço. Em função desse mote, 27 grupos circenses se reuniram para um encontro que rendeu, além de boas gargalhadas, discussões sobre a arte de fazer rir

Ô raia, ô sol, suspenda a lua; olha o palhaço no meio da rua Tombei, tombei, tornei a tombar; a brincadeira já vai começar. Hoje tem espetáculo? Tem sim senhor. E o palhaço, o que que é? Ladrão de muié...

Na dura poesia concreta de tuas esquinas... / Da feia fumaça que sobe apagando as estrelas..." Uma cidade cinza foi o que enxergou Caetano quando chegou por aqui. Assim como ele, diversos artistas já retrataram o frio, a garoa fina e o sufocante concreto da gigantesca metrópole. No fim do ano, no entanto, o sol do verão e as luzes do Natal invadem a cidade e ofuscam (pelo menos um pouquinho) o cinza, que, na maior parte do tempo, deixa São Paulo com um aspecto desumano.

No interior talvez não haja tanto concreto nem tanta garoa, mas, por lá, com certeza, o mês de dezembro também foi mais alegre. Este ano, além das luzes e do sol, a capital e o interior do estado ganharam um colorido especial e também se tornaram as cidades do riso. A alegria extra veio com um monte de palhaços que invadiu as unidades do Sesc Rio Preto e Ipiranga e, durante oito dias, fizeram centenas de pessoas se emocionarem com momentos de singular alegria e poesia.

Durante o mês de dezembro, o evento Anjos do Picadeiro promoveu o encontro entre profissionais do riso, do Brasil e de outras partes do mundo que, coloriram, brincaram, discutiram, exibiram-se e trocaram informações sobre a milenar arte de fazer rir. Além dos espetáculos, das oficinas e da exposição/instalação, o evento debateu temas como arte clownesca, sua importância histórica nas sociedades, as relações com outras vertentes da comicidade e o papel que essa arte desempenha hoje.

Uma feliz parceria

Ao contrário do que muita gente pensa, fazer rir é coisa muito séria. Dessa idéia é que surgiu há dois anos, no Rio de Janeiro, o primeiro Anjos do Picadeiro. O primeiro encontro foi promovido em função do décimo aniversário do grupo carioca de circo-teatro, Teatro de Anônimos, que organizou o evento. Em sua primeira edição, o Anjos do Picadeiro contou com a presença de importantes representantes da cultura popular no Brasil. "Desse encontro brotaram discussões riquíssimas acerca do riso. Foi muito bonito mas tornou-se muito difícil para nós organizarmos toda a estrutura sozinhos. Assim, apresentamos o projeto ao Sesc que tornou possível a realização do segundo Anjos do Picadeiro", explica João Carlos Artigos, do Teatro de Anônimos. A parceria também agradou muito ao Sesc, que enxergou no encontro a possibilidade de, mais uma vez, fomentar o rico universo da cultura popular.

Os primeiros contatos para a realização do Anjos do Picadeiro se deram através do Sesc Rio Preto, quando alguns dos integrantes do Teatro de Anônimos participaram da programação da unidade."Nesses seis anos de vida da unidade trabalhamos a maior parte do tempo com eventos voltados para a questão do riso e da comicidade. Há algum tempo, o pessoal do Anônimos comentou conosco sobre a possibilidade do Sesc receber o Anjos do Picadeiro que, anteriormente, havia sido realizado no Rio. Era um projeto muito bom e encaixava-se no perfil da nossa programação", explica Vitor Hugo Zenezi, do Sesc Rio Preto, unidade que de 3 a 6 de dezembro acolheu um verdadeiro congresso de palhaços. O evento foi tão bem recebido que até já existem projetos futuros: "Foi um projeto de um ganho fenomenal. Todos comentavam a emoção que os palhaços estavam causando na cidade. Eles se apresentaram em um hospital e em uma indústria e foram muito bem recebidos. Além da receptividade, não imaginávamos que tantos jovens estivessem interessados nessa arte. Veio gente de diversos locais do Brasil prestigiar o evento. Não sobrou nenhuma vaga nas oficinas. Tudo funcionou muito bem. Teríamos grande prazer em acolher o evento novamente", comemora Vitor Hugo.

Depois de Rio Preto foi a vez de São Paulo ser invadida pela emoção dos palhaços. Do mesmo modo que no interior, o Teatro de Anônimos já havia participado da programação do Sesc Ipiranga. "Os primeiros contatos com o Anônimos ocorreram a partir do espetáculo Roda Saia Gira Vida, que esteve na nossa programação de teatro para crianças há alguns anos. O grupo é muito atuante no movimento circense e está pesquisando há muito tempo o universo popular da cultura cômica. O trabalho deles expressa esse universo de uma maneira muito poética, com simplicidade e qualidade. Nossa parceria surgiu de uma confluência de interesses", explica Egla Monteiro, coordenadora cultural da unidade do Ipiranga.

O grupo se conheceu há quinze anos quando ainda frequentava o colégio Visconde de Cairú, no Méier, subúrbio situado na Zona Norte do Rio de Janeiro. "Montamos uma peça que, apesar de ser um drama, as pessoas riam sem parar. Notamos que o drama não tinha muito a ver com o que realmente queríamos e aos poucos chegamos no circo". Mas por que o circo? Segundo João Carlos, a trajetória até a arte popular foi inevitável: "Viemos do subúrbio. Crescemos ouvindo samba... Em determinado momento da nossa pesquisa, compreendemos que o mais valioso que tínhamos era a nossa formação suburbana, negra, carioca. Essa compreensão sempre nos norteou, não tivemos que resgatar a cultura popular". No começo, o grupo tinha um trabalho de rua que não tinha nada de circo. "No entanto, o caminho é inevitável. Ao estudarmos a cultura popular chegamos ao circo e daí ao palhaço".

Além dos espetáculos, o grupo está à frente do projeto internacional chamado Circo do Mundo. Esse projeto está inserido numa rede mundial de trabalhos sociais, que consiste na promoção do bem-estar junto a vítimas de tragédias como os refugiados de guerra ou os menores abandonados do Rio.

O palhaço o que é?

Na primeira edição do Anjos no Picadeiro, o grande homenageado foi Benjamim de Oliveira. Nascido no interior de Minas, ele foi o primeiro palhaço negro do mundo e ganhou notoriedade se apresentando na Praça Tiradentes, no centro do Rio. Por meio de seus espetáculos, difundiu o circo-teatro no Brasil ao mesclar o drama com a cultura circense. Este ano, mais uma vez o encontro primou por reverenciar a tradição e homenageou ninguém menos que Nani Colombaioni, o palhaço italiano que encantou o mundo nos famosos filmes de Fellini, como La Strada e Amarcord. Junto com ele, vieram seu neto e seu filho, que participou junto ao pai do debate O Que Faz Rir. Entre outras coisas ,pai e filho contaram a trajetória desta família que trabalha junto há cinco gerações.

Uma das grandes atrações do evento em Rio Preto foi a exposição/instalação montada na unidade. Dentro de uma minitenda eram projetadas cenas que apresentavam o histórico do riso, através de imagens que traziam textos de importantes pesquisadores da arte circense. Além da projeção de cenas, a instalação/exposição trazia também a biografia de Benjamim de Oliveira e um estudo do circo-teatro neste século. O Sesc Ipiranga montou uma exposição de fotos com textos de pesquisadores da área, ilustrada com máscaras do riso.

"Parece que nesse final de século o riso está ganhando o lugar que lhe é merecido. Este encontro é um belo começo. Só tenho a parabenizar o Sesc por sua ação. Bom seria se no Brasil houvesse mais instituições como esta", diz Luiz Carlos Vasconcelos, o palhaço Xuxu.

No encerramento do grande encontro de palhaços, um cortejo carregou todos que participaram do evento para uma alegre e coloridíssima caminhada pelas ruas do bairro do Ipiranga. Os participantes saíram da unidade e foram até o parque da Independência, onde finalizaram um dos eventos mais divertidos que São Paulo já teve.

Anônimos da alegria

"Todos têm direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de usufruir das artes e de participar do progresso científico e de seus benefícios", assim diz o artigo 27 da Declaração dos Direitos do Homem, entre os muitos outros que pregam a igualdade, a fraternidade e a liberdade para todos os povos da terra. A Declaração comemora seu aniversário no mesmo dia escolhido para homenagear aquele que vela pela alegria do mundo e expressa ideais de solidariedade, liberdade e felicidade, utopias tão fundamentais para um mundo mais humanizado. O palhaço é figura presente no imaginário humano. Em todas as culturas existe aquele que, com sua graça, promove risadas. Como ninguém, ele cumpre o ideal do artigo 27: para o palhaço não há diferença. O que importa é que todos, sem distinção de raça, cor ou credo, divirtam-se com sua arte. "O personagem do palhaço nasceu com o homem. Numa sociedade, antes de existir o engenheiro ou o arquiteto, existe aquele que é espontaneamente engraçado e que faz as pessoas rirem", observa o ator Beto Magnani um, aficionado pelo personagem. "O palhaço não foi inventado por alguém, pertence à cultura popular e esta foi construída por todos e por ninguém. É uma produção de anônimos e está em todas as sociedades. Situa-se além da tradição filológica e da escrita, não passa pela ditadura do autor, sendo produzida coletivamente, no espaço da comunhão. Suas músicas, peças e personagens pertencem ao domínio público", completa João Carlos, do Teatro de Anônimos.

Em meio a tantos debates, a pergunta que inevitavelmente surge do público é sempre a mesma: afinal, clown ou palhaço? Para Angelo Brandini, "besterologista" do Doutores da Alegria "não há muita diferença, mas, sobretudo no Brasil, trabalha-se muito com o palhaço de circo, que encena para um número maior de pessoas e a uma distância grande do público. Por esses motivos, por exemplo, a maquiagem do palhaço pode ser mais forte. Nós trabalhamos muito próximos às crianças e, por esse motivo, usamos uma pintura e uma roupa mais leves. Usufruímos de uma linguagem um pouco diferente. O clown está mais para o teatro". Já João Carlos diz que a questão é simples: "Uns denominam-se clowns e outros palhaços." Realmente, não interessa. O importante é fazer a barriga doer de tanto dar risada.