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Pensando a Bienal

Bienal de Arte de São Paulo este ano não veio sozinha. A curadoria da mais recente edição do evento, capitaneada por Paulo Herkenhoff, convidou diversos institutos culturais a participarem do frenesi cultural provocado na cidade. Mostras de cinema, ciclos de palestras, exposições de documentos históricos e outras manifestações constituíram o pacote que caiu, embrulhado para presente, nas mãos dos amantes de arte.

Entre esses eventos, destaca-se o projeto Pensando a Bienal, um ciclo de palestras promovido pelo Sesc de São Paulo por meio de sua unidade Pinheiros. O projeto constitui-se também de um procurado roteiro de visitas monitoradas ao Pavilhão da Bienal, no Parque do Ibirapuera. "Sou principalmente uma festeira e sempre que acompanhava uma das visitas sentia grande alegria por fazer parte de mais um serviço de socialização", conta Bete Marinho, animadora cultural da unidade.

O Sesc Pinheiros não apenas esta-beleceu as bases culturais para oferecer um melhor aproveitamento da 24a Bienal, como instalou um serviço de transporte que durante os meses de outubro e novembro levou os frequentadores da unidade para visitar a mostra, além de providenciar o monitoramento agendado. O projeto incluiu ainda uma oficina de desenho, chamada Desenhando a Bienal, sob responsabilidade de Teresa Saraiva e da técnica de programação cultural Marli Tancreda.

Preparando-se para preparar

Bete Marinho e a equipe técnica da unidade Pinheiros estudaram muito o movimento antropofágico, desde suas origens indígenas, nos registros de Hans Staden e Jean de Léry, e em documentos da Companhia de Jesus, referentes aos confrontos entre as nações tupi e tamoia, nos longínquos anos de 1555 a 1564. "Posso assim compreender por que Oswald de Andrade proclamou em seu manifesto, em 1928, 'tupi or not tupi, that is the question'. Na luta entre os índios antropófagos para decidir qual seria o destino político das novas terras, a questão era mesmo ser ou não tupi", explica Bete.

A antropofagia indígena, com o correr do tempo, passou a ser apenas uma lembrança histórica, mesmo porque os índios se mesclaram com os colonizadores. As reminiscências culturais foram propostas, neste século, pelos participantes da Semana de Arte Mo-derna de 22 em busca de fundamentos nativos para formular uma nova ideologia. Raul Bopp, participante do movimento, contou em entrevista ao Jornal do Brasil, pouco antes de sua morte, como o manifesto nasceu.

Foi num restaurante paulista, famoso por servir rãs. Lá estavam Oswald, sua mulher Tarsila, o próprio Bopp e outros, além de jovens entusiasmados por arte. Servidas as rãs, Oswald iniciou um discurso, muito bem-humorado, sobre a teoria da evolução e a semelhança do corpo dos bichinhos com o do homem. Ao que Tarsila observou: "Então estamos praticando o canibalismo". Dessa maneira surgiu o Manifesto Antropófago.

Alguns meses depois, Oswald de Andrade separou-se de Tarsila e mudou para Santos, com sua nova paixão, uma jovem entusiasta da arte moderna. O movimento perdeu seu ímpeto, mas não suas idéias, que voltaram a florescer com a Tropicália, resultante de um grupo de músicos baianos que também desejavam uma arte de fundamentos nacionais.

Canibais populares

A unidade preparou um de seus espaços especialmente para a ocasião. Foi criada uma espécie de arena intimista onde a platéia podia ficar bem próxima do palestrante. Esse modelo dessacralizou a figura, muitas vezes sisuda, dos "donos da informação". Tal relação de proximidade deixava até o mais leigo dos espectadores à vontade para se lançar em busca de respostas a questões que ele sempre quis saber mas tinha vergonha de perguntar.

Entre os palestrantes, o compositor e poeta Wally Salomão falou sobre canibalismo. O escritor identifica-se com uma segunda onda de artistas que frequentou o apartamento da artista plástica Lygia Clark, no Rio de Janeiro. A primeira turma, no último ano da década de 50 e início da de 60, era formada principalmente por escritores como Ferreira Gullar, José Carlos de Oliveira e Oliveira Bastos. Já no decorrer dos anos 60 os amigos de Lygia eram principalmente Hélio Oiticica e seus discípulos, herdeiros de um concretismo mais próximo da arte popular do que o formalismo geométrico que pouco tempo antes havia fecundado as páginas do suplemento literário do Jornal do Brasil. "Os modernos canibais não são lite-ratos ou filósofos, mas gente que se expressa mediante instrumentos populares, nas artes plásticas e na música", observou o poeta. Da junção do grupo do Rio com os "baianos" surgiu a Tropicália, que recriou o antropofagismo contido no manifesto de 1928 de Oswald de Andrade.

À maneira do movimento da primeira metade do século, o tropica-lismo também continha muita arte plástica, mas com predomínio de forte vocação musical. Nessa característica Wally Salomão encontra a essência do antropofagismo a que a atual Bienal se dedica: uma fuga da literatura e da filosofia, condição que define a antropofagia de Oswald de Andrade, e o mergulho no mundo das imagens populares.

Trata-se de um canibalismo menos vitalista, mais passivo, não obstante com vestígios de sadomasoquismo, presentes no movimento original de Oswald. E é nessa característica que a historiadora Magda Celli, que compareceu no dia 7, encontra seus vínculos universais, tratando da vida antropofágica de Van Gogh, cuja obra carrega alguma semelhança com outro pintor homenageado nesta Bienal, Francis Bacon. Este, ao contrário de seu homônimo filósofo dos 1600, foi um homem retraído, prisioneiro de suas características de personalidade, mas totalmente dedicado ao vermelho e ao sangue, suas obsessões.

Já no terceiro encontro do ciclo, Antônio Medina Rodrigues, pesquisador da língua e da literatura gregas, tratou da razão antropofágica, que sintetiza não a vivência cruel da antropofagia indígena, nem a antropofagia do manifesto de 28, mas todo o sentido oculto da autodevoração como um fatalismo diretamente contido no destino das manifestações artísticas populares da modernidade. Para Medina, a antropofagia desdobra-se na cultura popular dos últimos vinte anos, a partir de seus fundamentos históricos e ideológicos.

No dia 19, foi a vez de Rogério Duarte, da Universidade de Brasília (UnB), lembrar a pós-modernidade na antropofagia da Tropicália, revelando o sentido ainda parcialmente oculto de um conceito popular de canibalismo. Duarte vê no advento da cultura de massa o hábitat propício à supe-ração da cultura superior. Concomitantemente, a crítica dos racionalismos conduziu ao entusiasmo com a expressão imediata dos sentimentos, superando qualquer programa em que a arte possa ser considerada próxima da educação. No quinto dia, o médico psiquiatra e psicanalista Luiz Tenório tratou das ligações entre antropofagia e psicanálise, procurando aproximar os dois temas. No dia 28, fechando o ciclo, Paulo Herkenhoff, curador geral da 24ª Bienal, comentou aspectos da organização e do funcionamento da mostra na palestra Devorando a Bienal. Entre outras coisas, salientou que a Bienal tem sido, mesmo quando não se refere especificamente ao canibalismo, um grande banquete cultural.

Bienal renascida

A atual Bienal apresenta poucas instalações, fato que se por um lado restringe a liberalidade criativa, por outro esforça-se por recolocar as artes plásticas em terreno menos movediço. Durante muito tempo as manifestações literárias e filosóficas no campo de pinturas e esculturas foram combatidas porque vinculavam o artista plástico a ideologias. Agora parece se descobrir que alguma ideologia deve haver para que a arte não fique totalmente esvaziada. Esse foi um dos caminhos percorridos pelos palestrantes e pela metodologia do projeto Pensando a Bienal.

O público presente às palestras foi levado por esse caminho e respondeu aos estímulos com reações entusiásticas. Vilma Pereira manifestou surpresa e aprovação a respeito da conferência de Magda Celli, "Van Gogh teve uma vida antropofágica", exclamou. Confessou que jamais havia pensado no pintor em termos brasileiros, mas se convenceu da pertinência do tema: "Magda Celli tem a característica de fundamentar muito bem suas observações", concluiu. Maria Alice Monteiro, formada em artes plásticas pela Faap, fez quatro visitas à Bienal e considera que acompanhar toda a amplitude da mostra é dificílimo, o que torna essencial as repetidas presenças. Ela esteve em várias edições passadas e observa a mudança na função ao longo do tempo: "Houve as que criavam um impacto revelando o que os brasileiros não sabiam. Posteriormente, perderam essa característica e se transformaram num programa. A atual revelou-se antropófaga de si mesma".

Pensar a Bienal é um exercício efetivo de democratização da arte. Enquanto as obras, instalações e conceitos da mostra devoravam suas próprias referências e devolviam novas propostas estéticas, o projeto do Sesc propicia que os participantes, por meio de palestras e visitas monitoradas, devorem as informações e noções que antes se escondiam de olhos leigos.